quarta-feira, 28 de abril de 2021

PSICANALISTA DÁ CONSELHOS? (O AMIGO PERGUNTA)

 



Lucas Peccin: “Como deve se posicionar o psicanalista diante de dilemas decisórios de um cliente?”

Francisco Daudt: Ah, isso tem uma história interessante. Freud dava um único conselho aos clientes: que não tomassem nenhuma decisão crucial antes de se completar um ano de análise. Ele não queria que o cliente “mudasse de vida” sem saber se essa mudança estava baseada em seus desejos ou em suas neuroses.

Nada de gravidezes, separações, casamentos, demissões de emprego, rompimentos etc., portanto. Que eles pensassem suas vidas, antes.

Sempre achei muito sensata essa sugestão. O objetivo da psicanálise é o “debugging”, tirar os vírus do software, separar o joio do trigo, conhecer cada vez mais os desejos do cliente sem as “invasões bárbaras” do Complexo de Édipo e as interferências do Superego – o representante supremo do Senso Comum –, sabendo que a singularidade da pessoa e o senso incomum de suas circunstâncias é que importam.

Mas... haverá momentos em que o cliente se vê frente a decisões difíceis, ele quer o apoio do analista, ele gostaria de um conselho.

É a hora de o psicanalista humildemente contemplar a inatingível complexidade do outro: todos nós temos uma balança interna de dois pratos – custos e benefícios – e só nós podemos avaliá-la. Não há ação que não passe por ela. 

A melhor ajuda que ele pode dar ao cliente é apresentar custos e benefícios não percebidos na situação, para que tome uma decisão mais ponderada.

Mas há dilemas frente aos quais a coisa muda. “Não sei se me caso ou se compro uma bicicleta” é a indecisão caricatural da dúvida obsessiva. Não é dilema, é sintoma. O cliente está alugado, não consegue pensar em mais nada, aquilo é compulsivo e atormentador. A balança nunca pende para um lado, pois há sempre um contrapeso a ser posto no outro.

Aqui entra o psicanalista investigador: o sintoma obsessivo é uma questão deslocada. Um assunto secundário substitui um drama que não pode ser pensado, pois está reprimido.

A cliente estava abduzida pela dúvida: que nome dar ao filho ainda por nascer. Queria o nome perfeito, só pensava naquilo, chegava a sonhar com as infinitas possibilidades, imaginava que se errasse arruinaria a vida do filho para sempre.

O que estava em jogo, afinal, era sua profunda ambivalência com aquela gravidez que atrapalhava (arruinava?) seus próprios planos de vida. Tinha pensado em abortar, mas um brutal sentimento de culpa fez o pensamento sumir, substituído pelo mais radical “amor antecipado” pela cria,...

...e pela dúvida obsessiva.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



ADAPTAÇÃO DE LINGUAGEM

 



Um psicanalista carioca famoso mencionou a puberdade durante uma palestra. A moça na plateia levantou o dedo e perguntou: “o que é puberdade?”

O palestrante fez uma cara de quem viu um ornitorrinco... e prosseguiu a palestra sem respondê-la.

Esse caso me remeteu a duas coisas interessantes que Paulo Freire falou (sem entrar no mérito das outras):

1. Não existe pergunta idiota; todas podem despertar ricas reflexões.

2. Cabe ao professor adaptar sua linguagem ao aluno. Se você está alfabetizando um nordestino do interior, “vovó viu a uva” não servirá como texto, pois dificilmente ele terá avó e certamente nunca viu uma uva.

Voltando ao caso, era uma bela oportunidade de distinguir adolescência de puberdade. “Adolescer” significa crescer, donde adolescência é “em crescimento”. Puberdade diz respeito à invasão dos hormônios sexuais que acontece lá pelos doze anos em diante. A puberdade (do latim “pubertas”, pelos, barba) implica uma tremenda mudança de vida, para a criança. Ela se vê diante de uma transformação corporal que põe fim à infância e anuncia todas as inseguranças da vida adulta, desde as negociações sexuais até a de como ganhar dinheiro e ser independente.

Olha só a oportunidade que o psicanalista perdeu...

A segunda questão, a da vovó que viu a uva, é crucial para o psicanalista. Ela é mesmo um divisor de águas. Eu sei que venho enchendo o saco com essa repetição sobre a necessidade de clareza e transparência na fala do analista, mas a cada vez um detalhe novo disso aparece.

No exemplo do palestrante, ficou clara uma triste mensagem: “eu sou superior e você é inferior; se você quiser saber o que estou falando, corra atrás, pois eu me dou ao direito de ser enigmático, esotérico (significa “para poucos”) e vago”.

Em termos de teoria psicanalítica, seria algo como: “eu sou representante do Superego, não preciso convencer, uso o argumento de autoridade, devo ser reverenciado e temido; diante do Superego, todos devemos nos curvar”.

Sim, é triste, mas os psicanalistas se dividem entre aqueles que, como eu, acham o Superego parte do problema; e aqueles que o usam – muitas vezes sem sabê-lo, pois nunca se questionaram a respeito – como ferramenta de trabalho, subjugando o cliente.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




O DECLÍNIO DA NEUROSE

 


As neuroses estão sumindo, enquanto os vícios (comportamentais e de substâncias) estão em alta. Isso é fenômeno mundial, sociológico, um retrato do espírito do tempo.

Por quê? Porque a repressão saiu de moda. A repressão (ou recalque; em alemão,  verdrängung = desalojamento), o motor da neurose, é um mecanismo de defesa contra a angústia que precisa de pressão moral vinda do Superego... e as pressões morais estão em baixa. Pudor, vergonha na cara, sentimento de culpa, constrangimento, recato parecem-se, cada vez mais, coisas do século passado.

Para haver neurose, é preciso que a pessoa tenha horror a pelo menos um de dois grupos de “maus sentimentos” seus: raiva e desejo sexual. Melhor dizendo, é preciso que sua raiva e/ou seu desejo sexual sejam vistos por ela como “maus sentimentos”.

Como resultado, a pessoa nem percebe que teve esses “maus sentimentos”, pois no lugar deles aparece uma coisa esquisita: o sintoma neurótico. 

Tome-se a histeria como exemplo: a mulher do século XIX sentia tesão por alguém; mesmo antes de perceber esse “horror” em si, ela desmaiava. O desmaio aparecia substituindo o tesão, uma coisa bem esquisita.

A última pessoa que me apareceu no consultório com sintoma histérico foi um homem, faz uns trinta anos, e o desejo reprimido era homossexual. Ainda podia ser um horror ter desejo homoerótico, veja só...

E o que veio no lugar da repressão? No “liberou geral” contemporâneo, o sexo transgressor substituiu a histeria. O desejo continua problemático, mas como vício, não mais como neurose.

O mesmo se passou com a raiva e os frutos de sua repressão (a neurose obsessiva e as fobias). Não que elas tenham desaparecido, mas cada vez mais cedem lugar ao vício sadomasoquista e o de domínio/submissão, o maltrato nas relações, o deslocamento do alvo do ódio para as tretas e para as “tribos inimigas”, para o patrulhamento politicamente correto, para os cancelamentos e linchamentos morais (temo que sejam sinônimos).

P.S. Tenho a impressão de que esta minha tese é original. Nunca vi publicação ou ouvi falar dela antes. Se alguém souber de algo diferente, por favor me avise.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



sábado, 24 de abril de 2021

OBSESSIVOS “DA LATA”

 


Você abre uma lata de massa de tomate em vinte segundos e a borda fica lisinha.

Mas se vir alguém tentando abrir a lata com facão de cozinha e soquete de carne... entra em agonia, não se segura e diz: “Me dá essa lata aqui”.

O obsessivo é aquele que fazia o trabalho de grupo sozinho (e não reclamava), ele acerta quadros na parede (e se esforça para não fazer isso na casa dos outros), nunca deve nada a ninguém, faz e entrega bem, aperta a pasta de dentes pelo fim e passa o cabo da escova nela, quando está acabando, cola o resto de sabonete no novo e sabe bem onde estão seus documentos.

A obsessividade é uma benção, quando nos pertence; nenhum obsessivo gostaria de ter nascido diferente.

O problema é quando ela manda na gente. Esta é a diferença entre caráter e doença, hoje chamada de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo).




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



segunda-feira, 19 de abril de 2021

ADORO ETIMOLOGIA


Implicar: do latim IMPLICARE, “dobrar junto, entrelaçar, unir”, de IN, “em”, mais PLICARE, “dobrar”.

“Ter consciência implica - (“SE DESDOBRA EM”, “se une a”) - uma certa tristeza”. 

É por isso que “implicar em” é redundante: o “em” já está incluído no pacote.

Dele derivam implícito e implicante, bem como explícito, este com o uso do prefixo EX-, “fora”.

P.S. Bem lembrada nos comentários, “implicância” é também uma forma de se estar unido a (algo, alguém): Implicância é sinônimo de: pinima, birra, cisma, implicação. A Zoraya Therezinha Silva se lembrou da “branda implicância”, uma mensagem disfarçada em que a pessoa diz “eu te amo, eu gosto de você”, mas pelo seu avesso. Pela implicância modulada pelo humor.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




 

UM IMPACIENTE CHAMADO BRASIL

 



O “Valor Econômico” me pede uma entrevista. O tema: “E se o Brasil fosse seu paciente?”

Apesar de eu só ter pacientes que procuram tratamento por se verem com problemas (eu não atendo pessoas em que só os outros veem problemas; respondo sempre, “agora que me conhece, quando você achar que precisa de ajuda, sabe o caminho”); apesar – por essa mesma razão – de saber do tamanho da minha impotência para ajudar, desejo sim olhar o Brasil e pensar em seu sofrimento, que é o meu também.

Tristeza, depressão e vício, os males do Brasil são. A tristeza vem de um tipo difícil de luto: o de gente viva. Como aquele grande amor que nos largou, vivemos entre a saudade e a esperança. A esperança, nesses casos, é uma coisa esquisita: às vezes ela é a última que morre; outras vezes, a primeira que mata.

Ariano Suassuna disse que não era um otimista, pois o otimista é um tolo; nem um pessimista, pois o pessimista é um chato; queria ser um realista esperançoso.

Tá difícil, Ariano, tá difícil. Olhamos o Brasil e dizemos, “o que será que eu vi nessa pessoa?” Outra hora, “ah, não, vai melhorar...” É assim que a esperança tem nos alentado e maltratado.

A depressão, como todas, é resultado da angústia prolongada. Nossa angústia vem do medo da sifudência e da raiva impotente, não carece de explicação. Seus sintomas são apatia, desalento e irritabilidade, esta última sendo o sintoma menos reconhecido da depressão. Há pessoas muito ativas que passam a vida puxando briga com pipoqueiro, e não se reconhecem depressivas.

Então vem o vício. Assim como depressivos usam álcool como remédio, muito antes de procurar ajuda, os vícios distraem e aliviam momentaneamente, fazem esquecer das dores e mágoas, mesmo que cobrem alto preço mais adiante. Infelizmente, quem está sofrendo não pensa em mais adiante: a farpa exige alívio já, a dor empurra para o imediatismo.

O vício que assola o Brasil é o tribalismo fodão/merda. A política do “nós contra eles”, que vem sendo cultivada há anos, ganhou o impulso das mídias sociais para se tornar guerra viciosa: a dopamina (neurotransmissor do prazer) que inunda o cérebro a cada vez que xingo, humilho, rotulo o outro de merda, se torna nossa dependência, nossa razão de viver.

A micro-vitória da minha tribo, conseguida às custas da derrota da tribo oposta – e isso é um fenômeno mundial, não é exclusivo nosso – faz com que percamos as referências de uma identidade nacional e nos afunda na lama da doença cada vez mais, aumentando a tristeza, a desesperança e a depressão... que nos impulsionarão para mais vício.

Ou seja, é um círculo vicioso...

“Mas, e a cura, doutor?” Como em qualquer doença, a prioridade é a parte mais grave e mais danosa. No caso do Brasil, o vício. A primeira coisa, os AA já recomendam há tempos, é reconhecer-se doente.

É este o propósito da minha mais que modesta – porém esperançosa – contribuição aqui.




 
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A FILOSOFIA COMO CONSOLO

 



Diferentemente de necrotério (lugar dos mortos, em sua origem grega), cemitério é o lugar para dormir. O de nome mais bonito que conheço é o Cemitério da Consolação: lugar para dormir, lugar de consolo. Reúne duas necessidades básicas do ser humano neste vale de lágrimas: descansar e consolar-se.

As religiões são um produto natural deste anseio da espécie: elas nos consolam negando a morte (veja que no cemitério se dorme, não se está morto) e nos dando amparo do transcendente forte, um ser maior que nos protege.

E quem, como eu, não tem religião? Como faz para se consolar do desamparo e da solidão a que estamos condenados? Já estava no caminho de encontrar algo útil, não um transcendente forte acima de mim para me subjugar e a quem servir, ou para a ele me agarrar com unhas e dentes, mas de uma referência-ferramenta para enfrentar a pedreira existencial, quando esbarrei com Boécio e o consolo da filosofia.

Ele foi um romano do século 6º, preso injustamente e sentenciado à morte, que escreveu na prisão esse belo livro ("De Consolatione Philosophie") em que registra sua conversa com as musas da filosofia, buscando com elas entender o sentido de sua prisão e de sua condenação à morte. É uma linda metáfora para a própria vida, se lembrarmos daquela sua definição: a vida é uma doença sexualmente transmissível, com 100% de fatalidade.

Pois venho conversando com elas, as filosofias, e o que tenho ouvido delas me é de grande consolo. Primeiro foi a escola grega dos estoicos. Êta gente mal compreendida. No senso comum, são pessoas "que sofrem em silêncio". Não! Um estoico é alguém que simplesmente aceita a realidade que não pode ser mudada. Você nunca verá um estoico se queixar da chuva. E, se ele tiver perdido uma perna, fará tanto sentido se queixar de que tem uma só perna quanto faria para mim me queixar porque tenho duas: minha realidade é ter duas, a dele é ter uma. Mas um estoico não é cego às possibilidades de mudar a realidade incômoda: se ele souber de uma boa prótese no mercado, irá atrás dela.

Depois foram os céticos. Esses buscadores do conhecimento ("episteme") reconhecem que sua procura não tem fim, já que não chegam a nenhuma certeza absoluta, e sim a verdades funcionais. Não é aquela coisa pós-moderna de "toda verdade é relativa". Não. Existem verdades que fazem um avião voar, e fora delas existem desculpas. Na base aérea Edwards da Califórnia há uma placa que lembra: "Desculpas não voam".

Dentro da escola dos céticos, amo os agnósticos: são os que se declaram incapazes de conhecer um determinado assunto. Não confundir com os ateus ("sem deus"), pois estes têm certeza absoluta da inexistência de Deus, enquanto eu tenho problemas com certezas absolutas...

Basicamente, eu, agnóstico, digo: se não consigo o conhecimento disso, isso não me servirá como referência de vida. Quanto a isso, Deus e a física quântica se equivalem: não consigo o conhecimento deles; não me servirão como referência de vida.

Preciso de referências. Minha bronca com o pós-modernismo é tê-las detonado. Ouvi de uma cliente uma pergunta cômica: "Ué, o pós-modernismo já não saiu de moda?"

Vai ser pós-moderna assim...



 
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