Um cliente me pergunta: “eu sou um pedófilo?” Ou melhor, se seu desejo por púberes femininas (é quando começam a surgir mamas e ancas) seria um desvio patológico, ou uma dessas coisas da natureza, como o desejo homossexual. “Não sei dizer, mas minorias de minorias costumam ser patologias. Precisamos investigar. Vamos fazer o retrato falado de seu desejo”.
A menina faz contato visual com ele na piscina e se mostra interessada, pois ele retribui, apenas com os olhos. “Ele não fez nada”.
A menina se aproxima e monta em sua coxa, que ele coloca em boa posição. Ela começa a se masturbar, esfregando-se.
Ele tem uma ereção imediata e um orgasmo.
Ambos se afastam sem trocar palavra.
Algumas ocorrências foram assim. Hoje há outras, pela internet.
Não me interesso por imagens pagas, pois seria uma coisa muito feia (diferente do “ele não fez nada”).
Tenho repugnância pelas imagens em que as crianças parecem incomodadas com a abordagem erótica.
Imagens em que a púbere parece interessada, gostando do que está acontecendo, ou melhor, ativa na coisa, são essas que me dão maior prazer.
O paciente é hétero (não olha para homens), mas hoje é impotente, (apesar de só ter 63 anos) incapaz de se masturbar. Sua excitação com as imagens é “difusa”, porém devaneia com o passado, em que meninas de carne e osso interagiam. Supõe que teria orgasmo mesmo sem ereção, mas se contém, “por que é errado”.
Vejo nele uma busca de compromisso entre transgressão e ética, o que não faz dele um psicopata. Primeiro, ao apreciar as púberes com desejo próprio, e não como vítimas de um bárbaro. Depois, que ele nunca as toma e as penetra, mas deixa-se servir como um objeto de desejo delas. Seu desejo é satisfeito porque atendeu ao desejo delas. É semelhante à fantasia que algumas mulheres usam ao se masturbar, de que estão sendo estupradas: elas não fizeram nada, e nada puderam fazer. A possibilidade de negar seus desejos retira suas culpas e libera seus orgasmos.
Depois de muito tempo de investigação, uma pista: aos sete anos, o paciente sofria de oxiuríase (pequenos vermes parecendo linhas se remexem na mucosa anal, provocando coceiras, com ou sem prazer). Sendo os remédios inócuos, seu pai fazia, no quarto, meticulosas operações manuais de retirada dos vermes.
O filho aprendeu. De quando em quando vinha ao pai, e, sem palavras, indicava o quarto com a cabeça. O pai se levantava, sem nada dizer, e, na cadeira do quarto, com o filho desnudo dobrado sobre seu colo, separava-lhe as nádegas com cuidado para retirar com os dedos os oxiúros. Era uma demorada carícia naquela mucosa sensível. Um processo que durou meses.
Chegamos a uma hipótese com que ele concordou. Seu desejo homossexual passivo pelo pai havia encontrado uma saída não neurótica, mas perversa (quando o erotismo se mantém): Hoje ele é o pai. A púbere interessada é ele (já se livrava da homossexualidade e projetava seu desejo na outra). O desejo de entrega ao homem mais forte ficava conservado. A internet, a impotência, a ausência de comércio tornava tudo mais tolerável.
A partir daqui já estoura o tamanho do artigo da Folha, e os comentários estarão no tamanho do meu desejo.
1. O paciente é então, na verdade, homossexual?
Não! Segundo a escala Kinsey*, o paciente teria nascido com um percentual de desejo homo que foi estimulado em sua infância por seu pai. É um percentual baixo, coisa de 20%. Ele é principalmente hétero. Sempre olhou e desejou mulheres, mas sempre teve vergonha de seu desejo, preferindo que elas viessem a ele, que a ele demonstrassem o desejo delas. O seu desejo por meninas púberes mistura a história com seu pai com a vergonha de seu desejo hétero, na verdade, de qualquer desejo seu.
2. O analista fez esta conexão de maneira rápida?
De jeito nenhum. Há um espaço de dez anos entre o relato do “tratamento” da oxiuríase e a ligação com a pedofilia. Simplesmente porque o cliente não queria pôr a pedofilia como assunto de investigação. O problema é que o analista tem uma memória de elefante, e viu semelhanças entre os dois assuntos. A ligação só se deu quando o paciente resolveu investigar seu desejo pedófilo, quando ele se tornou predominante.
3. Podemos suspeitar que toda pedofilia tem sua origem no desejo homossexual?
Este é um erro comum a partir de um conceito freudiano, o conceito de fetichismo. Fetichismo vem do francês fetiche, que vem do português feitiço, artifício que transforma uma pessoa em uma coisa. O pedófilo seria um fetichista. Seu objeto sexual não é uma pessoa, com todas as suas complexidades e interações, com todas suas necessidades de negociações. É uma coisa. É como disse o Stanislaw Ponte Preta: “a vantagem da punheta é não ter que levá-la em casa depois”. Freud de fato pensou que a homossexualidade fosse um derivado do fetichismo, pois entre iguais não há diferenças, não há trabalho para que o desejo se realize, é como a masturbação.
Realmente, há uma concretização da homossexualidade masculina que é fetichista, que é masturbatória. É só pensar nos quartos escuros das boates gays, nas rapidinhas dos mictórios públicos, onde se vê que o menos importante é o interlocutor. Ele seria um pouco mais do que um retrato numa revista pornô.
Mas o mesmo se poderia dizer da heterossexualidade. O que quer dizer o “ficar”? O quer dizer o “one night stand”? O que quer dizer “a fila tem que andar”? Dos casamentos de dois meses à luz dos holofotes? Por acaso é um trabalho de sintonizar as diferenças? Por acaso é uma vontade de mergulhar com gosto no universo do que é o outro, no interesse pelas diferenças?
O mesmo mecanismo do fetichismo, a defesa medrosa contra o mundo, pode operar na heterossexualidade.
Freud queria dizer que o ser humano tem medo do mundo. Da ameaça de sobrevivência, da perda de proteção.
A criança tem a natureza humana empurrando seu desejo em direção àquela coisa (o mundo), em direção a sair de casa, a entrar em contato com o outro, mas tem o terror de ter que lidar com ele, como ele possa reagir, rejeitar, xingar, desprestigiar, ridicularizar, humilhar, expor…
“Angst”. Parece angústia, não é? Pois é a palavra alemã para “medo”. É, para mim, dos melhores descobrimentos de Freud. Porque ele se autocriticou. Começou pensando que era a neurose que causava a angústia. Terminou deduzindo que era a angústia que causava a neurose. Deduzindo que a neurose, assim como a perversão, eram mecanismos de defesa contra o MEDO!
Ter desejo é ter medo. “Eu quero comprar aquele casaco, mas… (quanto ele vai custar?; o que vão pensar de mim?; não será meio jovem para a minha idade?)”.
Ciúme. Ter ciúme é ter medo, por ter desejo. A falta de ciúme só se dá na falta de desejo. Na indiferença. Não importa que tipo de ciúme, se sexual, se de prestígio.
Os homens tendem a ter mais ciúmes sexuais. Também, coitados, correm o risco de criar um filho que não é deles…
As mulheres tendem a ter mais ciúmes de prestígio. Elas têm certeza absoluta de que o filho é delas.
Freud disse que não sabia o que as mulheres desejavam. A psicologia evolucionista descobriu: as mulheres desejam casamento, garantias e prestígio, coisas que as ajudem a criar, enriqueçam e melhorem suas crias, porque temem o horror do abandono (é um desejo genético que elas nem percebem).
Mas eu estou falando de quê? Do “angst”, do medo do mundo que produz os mecanismos de defesa, em mim e em vocês. Quanto maior o desejo, maior o medo. Você não teria um medo da prostituta, nada que se comparasse com o medo da sua deusa da sala de aula. Ela estava em um pedestal muito acima de você. A outra estava numa posição em que o pedestal era você.
Seremos nós muito diferentes do pedófilo? Não estaremos buscando objetos deslocados de nossos desejos que afastem nossos medos? O consumismo que dá um alívio instantâneo e fugaz. O alcoolismo, que faz o mesmo. “Workaholism” e outros vícios, sem número, prometem a mesma coisa.
Quando concebemos o mundo como algo hostil, ameaçador, quando fomos ensinados que assim era, que precisaríamos de munição, armadura e fardão, para que nos respeitassem, para que escapássemos do mundo-dragão ao ponto de que um motorista de taxi nos dissesse “Sois rei?”, deixamos de lado nossa simplicidade, nossa vontade de brincar, nossa desimportância, nossa efemeridade, porque acreditávamos no que nos disseram. “É preciso ser sério, grande e imortal”, e isto foi pesado em nossas vidas.
Pois foi assim que nos apresentaram o mundo: como algo avesso a nossas pessoas e nossas vontades. Como algo que poderia atendê-las por vias transversas e invisíveis. Como no caso do pedófilo, algo a que teríamos sempre nos sentir devedores, transgressores, prestes a ser desmascarados e condenados.
É este o peso que carregamos. É este o peso que não queremos passar adiante. Nós somos formadores de opinião, sabemos o que nos massacra. Vamos retirar este peso das gerações vindouras, em cada ponto em que pudermos atuar. Não agiremos como o idiota da sala de aula que nos deu um cascudo e disse: “Passa adiante, senão vira elefante”. Nós sabemos que não viraremos elefante. E não passaremos adiante.
Mas como fazer isto? A chave toda está na maneira como criamos nossos filhos. Precisamos saber que eles nascem, não como uma tábula rasa, mas com um cérebro cheio de programas operacionais constituídos por sua genética. Meu ídolo da psicologia evolucionista, Stephen Pinker, mapeou que seremos 50% frutos da genética e 50% frutos da criação única. Pois então vamos atender ao desejo secreto e politicamente incorreto da eugenia: procriar com quem não seja psicopata, que seja correto, ético, inteligente e desejoso de cuidar dos filhos. Vamos nos associar a esta pessoa para cuidar dos outros 50%: a criação única.
Se ele nasceu com um software chamado “das über ich”, conhecido como superego, mas em alemão fluente significa “o que está acima de mim”
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Materia publicado na Folha de São Paulo.