domingo, 29 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - “O que é consciência, em psicanálise?”

 


O AMIGO PERGUNTA 

“O que é consciência, em psicanálise?”

FD: É uma pequena janela por onde nossa atenção olha; aquilo que é visto fica consciente para nós.

Freud fez essa divisão, na primeira vez em que ele esquematizou nosso aparelho psíquico (ou “mente”): havia um enorme arquivo de memórias e impulsos (o jeito como ele chamou o equivalente aos instintos animais, em nós) no INCONSCIENTE. Inalcançável e inatingível pela nossa vontade, mas podíamos deduzir que ele estava lá pelos sinais de sua existência, como os sonhos, p.ex.

Em seguida, outro departamento cheio de memórias: o PRÉ-CONSCIENTE. Esse é relativamente fácil de acessar, basta que nossa atenção se volte para ele. Como exemplo, agora vou falar de algo que estava até então no seu pré-consciente, mas... no momento em que você vir a palavra, sua atenção se voltará para aquele arquivo e a memória se tornará consciente: seu pai.

É, eu sei, você não estava pensando nele, mas um monte de memórias apareceu com as simples letrinhas finais do parágrafo anterior.

Foi por isso que Freud nem deu espaço – no desenho que fez – para o CONSCIENTE: ele é muito pequeno e fugaz, completamente dependente da nossa atenção.

Enquanto você lê este texto, sua atenção pula para fora e para dentro, ligando as palavras lidas a seus sentidos, a suas memórias pré-conscientes (e elas se tornam conscientes nessa hora), a pensamentos e deduções provocados pelo texto etc.

É claro, sua atenção também pode pular para súbitas mensagens que apareceram na tela do celular, para aquela vontade de beliscar alguma coisa na cozinha...

E se ela pular muito, você pode até não ter chegado aqui no texto. Hoje em dia, chamam isso de DDAH (“distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade”), mas para ser sincero, a principal razão pela qual nossa atenção é desviada está na chatura dos textos.

O AMIGO PERGUNTA - “O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

 


O AMIGO PERGUNTA 
“O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

Francisco Daudt: Nada... a menos que o problema do outro seja, afinal, um problema do cliente. Inúmeras vezes diagnostiquei e sugeri médico, advogado etc. para problemas que acabavam afetando meus pacientes.

Mas dois casos são cômicos e ilustrativos. A mãe idosa da paciente a estava levando à loucura. Era uma irritabilidade claramente depressiva, e a mãe, autoritária e teimosa, se recusava a ir a médico ou achar que havia algum problema com ela. 

Eu disse à paciente: “Você vai comprar esse antidepressivo”. “Mas eu não estou deprimida”, disse ela. “Não é para você, é para sua mãe. Eu sei que ela não aceita remédios, você diga que é um revitalizante supermoderno para idosos” (o que não é, afinal, uma mentira).

A mãe adorou, a vida da minha paciente mudou significativamente para melhor. Tempos depois, recebo um telefonema da mãe (os telefones funcionavam, na época): “Doutor, minha filha está viajando, o Sr. poderia me dar uma receita daquela vitamina maravilhosa que eu tomo?”

O segundo caso é do marido da cliente, supostamente sofrendo de impotência. Já havia tentado de tudo... e nada. Ele nem chegava perto dela; se se beijavam, logo ele arranjava uma desculpa para se afastar.

Só que aquilo não me parecia impotência, e sim inibição. O marido não era chegado ao pensamento reflexivo, não adiantava “conversar” com ele. A meu ver, ele chegava na cama com uma tonelada de cobranças e culpas, com enormes expectativas de desempenho. Convenhamos, é um conjunto de pensamentos nada inspirador.

Como a coisa se arrastava por meses (em todos os sentidos), expliquei minha impressão à paciente e a instruí. É isso mesmo, fiz um côutchingue sexual para ela.

Na noite seguinte, os dois na cama, ela disse ao marido: “Não quero sexo, quero chamego e beijinho; mesmo se você se animar, eu vou dizer não. Só quero poder usar o vibrador e ter um orgasmo, enquanto a gente se faz carinho”. 

Docemente constrangido, ele concordou... e foi um sucesso. Terminada a função, ele comentou: “Mas é tão simples assim? Que beleza!”

Quando amanheceu, ele lhe disse: “Sonhei que te comia... e foi ótimo; na verdade, eu estou com vontade de te comer agora!”

E comeu.










sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

 




Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

Francisco Daudt: É uma relação fortemente... negativa. Quanto mais cruel o Superego, mais a gente briga com ele, e isso quer dizer ora se submeter às suas críticas (e se achar um merda), ora se identificar com ele e criticar os outros (e posar de fodão, dizendo que merda são os outros).

Só que a doença, o vício fodão-merda passa ao largo, passa longe da autoestima. Quando a pessoa se sente um merda, claro que a autoestima está arruinada. Mas quando ela posa de fodona, também!
Um fodão é um inseguro; ele precisa de afirmação constante para não se sentir um merda. Isso não é autoestima elevada.

O que nos leva a perguntar: afinal, o que é autoestima?

Estimar-se é estar em paz consigo mesmo; é estar “na sua”. Tem a ver com serenidade, não com briga. Não é vaidade nem orgulho, é sim um estado de desimportância que se importa, consigo e com os outros. Uma autoavaliação de que você “é bom o bastante”, um sentimento que não ocupa a sua mente, muito menos a aluga; ao contrário, deixa-a livre para outros assuntos que te interessem. 

A autoestima é como a saúde do seu pé: você confia nele, e ele nem está te chamando a atenção, só pensou nele agora porque eu falei.

É claro que isso não funciona assim o tempo todo, isso é um retrato do ótimo; na verdade, é mais uma meta a se ambicionar que uma situação a que se chegue.

E para se chegar nela, é preciso sim questionar o poder do Superego; entender que ele é um juiz tirano, um caga-regras que tem você como primeira vítima, mas não a única, pois você pode se defender dele criticando os outros. 

Infelizmente, isso só faz fortalecê-lo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: Zonas Erógenas

 O Manuel perguntou ao amigo Joaquim:

— Ó Joaquim, tua mulher transa contigo, é pur amore, ou é pur interesse?

Depois de uma pausa pensativa, Joaquim respondeu:

— Ó Manél, deve ser pur amore, pois que ela não mostra o menor interesse…

Quando alguns amigos souberam que eu ia escrever sobre o título, me disseram que ele era batido. Eles têm razão. “Só não contavam com a minha astúcia” para citar o Chavez da TV, por quem tenho admiração. Do outro tenho asco.

Pois minha intenção é pegar o mote para falar sobre o que vai acontecendo na vida dos casais, principalmente depois que vêm os filhos. Sobretudo numa transformação que se passa na mulher, que é origem freqüente das depressões pósparto.

Vamos começar com as mulheres. É freqüente que, ao lhes nascer o primeiro neném, caia-lhes na cabeça uma supraidentidade que as deixa tontas: “Agora eu não sou mais a Mônica, eu sou uma Mãe”. A Mônica era uma garota alegre, sapeca, gostava do esporte, tanto que ela e o Eduardo viveram uma paixão tórrida, do tipo “bicho pega”, até que se casaram e logo engravidaram.

Três meses de enjôo. Ela não queria nem olhar para o Eduardo, quanto mais para o tal do “bicho”. Ainda mais que o obstetra havia dito para eles maneirarem, pois era um tempo delicado, dando assim uma monumentalidade à gravidez e jogando o casal de marido e mulher ainda mais para o segundo plano.

Pois é aí que entram as tais zonas erógenas de que eu queria falar. Quem esperou as tais áreas anatômicas tão batidas vai ficar aliviado. Leia a historinha a seguir:

Há um filme (Sex education) em que os filhos de Ed Harris, preadolescentes, resolvem contratar uma prostituta para que ela lhes ensine os truques eróticos de enlouquecer uma mulher. O filme tem um final feliz, com o pai se encantando pela moça, e os filhos fazendo uma pergunta definitiva: “Existe um ponto na mulher que, se tocado, ela é levada à loucura?”. E Melanie Griffith responde: “Sim, existe”. E aponta o coração.

Eros, assim como a Philia e o Ágape, é uma das formas de amor que os gregos descreveram, tomando o nome de um deus (“graças a ele, os homens conheciam as alegrias da amizade, as doçuras da ternura, os prazeres e as dores que acompanham o amor verdadeiro”- Nova mitologia clássica; Mario Meunier, 1976), portanto as zonas erógenas – geradoras de Eros – de que estarei tratando aqui, são áreas mentais de produção de amor.

Quem salvará Mônica do peso da maternidade? Quem lhe ensinará que a moleca não morreu? Quem dirá ao Eduardo que o casal só precisa de ajuda para continuar um casal?  Que existe transa mais calma que o “bicho pega”, com notas mais ternas, mais carinhosas, talvez mais acolhedoras para o momento de fragilidade. Que a Mônica não virou santa intocável porque está se adquirindo uma nova condição (que não anula as anteriores). Que escola de medicina ensinará o obstetra que ele não é o proprietário da “gestante”, que não deve olhar para o marido como um intruso, mesmo se ele conhece Mônica desde que ela era uma garotinha, e que Eduardo é, sim, mais importante do que ele, e que se houver realmente alguma razão médica que impeça a transa, existe sempre o chamego, e o chamego dá prazer ao coração.

Partilhar

5

Material publicado na Folha de São Paulo.

(Publicado em 11 de junho de 2012)


Artigos: Eduardo e Mônica II

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

 

Eduardo e Mônica tiveram um bom aconselhamento de como criar os filhos, fizeram um bom casal e geraram dois filhinhos, Cristina e Rodrigo, com três anos de diferença.

Eduardo deslumbrou-se com a dádiva do feminismo: a paternidade participativa. Acordou de madrugada, trocou fraldas, deu mamadeira, pôs para arrotar, ninou na cadeira de balanço, deixando Mônica dormir, um gesto de amor com filha e mãe.

Quando Cristina cresceu, Eduardo viu-a, aos cinco anos, na banheira, deixando a água da torneira correr sobre seus genitais.

— É uma delícia, não é, filha?

—Como você sabe, pai?

—Porque o pai já teve a tua idade, ora! Mas você já experimentou o chuveirinho do bidê?

—Já…

—E é bom também?

—É…

—Então eu vou te pedir que use o chuveirinho do bidê antes que a água de nossa caixa vá toda embora.

Adoro esta história de Eduardo com sua filha. A aceitação de sua sexualidade com um ensinamento de economia.

O fato é que quando Rodrigo tinha doze anos veio perguntar para o pai se masturbação doía.

— Bem, (disse Eduardo), depois da quinta vez em seguida, dói, sim!

— Ah, bom! disse Rodrigo.

Eduardo e Mônica passaram aos filhos o fato de que sexo era algo agradável da vida: nenhum drama; nenhum vexame; direito ao desejo; algo da natureza; se Deus nos deu, ele não gostaria que nos envergonhássemos dele.

Quando Cristina tinha uns quinze anos, Eduardo “flagrou” ela ficando com um amiguinho numa festa. Ela já tinha explicado para ele a diferença entre ficar, estar ficando, namorar e morar junto (esse negócio de noivar “é para gay, pai”, e casar, bom, pode ser). Eduardo ficou meio perplexo, mas entendeu. Cristina veio falar com o pai, depois.

— Pai, você ficou meio bolado de me ver ficando?

Eduardo foi brilhante:

— Não, minha filha. “Ficar” é como brincar de sexo. E, você sabe, sexo é como dirigir carro: delicioso, mas que envolve riscos graves. 

Você vê que eu tenho feito você aprender a andar de velocípede, de bicicleta, de patins, de cavalo, e tudo para quê? Para que você tenha noção de direção, distâncias, prudência, estabilidade, de responsabilidade, de respeito com o outro, de cuidados com você, e com o outro. Obediência a regras, de exigência que o outro obedeça a regras.

Era tudo uma brincadeira que envolvia um conceito: você está se preparando para uma prática que envolve algo muito mais sério: o risco de morrer, de matar e de ter sua reputação arruinada. Isto vale para a prática da direção de automóveis quanto para a prática do sexo. colocar cinto de segurança, por camisinha, não beber antes de dirigir, não ficar bêbada com alguém que você não confia, e assim por diante.

Cristina abraçou seu pai, grata e com orgulho.

Partilhar

2

Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: Falar sobre sexo

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

It’s a puzzlement!”, como diria o Yul Brynner, como rei do Sião (“é uma complicação, uma encrenca”).

Você pode tentar a linguagem de um médico, e ela será engravatada ou/e incompreensível, mas ninguém vai ficar embaraçado.

Você pode tentar ser mais… digamos, pedestre. Todos vão te compreender, mas com rubor nas faces.

Você pode ser infantil, e chamar a genitália feminina de “pipita” e a masculina de “piupiu”, “bilau” e quejandos (se você for ao dicionário, vai encontrar uma extensa sinonímia para ambos – experimente, que é de rolar de rir), todos vão te entender, mas você soará ridículo.

Aliás, tenho uma sobrinha que é bióloga de renome mundial, e me explicou que quando queria se referir a seus próprios genitais, dizia “lá”, acompanhado de um gesto das mãos.

Quando eu dei curso de teoria freudiana (por dez anos, que deus me perdoe), fiz várias vezes um teste com as turmas: “coloquem em ordem anatômica os seguintes itens do períneo feminino, vindo da barriga para as costas:”

  1. ânus

  2. meato urinário (o lugar por onde sai o xixi)

  3. clitóris

  4. canal vaginal

O índice de erro era alto, tanto entre os homens quanto entre as mulheres. Piorava quando a questão era “qual a diferença entre a vulva e a vagina?” ou “o que são os grandes e pequenos lábios”?

Você está entendendo a encrenca em que me meti quando me pediram para escrever um artigo mensal sobre sexo? (a propósito, se você tentou responder à pergunta acima, o correto é 3-2-4-1). Acertou? Duvido.

Quantos homens sabem que seu pênis é um clitóris crescido? Que seu escroto (que me desculpem por usar a palavra mais feia da língua portuguesa, mas ela é precisa, não é um palavrão) são grandes lábios femininos costurados para conter ovários que desceram e se transformaram em testículos? Que nós todos começamos mulheres, e, em 49% dos casos os hormônios nos transformaram em homens, ou, em 51%, nos mantiveram mulheres. É. Vai engolindo esta!

Pega um espelho para ver as costuras, parecidas com uma cicatriz, para descobrir que elas vão do ventre do pênis (é, a parte de baixo é a barriga e a de cima são as costas) e continuam até o ânus, e que tudo isso se chama períneo, como nas mulheres, e sim, que é gostoso como o demo de se acariciar. Morra de vergonha.

Ou você pensava que as mulheres fazem perineoplastia porque só elas tem esse treco? Você também tem.

E o ânus? Ai, ai, ai… ele tem uma mucosa sensível em torno que costuma ser, para ambos os gêneros, uma zona erógena, quer dizer, gostosa de se estimular. Se for com outra mucosa então, como a língua, nem se fala. Aliás, perde-se a fala.

Ele tem dois pequenos esfíncteres, – são músculos de abrir e fechar, como os das íris dos olhos (mais luz, mais eles fecham; menos luz, mais eles abrem), que, além de serem funcionais – por isso é que a gente pode conter as emissões de gases- são também potenciais zonas de prazer.

Como falar dessas coisas? Vou ter que arranjar um palavreado nem tão lá nem tão cá.

Você percebe em que encrenca eu me meti?

Partilhar

1

Material publicado na Folha de São Paulo.


Artigos: A Complexidade do Desejo

 



(Publicado em 11 de junho de 2012)

Um cliente me pergunta: “eu sou um pedófilo?” Ou melhor, se seu desejo por púberes femininas (é quando começam a surgir mamas e ancas) seria um desvio patológico, ou uma dessas coisas da natureza, como o desejo homossexual. “Não sei dizer, mas minorias de minorias costumam ser patologias. Precisamos investigar. Vamos fazer o retrato falado de seu desejo”. 

  1. A menina faz contato visual com ele na piscina e se mostra interessada, pois ele retribui, apenas com os olhos. “Ele não fez nada”.

  2. A menina se aproxima e monta em sua coxa, que ele coloca em boa posição. Ela começa a se masturbar, esfregando-se.

  3. Ele tem uma ereção imediata e um orgasmo.

  4. Ambos se afastam sem trocar palavra.

Algumas ocorrências foram assim. Hoje há outras, pela internet.

  1. Não me interesso por imagens pagas, pois seria uma coisa muito feia (diferente do “ele não fez nada”).

  2. Tenho repugnância pelas imagens em que as crianças parecem incomodadas com a abordagem erótica.

  3. Imagens em que a púbere parece interessada, gostando do que está acontecendo, ou melhor, ativa na coisa, são essas que me dão maior prazer.

O paciente é hétero (não olha para homens), mas hoje é impotente, (apesar de só ter 63 anos) incapaz de se masturbar. Sua excitação com as imagens é “difusa”, porém devaneia com o passado, em que meninas de carne e osso interagiam. Supõe que teria orgasmo mesmo sem ereção, mas se contém, “por que é errado”.

Vejo nele uma busca de compromisso entre transgressão e ética, o que não faz dele um psicopata. Primeiro, ao apreciar as púberes com desejo próprio, e não como vítimas de um bárbaro. Depois, que ele nunca as toma e as penetra, mas deixa-se servir como um objeto de desejo delas. Seu desejo é satisfeito porque atendeu ao desejo delas. É semelhante à fantasia que algumas mulheres usam ao se masturbar, de que estão sendo estupradas: elas não fizeram nada, e nada puderam fazer. A possibilidade de negar seus desejos retira suas culpas e libera seus orgasmos.

Depois de muito tempo de investigação, uma pista: aos sete anos, o paciente sofria de oxiuríase (pequenos vermes parecendo linhas se remexem na mucosa anal, provocando coceiras, com ou sem prazer). Sendo os remédios inócuos, seu pai fazia, no quarto, meticulosas operações manuais de retirada dos vermes.

O filho aprendeu. De quando em quando vinha ao pai, e, sem palavras, indicava o quarto com a cabeça. O pai se levantava, sem nada dizer, e, na cadeira do quarto, com o filho desnudo dobrado sobre seu colo, separava-lhe as nádegas com cuidado para retirar com os dedos os oxiúros. Era uma demorada carícia naquela mucosa sensível. Um processo que durou meses.

Chegamos a uma hipótese com que ele concordou. Seu desejo homossexual passivo pelo pai havia encontrado uma saída não neurótica, mas perversa (quando o erotismo se mantém): Hoje ele é o pai. A púbere interessada é ele (já se livrava da homossexualidade e projetava seu desejo na outra). O desejo de entrega ao homem mais forte ficava conservado. A internet, a impotência, a ausência de comércio tornava tudo mais tolerável.

A partir daqui já estoura o tamanho do artigo da Folha, e os comentários estarão no tamanho do meu desejo.

1. O paciente é então, na verdade, homossexual?

Não! Segundo a escala Kinsey*, o paciente teria nascido com um percentual de desejo homo que foi estimulado em sua infância por seu pai. É um percentual baixo, coisa de 20%. Ele é principalmente hétero. Sempre olhou e desejou mulheres, mas sempre teve vergonha de seu desejo, preferindo que elas viessem a ele, que a ele demonstrassem o desejo delas. O seu desejo por meninas púberes mistura a história com seu pai com a vergonha de seu desejo hétero, na verdade, de qualquer desejo seu.

2. O analista fez esta conexão de maneira rápida?

De jeito nenhum. Há um espaço de dez anos entre o relato do “tratamento” da oxiuríase e a ligação com a pedofilia. Simplesmente porque o cliente não queria pôr a pedofilia como assunto de investigação. O problema é que o analista tem uma memória de elefante, e viu semelhanças entre os dois assuntos. A ligação só se deu quando o paciente resolveu investigar seu desejo pedófilo, quando ele se tornou predominante.

3. Podemos suspeitar que toda pedofilia tem sua origem no desejo homossexual?

 Este é um erro comum a partir de um conceito freudiano, o conceito de fetichismo. Fetichismo vem do francês fetiche, que vem do português feitiço, artifício que transforma uma pessoa em uma coisa. O pedófilo seria um fetichista. Seu objeto sexual não é uma pessoa, com todas as suas complexidades e interações, com todas suas necessidades de negociações. É uma coisa. É como disse o Stanislaw Ponte Preta: “a vantagem da punheta é não ter que levá-la em casa depois”. Freud de fato pensou que a homossexualidade fosse um derivado do fetichismo, pois entre iguais não há diferenças, não há trabalho para que o desejo se realize, é como a masturbação.

Realmente, há uma concretização da homossexualidade masculina que é fetichista, que é masturbatória. É só pensar nos quartos escuros das boates gays, nas rapidinhas dos mictórios públicos, onde se vê que o menos importante é o interlocutor. Ele seria um pouco mais do que um retrato numa revista pornô.

Mas o mesmo se poderia dizer da heterossexualidade. O que quer dizer o “ficar”? O quer dizer o “one night stand”? O que quer dizer “a fila tem que andar”? Dos casamentos de dois meses à luz dos holofotes? Por acaso é um trabalho de sintonizar as diferenças? Por acaso é uma vontade de mergulhar com gosto no universo do que é o outro, no interesse pelas diferenças?

O mesmo mecanismo do fetichismo, a defesa medrosa contra o mundo, pode operar na heterossexualidade.

Freud queria dizer que o ser humano tem medo do mundo. Da ameaça de sobrevivência, da perda de proteção.

A criança tem a natureza humana empurrando seu desejo em direção àquela coisa (o mundo), em direção a sair de casa, a entrar em contato com o outro, mas tem o terror de ter que lidar com ele, como ele possa reagir, rejeitar, xingar, desprestigiar, ridicularizar, humilhar, expor…

Angst”. Parece angústia, não é? Pois é a palavra alemã para “medo”. É, para mim, dos melhores descobrimentos de Freud. Porque ele se autocriticou. Começou pensando que era a neurose que causava a angústia. Terminou deduzindo que era a angústia que causava a neurose. Deduzindo que a neurose, assim como a perversão, eram mecanismos de defesa contra o MEDO!

Ter desejo é ter medo. “Eu quero comprar aquele casaco, mas… (quanto ele vai custar?; o que vão pensar de mim?; não será meio jovem para a minha idade?)”.

Ciúme. Ter ciúme é ter medo, por ter desejo. A falta de ciúme só se dá na falta de desejo. Na indiferença. Não importa que tipo de ciúme, se sexual, se de prestígio.

Os homens tendem a ter mais ciúmes sexuais. Também, coitados, correm o risco de criar um filho que não é deles…

As mulheres tendem a ter mais ciúmes de prestígio. Elas têm certeza absoluta de que o filho é delas.

Freud disse que não sabia o que as mulheres desejavam. A psicologia evolucionista descobriu: as mulheres desejam casamento, garantias e prestígio, coisas que as ajudem a criar, enriqueçam e melhorem suas crias, porque temem o horror do abandono (é um desejo genético que elas nem percebem).

Mas eu estou falando de quê? Do “angst”, do medo do mundo que produz os mecanismos de defesa, em mim e em vocês. Quanto maior o desejo, maior o medo. Você não teria um medo da prostituta, nada que se comparasse com o medo da sua deusa da sala de aula. Ela estava em um pedestal muito acima de você. A outra estava numa posição em que o pedestal era você.

Seremos nós muito diferentes do pedófilo? Não estaremos buscando objetos deslocados de nossos desejos que afastem nossos medos? O consumismo que dá um alívio instantâneo e fugaz. O alcoolismo, que faz o mesmo. “Workaholism” e outros vícios, sem número, prometem a mesma coisa.

Quando concebemos o mundo como algo hostil, ameaçador, quando fomos ensinados que assim era, que precisaríamos de munição, armadura e fardão, para que nos respeitassem, para que escapássemos do mundo-dragão ao ponto de que um motorista de taxi nos dissesse “Sois rei?”, deixamos de lado nossa simplicidade, nossa vontade de brincar, nossa desimportância, nossa efemeridade, porque acreditávamos no que nos disseram. “É preciso ser sério, grande e imortal”, e isto foi pesado em nossas vidas.

Pois foi assim que nos apresentaram o mundo: como algo avesso a nossas pessoas e nossas vontades. Como algo que poderia atendê-las por vias transversas e invisíveis. Como no caso do pedófilo, algo a que teríamos sempre nos sentir devedores, transgressores, prestes a ser desmascarados e condenados.

É este o peso que carregamos. É este o peso que não queremos passar adiante. Nós somos formadores de opinião, sabemos o que nos massacra. Vamos retirar este peso das gerações vindouras, em cada ponto em que pudermos atuar. Não agiremos como o idiota da sala de aula que nos deu um cascudo e disse: “Passa adiante, senão vira elefante”. Nós sabemos que não viraremos elefante. E não passaremos adiante.

Mas como fazer isto? A chave toda está na maneira como criamos nossos filhos. Precisamos saber que eles nascem, não como uma tábula rasa, mas com um cérebro cheio de programas operacionais constituídos por sua genética. Meu ídolo da psicologia evolucionista, Stephen Pinker, mapeou que seremos 50% frutos da genética e 50% frutos da criação única. Pois então vamos atender ao desejo secreto e politicamente incorreto da eugenia: procriar com quem não seja psicopata, que seja correto, ético, inteligente e desejoso de cuidar dos filhos. Vamos nos associar a esta pessoa para cuidar dos outros 50%: a criação única.

Se ele nasceu com um software chamado “das über ich”, conhecido como superego, mas em alemão fluente significa “o que está acima de mim”

Partilhar

3

Materia publicado na Folha de São Paulo.