terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: A Obesidade Mórbida Mora Na Alma

 Artigo Encomendado

Antes de mais nada quero dizer que fui convidado para comentar o drama que envolve o antes e o depois do tratamento cirúrgico da obesidade mórbida sem nunca ter feito parte de qualquer equipe multidisciplinar que tratasse do assunto, sem ser qualquer espécie de especialista na doença. Minhas credenciais se resumem ao fato de ser um psicanalista admirado por quem me convidou (um ilustre portador da doença, operado) pelo fato de me debruçar com humildade, carinho, vontade de entender e perseverança sobre o que há de mais complexo sobre a face da terra, a mente humana, e também por, sendo eu mesmo um eterno candidato à obesidade mórbida, ter sentido na pele o que ela é, além de haver tratado alguns pacientes com essa e com doenças semelhantes. Isto posto, vamos lá.

O fato de existir uma cirurgia de redução gastrointestinal é uma esperança de vida integrada ao mundo, ou de vida, simplesmente, para quem sofre de obesidade mórbida. A questão é que quem se opera não deixa de sofrer do problema que o levou àquela condição de risco. Fizeram a aposta de trocar a morte certa pela doença (ou a vida miserável e brutalmente limitada que esperava aquela morte) pelo risco da cirurgia, e muitos venceram essa aposta e estão aí, sobreviventes e esperançosos. No entanto a doença de origem está lá, à espreita.

Alguns pacientes vêem a cirurgia como um tamanho divisor de águas em suas vidas que buscam, como os que experimentaram a quase morte por um enfarte ou acidente, dar um novo e melhor rumo a suas existências. Tenho certeza que a grande maioria que se opera deseja isso. Para ser bem sucedido é preciso conhecer o inimigo, pois ele não foi removido com a cirurgia, já que mora principalmente na alma (aqui sem nenhuma conotação religiosa, simplesmente um nome que traduz nosso psiquismo, esse complexo de programas mentais que envolve algumas coisas compreensíveis, outras não, pelo menos no presente, todas morando no cérebro).

O que sabemos do inimigo? O que leva uma pessoa a comer tanto, ao ponto de se transformar num ser que vive as humilhações e os sofrimentos que, estou certo, já foram descritos o suficiente neste livro? Para começar, assim como o câncer, nosso inimigo aqui não é fácil de combater porque não é único, não tem apenas um fator. Isso implica ver cada pessoa como única e aprender sobre ela, conhecer o possível sobre cada fator que constitui sua doença. É melhor que isso comece antes da cirurgia, penso eu, pois a sedução para se imaginá-la como um passe de mágica, como um toque da varinha de condão que faça sumir todos os problemas, é muito grande. É importante que o paciente absorva o realismo de entender a cirurgia como um expediente heróico para salvar sua vida e dar-lhe uma nova chance de viver melhor. É preciso que ele não a entenda como a cura definitiva de seus males. É necessário focalizar e dar prioridade à compreensão de sua doença, que certamente o acompanhará pelo resto de seus dias.

Uma pergunta é comum nesses casos: quais os fatores orgânicos da doença e quais os psicológicos? Essa é uma pergunta que tinha cabimento do século passado para trás. Hoje sabemos que fatores psicológicos são fatores orgânicos: o cérebro é um órgão. Todos os seus males são bio-eletroquímicos, o diabo é que a neurociência está ainda engatinhando, basta dizer que o tratamento dos vícios ainda precisa desesperadamente da abstinência para funcionar. Na verdade a abstinência continua sendo seu carro-chefe, mesmo quando se trata de um vício de comida, coisa de que, teoricamente, não podemos nos abster.

A pergunta impertinente do parágrafo anterior, portanto, ainda precisa ser respondida. Vou tentar respondê-la. Apesar de cada vez mais podermos detectar causas orgânicas, ou pelo menos fatores orgânicos da obesidade mórbida, como um demoníaco metabolismo encravado no genoma, hereditário, pois, dois fatores psicológicos devem ser sempre procurados nela: depressão e o vício. Cabe dizer que, apesar de nem todo viciado ter uma depressão de base, todo deprimido é candidato a se viciar, não importa em quê, já que o mecanismo do vício produz um alívio momentâneo na dor da depressão.

Por que eu uso uma palavra tão feia (vício) nesses tempos tão politicamente corretos? Não daria para usar “adição”, “dependência química” ou outra menos agressiva? Um eufemismozinho? Aí é que está. Faz parte do tratamento dos vícios encarar a dura realidade, mesmo sabendo que eles não são “falta de vergonha na cara”, e sim uma doença cerebral, pois eles se incorporam de tal modo à nossa maneira de pensar que acabam por influenciar o nosso senso de ética, acabam por afetar nossa “vergonha na cara”. Os próprios Alcoólicos Anônimos, que inventaram esse eufemismo para se intitular, quando se levantam para dar depoimento nunca se declaram “sou alcoólico” e sim “alcoólatra”, porque é mais duro e verdadeiro. Você pode argumentar que a vergonha na cara afetada é efeito, e não causa. É verdade, mas depois de um certo tempo causa e efeito estão inapelavelmente misturados num… círculo vicioso, e a dignidade perdida (sempre se perde grande parte dela, senão toda, quando o vício ganha terreno) só será recuperada, junto com o senso de ética, a integridade moral, a auto admiração e estima, através de uma guerra sem trégua ao vício dentro de nós, essa mesma que esperaríamos ver o Estado executar nas cidades e no país. A metáfora vale também porque liberados os recursos que o vício consome, podemos com eles construir uma vida mais bonita para nós.

Vamos então àquela pergunta do “como é que a pessoa pode chegar a ficar daquele jeito horrível?” Eu tenho um cunhado que disse à minha irmã quando ela quis fazer plástica do rosto: “Olha que plástica é pior do que lepra!” Mas como? “É que lepra é aos poucos e você vai se acostumando, e na plástica você pode virar um monstro amanhã”. A obesidade mórbida é, portanto, como a lepra, aos poucos, e você vai se acostumando a não olhar para o espelho, a não se ver fotografado ou filmado, conservando a imagem mental que a gente tem de si mesmo e que sempre se choca com a “realidade” quando nos deparamos com esses registros. Você não deixa de alcançar a bunda para se limpar de um dia para o outro. É aos poucos que se passa para o bidê, e do bidê para o chuveiro com um escovão, e disso para o estágio final, que é entubar a ajuda de terceiros. Mas é o tal negócio: nesse processo a dignidade, a auto admiração e estima, a integridade e finalmente o senso de ética vão lentamente para o brejo.

É, portanto, o vício nosso primeiro alvo a entender. Ele se deriva de uma propensão genética (o gatilho) que alguns têm, e da vontade de obter prazer imediato, livrando-se momentaneamente de todos os problemas e preocupações, coisa que a humanidade toda tem. Quando esses dois fatores se somam temos uma dupla dinâmica quase imbatível. O que eu gostaria que existisse e que a tecnologia ainda está a nos dever? De uma terapia genética que desarmasse aquele gatilho. Estamos atrasados, pois? É verdade, e não nos resta nada a fazer senão esperar e usar dos recursos que dispomos hoje, entre eles a velha e desagradável abstinência. Posso ouvir uma pergunta (e a tenho ouvido de fato, de muitos pacientes): “você não gostaria de uma pílula que nos permitisse comer e beber à vontade sem nenhuma conseqüência danosa à saúde, sem engordar ou perder a cabeça pela embriaguez?” A resposta é curiosa: gostaria, mas não quero. Explico: gostaria, sim, porque me daria imenso gosto, inexcedível prazer. Acho que o pão francês quente com manteiga gelada é a maior invenção da humanidade, além de ser um símbolo básico de suas conquistas maiores (a agricultura e a pecuária), aquilo que permitiu a vida urbana e a filosofia.

Mas não quero, porque faz parte do nosso processo civilizatório a conquista do prazer mediato. O prazer que resulta do investimento, da construção, do aprendizado, da solidariedade, da amizade, do amor, da convivência democrática, da justiça, enfim, de todos os valores éticos que não podem ser alcançados com um estalar de dedos, que não são, portanto, imediatos. Dêem-me aquela pílula e eu passarei o resto dos meus dias (se tiver recursos para tanto) dentro de um quarto lendo, comendo pão com manteiga e bebendo leite achocolatado com açúcar, como fiz tanto na minha adolescência. Resistirei a ver meus filhos e minha mulher, pois eles podem atrasar meu prazer comilão, enfim, essas coisas que você está cansado de saber.

O paciente operado pensa freqüentemente que encontrou as tais duas pílulas na cirurgia e é por isso que muitos se dedicam a testar seus limites, a jogar com seus estômagos diminutos uma queda de braço em busca de realizar seu sonho de estabelecer residência no prazer imediato sem parecer à sociedade que é o maior dos espertos: o comedor compulsivo que “nem parece”. Como disse, o vício está lá, e não foi curado com a cirurgia.

Mas se uma pessoa operada quer combater o vício, e já que a abstinência é ainda a arma chave desse combate, como pode fazer funcionar a abstinência num território em que ela parece impossível, o comer? Ela não pode aprender a comer de tudo com moderação? Não pode operar uma “reeducação” alimentar? Para mim que vim sanfonando o peso vida afora, e que antes de ser psicanalista fui gastrenterologista e nutrólogo, vou ser sincero: falar de moderação e de reeducação para um viciado é pura balela (ou, como se diz em inglês, bullshit), se não for simples crueldade. A saída que encontrei daria um best-seller fantástico, já que os primeiros das listas americanas de livros mais vendidos falam de dieta, não fosse o fato de caber em quatro linhas, e aí eu me ferrei: não se escreve um livro com quatro linhas, nem eu tenho a cara de pau de encher lingüiça (falando em comida…) para que essas quatro linhas virem um livro. Mas como isto aqui é um mero capítulo de outro livro, aqui vai minha “descoberta”:

Álcool zero. Todo comedor sabe que qualquer álcool funciona como aperitivo, dá uma vontade de comer louca. E muito álcool produz verdadeiras devastações alimentares.

Não coma nada que seja principalmente carboidrato. A abstinência possível do comedor compulsivo é a do carboidrato, a comida mais fácil de obter (nas prateleiras de supermercados e padarias) e de segurar sem ao menos olhar, sem precisar de preparo, cozinheira nem nada. Estou convencido de que o comedor compulsivo é viciado em carboidrato. Nunca conheci ninguém viciado em aipo.

Faça um bom prato, mas não repita jamais. Entre as refeições, só líquidos de baixa caloria (refrigerantes, café, e o meu preferido: chás variados com um pouco de leite, porque é quentinho e acarinha o estômago). Sei que os operados não podem se dar ao luxo de seguir este ítem, e sinceramente não sei o que aconselhar para substitui-lo.

Get a life! Arranje uma vida para viver com sua recém adquirida dignidade, uma vida de construção de prazeres mediatos, uma vida com lugar para a beleza. A participação em grupos de apoio pode bem fazer parte dela, pois (eu sei bem disso) ajudar os outros é ajudar a si mesmo.

As medidas são drásticas, sim, mas a morte é mais, e a vida sem dignidade não vale a pena. Venho sendo cobaia dessas medidas e me dando muito bem com isso, como em nenhum tratamento antes. Porém tenho consciência de que não existe uma única obesidade mórbida e o que serve para alguns não servirá para outros.

Por fim uma palavra sobre a depressão. Não existe tempo melhor na história da humanidade para se ter depressão que o tempo atual. Os remédios são mais eficazes e mais limpos (com menos efeitos colaterais) do que nunca. E o progresso nesse campo continua. Como a depressão freqüentemente está na base das doenças compulsivas e dos vícios, os pacientes de obesidade mórbida que forem depressivos lucrarão imensamente com o tratamento medicamentoso e o acompanhamento psicoterapêutico para perseguirem o ítem 4 da minha lista: viver melhor, que é o que todos queremos.

=========

Em 13 de outubro de 2003, por solicitação de Andréa Ferreira


Diversos: Centenário (Texto em homenagem a Fabio Penna da Veiga)

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Dr. Fabio,

“A alcantácea túrcupe emana, cingindo, púcara, os zimbóreos de Altamana”.

Assim começavam os bons discursos na época em que você nasceu. Mas os tempos são outros (graças a Deus), de modo que o meu discurso não é desses. Então vamos lá:

Um brasileiro perguntou a seu amigo português:

— Você quer ir comigo a uma festa de 15 anos?

E o português:

— Escusas, mas não posso me ausentar por tanto tempo.

Pois estamos aqui, numa festa de 100 anos. Convido vocês a me acompanharem numa viagem pelo tempo:

 O que é ser centenário em 2005:

  • É ter nascido apenas quatro anos depois da morte da Rainha Victória

  • É já andar de velocípede e comer bife quando o Oscar Niemeyer e a Dercy Gonçalves nasceram

  • É ter um ano quando Santos Dumont voou com o 14bis

  • É ter 4 anos quando Carmen Miranda nasceu e 50 quando ela morreu

  • É ter 12 anos quando Kennedy nasceu, e 58 quando ele foi assassinado

  • ter sido governado por 36 presidentes da república, 3 juntas militares e 4 primeiros ministros.

  • ter sido contemporâneo de 9 papas

  • ter  12 anos quando Caruso se apresentou no Rio, e 16 quando ele morreu

  • ter nascido no ano em que Sarah Bernhardt quebrou a perna no teatro Lyrico do Rio, e 18 anos quando ela morreu

  • ter quatro anos quando o teatro Municipal foi inaugurado

  • ter esperado 16 anos para ver seu primeiro cinema falado

  • ter andado de tílburi, landau, victórias e outros veículos de tração animal, como meios de transporte comuns, e não turísticos

  • ter escapado com vida da epidemia mundial de gripe espanhola de 1918 que matou mais de 20 milhões

  • ter presenciado o nascimento do avião, da geladeira; do rádio, do raio X, do ar-condicionado; da televisão, do computador; ter passado do gramofone movido à corda, do cilindro gravado para o disco de um lado só, chamado chapa, ao 78 de dois lados, já tocado na victrola elétrica, ao LP de vinil de 33 rpm, ao surgimento do estereofônico, da fita cassete; do CD; do vídeo e do DVD, e ter desfrutado de cada um deles

  • ser centenário é ter visto o Brasil passar por várias crises, que fazem a atual não assustá-lo. Viu os 18 do forte com 19 anos, o tenentismo. Viu o golpe de Vargas acabar com a República Velha de seu avô, quando os presidentes saíam do poder mais pobres do que quando entravam; viu uma guerra civil em que brasileiros matavam brasileiros, a revolução constitucionalista de 1932; viu Plínio Salgado dizendo anauê para imitar Hitler; viu o mar de lama que fez Getúlio se suicidar; viu duas ditaduras: a de Vargas durando 15 anos, a dos militares durando 21; viu a renúncia de Jânio; viu a tentativa de Jango de transformar o país numa república sindicalista aos moldes de Perón; viu Sarney conduzindo uma economia de 80% de inflação ao mês; viu Collor seqüestrando a poupança dos brasileiros (a dele, inclusive); viu Zélia Cardoso de Mello conduzindo a economia; viu o impedimento do Collor; e last, but not the least, viu a eleição e o governo de Lula

  • ser centenário é ter 16 anos quando a princesa Isabel morreu

  • Ter 49 anos quando Getúlio Vargas se suicidou

  • Ter 21 anos quando nasceu Fidel Castro

  • Ter 22 quando Charles Lindenberg cruzou o Atlântico

  • Ele tinha 12 anos quando aconteceu a revolução soviética e 13 quando o czar e sua família foram assassinados

  • 9 anos quando eclodiu a 1a guerra mundial e 40 quando a segunda guerra terminou

  • é ter nascido no mesmo ano que Sartre; Greta Garbo e Howard Hughes

  • É ter sido contemporâneo, por exemplo:
    Dos escritores Julio Verne; sir Arthur Conan Doyle; Rudyard Kypling; Machado de Assis; Euclides da Cunha; Anatole France; Fernando Pessoa; Franz Kafka e Bernard Shaw;
    Dos políticos Ruy Barbosa; Teddy Roosevelt; Joaquim Nabuco; Pinheiro Machado e de Lenin;
    Dos pintores Claude Monet; Cézanne; Renoir; Degas; Pedro Américo; Gustav Klimt e Modigliani;
    Dos compositores Puccini; Elgar (de Pompa e Circunstância); Debussy; Chiquinha Gonzaga; Ravel e Rachmaninof;
    E de gente como o Dreyfus (a favor de quem Zola escreveu o “j’accuse”), o xerife Wyatt Earp e Buffalo Bill.

Quando ele nasceu:

  • O império brasileiro havia terminado 16 anos antes. Em termos atuais, um fato tão antigo quanto a eleição do Collor

  • Dom Pedro II havia morrido 6 anos antes

  • No caso específico do Dr. Fabio, ser centenário é ser o mais antigo dos ex-alunos do Sto. Inácio, o decano dos sócios do Fluminense, e o mais idoso engenheiro no Brasil em atividade.

  • Ele estaria com sete anos, e seria provavelmente salvo do naufrágio do Titanic.

  • Por fim, ser centenário é ter sobrevivido a amigos e colegas de colégio e vê-los transformados em placas, como a da  Rua Editor José Olympio, do Viaduto Haroldo Poland ou da Rodovia Amaral Peixoto, e ver seu melhor amigo da vida inteira, seu irmão de coração, o Feliciano, virar a Rua Engenheiro Penna Chaves, transversal da Lopes Quintas. Nas palavras de Machado de Assis, “Os amigos que tenho são novos. Os antigos estão estudando a geologia dos campos santos”.

Entro aqui na segunda parte desse petit mot, que por sorte é a última, antes que ele deixe de ser petit

O HUMOR NA VIDA DO DR. FABIO

Se  há alguma coisa além da genética que pode ter contribuído para meu pai se tornar centenário, essa foi seu humor afiado. Às vezes involuntário. Quando pequeno, e morava no palácio do Catete, divertia-se atirando seus brinquedos pela amurada do terraço, em direção à rua Silveira Martins. Pouco mais tarde, filho do ministro-chefe  da Casa civil (que na época era um cargo ocupado por gente honrada), estava já acostumado às modernidades, como andar de automóvel. Foi quando um mendigo bateu pedindo esmola à porta de sua casa em Petrópolis. Reparando no sapato furado do pedinte, saíu-se com uma solução brilhante: – Por quê o senhor não anda de carro, para poupar os sapatos?

Quando depois que seu primo, o Almirante Penna Botto, desistiu de bombardear Copacabana do destroier em que abrigava o pretendente à presidência, Carlos Luz, deu-se o seguinte diálogo:

Meu pai: Mas almirante, por que o senhor não atirou?

Penna Botto: Ah, Fabio, eu poderia matar inocentes.

Fabio: Almirante, para matar inocentes o senhor iria precisar de muita mira.

Na década de 20 Fabio foi infectado pela epidemia de trocadilhos que assolava o país, considerados então como o máximo da presença de espírito. Os líderes desse movimento eram os freqüentadores da Confeitaria Colombo, entre eles, Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Olavo Bilac, protagonistas de um repente que ficou célebre como o “trocadilho dos cereais”: cansado, Emílio levanta-se para se retirar. E aí começa a pândega: “Emílio, não consinto que se evada” diz Bastos Tigre. “Se o fazes, contigo me intrigo!”. Bilac, dando a volta na mesa, empurra Emílio de volta à cadeira, e exclama, exultante: “Sentei-o”. Conformado, Emílio arremata: “Vocês hoje estão com a veia!” Este episódio ganhou recentemente o infame título, derivado da mesma doença da época: “Cereal serial” .

Pois dr. Fabio ficou contaminado para sempre, e toda vez que houve oportunidade, lá vinha ele transformando qualquer assunto pesado numa boutade, o que foi uma grande contribuição para que nós não nos levássemos a sério. Uma crise no congresso que despertou sectarismos e intransigências, fez com que ele dissesse: “Isso é estranho, pois o congresso sempre foi conhecido como uma grande casa de tolerância”. Para os mais novos, casa de tolerância era o nome que se dava então ao que o Ancelmo Góis chama hoje de casa de saliência. Quando seu humor se tornava mais picante, em nome da modéstia, ele usava os trocadilhos franceses, seus amados calembours, sempre tendo D. Lygia a lhe corrigir a pronúncia, o que sempre foi uma brincadeira particular entre eles. Mas também podia usar as charadas. A mais saborosa entre elas, em que o sotaque lusitano é necessário, eu vou ter a ousadia de reproduzir aqui, mas, fique tranqüilo, meu pai, não vou dar a solução*: “abre e fecha sem ter mola, 1 – andam aos pulinhos na mata, 2 – conceito: quisera ter três”.

Seu humor se revelava até nos atos falhos: Fabio adolescente, em casa de seus pais, constatou a chegada de surpresa de uns parentes bem na hora do jantar. Meu avô Edmundo, homem gentil por natureza, entreteve os primos na sala enquanto a família se contorcia de fome. O avô, por fim, chama a família e serve aos parentes um aperitivo. Foi quando meu pai lhes ergueu brinde, e, querendo dizer “à saúde”, disse-lhes “adeusinho”.

Sobre parentes, escrevi em um dos meus livros o episódio em que, num velório, perguntei: “Pai, quem é aquele ali?” E ele: “É um primo longe… mas não o suficiente”. Quero me penitenciar aqui pela minha completa invencionice. Tal coisa nunca aconteceu. Ao contrário, meu pai sempre foi tão devoto à família, e vocês aqui são prova disso, que uma vez, também num funeral, se queixou ao tio Octávio Veiga que era uma vergonha que os parentes só se encontrassem nessas ocasiões. Era preciso combinar uma reunião, um encontro informal. O tio não tinha os pudores do meu pai. Retrucou logo: “É mesmo, Fabio… e que tal no jardim zoológico?”

Dr. Fabio herdou do avô Edmundo a gentileza. Uma vez, escutando por horas a conversa de uma senhora, começou a cabecear de sono. Recuperava-se da cabeceada com um ar atento, ou com uma observação agradável. Numa dessas saiu-se com um “que maravilha!”. A senhora, indignada, disse: “mas Dr. Fabio, eu lhe conto que minha filha grávida foi abandonada pelo marido e o senhor me diz que isso é uma maravilha?” E meu pai, já completamente desperto: “Mas é claro, é ou não é uma maravilha ela ter se livrado de tamanho cafajeste?”

Em outra ocasião não escapou tão fácil. Numa roda de pôquer as cartas lhe vinham cada vez piores. Sem que ele se desse conta, uma viúva, magra, feia, de fartos buços e toda de negro, veio espiar seu jogo. Lá ficou, bem atrás dele, por duas ou três rodadas. Na última, tendo recebido a pior mão da noite, dr. Fabio desabafou: “Um urubu pousou na minha sorte!” Dessa vez não houve conserto.

Quem sabe dominar o humor, em geral, sabe também dominar o drama. Dr. Fabio usou muito o drama em nossa educação. Bom mineiro, nunca jogou dinheiro fora. Portanto, pedir algum para ele sempre foi um sofrimento. Para nós, sem dúvida;

- Pai, me dá 10 reais para ir ao cinema?

Suspeito que para ele não era sofrimento, era só motivo para fazer drama. A face contraída, a mão no peito era de alguém apunhalado. A cada novo argumento nosso, parecia que estávamos torcendo a faca. Afinal, depois de muitos gemidos, o dinheiro saía. Seus próprios gastos eram modestos, mas nunca deixou de nos encantar quando ele vinha da cidade com um pacote da drogaria Granado, cheio de emplastros Sabiá, de Vick vaporub, de polvilho antissético, e de frascos do Pó Pelotense, o desodorante da época.

Esse seu lado de munheca de leitão assado nos ensinou uma lição preciosa: não há nada como a independência financeira. Qualquer coisa era melhor do que pedir dinheiro para o Dr. Fabio.   

No entanto ele proporcionou casa própria a cada um dos filhos, uma generosidade e um empurrão para a independência dos quais sempre seremos gratos. É um gesto que pretendo repetir com meus filhos, tão bom foi para mim. Nela resido até hoje, e dela só pretendo me mudar para a rua general Polidoro, direita de quem desce. A propósito, minha futura residência também foi providenciada por ele.

Mas você pode pensar que o humor do dr. Fabio se embotou com a idade. Pois ouça então essa de um dos mais recentes almoços de domingo. Comentando as últimas declarações do nosso presidente, ele declarou: “Lula não quer ser como Getúlio, que se suicidou; nem como Jânio, que renunciou; nem como Jango, que foi deposto. Ele quer ser como JK, ou seja: prefere morrer esmagado por um ônibus.

Por fim, me lembro da vez em que ele viu uma placa na estrada para um lugar que gostava de ir: “Como viver cem anos em Guarapari”. Naquela hora foi atacado de seu antigo trocadilhismo e respondeu de pronto: “Como viver cem anos? Ora, é muito fácil: com uma bolsa de colostomia”.

Meu pai querido, todos nós temos que lhe agradecer por nos mostrar como viver cem anos de um jeito muito mais feliz e bonito. Do jeito como você os viveu.

FIM


===========================

Apenas para os interessados

(atenção: contém linguagem chula)

*- Solução da charada: Abre e fecha sem ter mola (uma sílaba): cu

Andam aos pulinhos na mata (duas): leões

Conceito: quisera ter três = culhões


Artigos: Em Defesa do Consumidor: Como Escolher Um Psicanalista?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado na Folha de São Paulo

Antes de mais nada, penso que há uma pergunta a ser respondida, porque eu a ouço muito: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas, qual a diferença entre eles?

Psiquiatras:

são médicos que estudam a melhor maneira de ajudar quem está mentalmente perturbado através de remédios. Isto é um espetáculo. A psicofarmacologia avançou muitíssimo nas últimas décadas, e os remédios que temos hoje são tão bons que eu diria: não há melhor momento na história da humanidade do que hoje para ser deprimido, neurótico, ansioso, maníaco, psicótico ou qualquer outro distúrbio que, antigamente, levaria você a um hospício.

Psicólogos:

são estudiosos da “alma”, ou, em termos atuais, do software que roda no cérebro e que aparece como comportamentos, pensamentos e outras perturbações (porque eles estudam como o nosso cérebro funciona e como ele nos perturba). Existem muitas maneiras de estudar isto, e muitos mestres olharam este funcionamento por muitos ângulos.

Psicanalistas:

estes psicólogos derivam da maneira de estudar o software cerebral que Freud inaugurou no século XIX. É claro que eu, como psicanalista que sou, vou me deter mais neste jeito de entender o funcionamento da nossa mente. Freud descobriu que nós éramos tão marcados pela nossa educação e pelas pessoas que nos criaram, que acabávamos por carregar este jeito de viver pelo resto de nossas vidas: se ele era favorável e lógico, ótimo, viveríamos bem; se ele era estranho e cruel, acreditaríamos nele e viveríamos mal (ele não falou quase nada da genética, que constitui 50% do que somos).

Terapeutas:

são pessoas que cuidam (terapia é cuidar, é tratamento) de outras. Por isto você tem fisioterapia, logoterapia, quimioterapia e assim por diante, até ter psicoterapias, feitas por psicoterapeutas, que são pessoas que cuidam de você e de sua maneira mental de funcionar. Os psicanalistas podem ser estudiosos apenas (teóricos), ou psicoterapeutas, aqueles que cuidam de pessoas usando a psicanálise como instrumento. É uma das inúmeras maneiras de psicoterapia.

Mas acho que basta. Meu assunto é como escolher um psicanalista terapeuta, alguém que vai cuidar de você com o instrumental que Freud inventou, alguém que vai te prestar um serviço de saúde. Você o contrata e consome o serviço dele.

“Ai, que barbaridade, pensar o cliente como consumidor!”

Sinto muito se feri suscetibilidades, mas imagino que, se você está lendo um caderno sobre psicanálise, está preparado para ler textos eruditos de que você não vai entender 10%. É uma das coisas que me horrorizam em psicanálise, e que sempre me pareceu uma contradição entre termos. Afinal, a psicanálise veio para explicar ou para confundir?

Clínica: do latim, quer dizer “inclinar-se”, para observar e entender.

Pratico a clínica psicanalítica há 35 anos, e fui consumidor desta prestação de serviço durante oito, com dois psicanalistas diferentes. É. Prestação de serviço mesmo, eu pagava (caro) e recebia 50 minutos de suposta atenção.

Assim como quando fui pai, tentei me lembrar de quando era criança e o que funcionava e o que me irritava no jeito de meus pais, quando fui ser psicanalista, prestei bem atenção no que me fez bem e no que me fez mal quando fui cliente. Para aprender com os erros (evitando-os) e com os acertos de meus psicanalistas (tomando-os como modelo).

Você já viu que vai entender tudo o que eu escrever aqui. Gosto de clareza, de transparência, do que é lógico e razoável. Se você gosta de obscuridades, perplexidades e esoterismos, pode pular este artigo. Não é tua praia.

A coisa é simples assim: quantos psicanalistas são necessários para trocar uma lâmpada? Um só, mas é preciso que a lâmpada queira muito ser trocada. Procurei a psicanálise porque me sentia mal comigo mesmo e queria muito me sentir bem. A pergunta seguinte era: o profissional teria o mesmo objetivo? Ele quereria me fazer sentir melhor com o instrumento terapêutico que usava?

Parece uma pergunta besta, não? Mas não é! Há vários psicanalistas que não se sentem comprometidos com a melhora e o bem-estar de seus pacientes (que dirá com a cura de seus sintomas), eles têm como meta “a reflexão sobre os enigmas do seu funcionamento psíquico”, ou pior, “com a sua aceitação da castração” (calma, que eu explico, é algo assim: “o mundo é duro mesmo, e você deve se dobrar e aceitá-lo como é, sem esperar colinho de mãe, que é o mesmo que querer roubá-la de seu pai, representante do mundo cruel. Tenha horror do incesto, o complexo de Édipo”).

De tal maneira que, escolher um psicanalista não é tarefa fácil. Aqui vão algumas sugestões que podem te ajudar, se você ainda não largou a leitura deste blasfemo insolente, ou mesmo desta pessoa desprezível pela sua linguagem chã que qualquer um pode compreender.

  1. A indicação. Ela pode vir de um amigo querido, que tem se sentido cada vez melhor com seu tratamento, e que te diz que nunca saiu de uma sessão pior do que entrou, e que não acredita que “hoje a sessão foi ótima, eu saí de rastos, aos prantos, me sentindo a última das criaturas, porque nós fomos fundo nos meus horrores”. Ela pode vir de artigos que você leu e te deram alívio e compreensão, assinados pelo cara. Ou o mesmo sentimento a partir de livros que ele escreveu, entrevistas que ele deu etc.

  2. O primeiro contato. Geralmente pelo telefone. É impressionante o que se pode aprender sobre o outro num telefonema: se ele é acolhedor; se é hostil; se é simpático ou não; se é pomposo ou simples; se você se sente confortável na conversa, ou constrangido; se vai te atender logo ou “talvez, se abrir uma vaga, nos próximos meses”. Enfim, minha sugestão é: só vá à entrevista se você se sentir bem com ele ao telefone. De desconforto, já basta a tua vida, você não precisa pagar (caro) por ele!

  3. Perplexidade. Se o Dr. Fulano te disser alguma coisa que você não entenda, se falar de tal maneira complicada que você chegue a achar que é burro, pode desistir: ele não serve para você.

  4. Mudez. Se o Dr. Fulano ficar olhando mudo para você quando você quiser saber algo na entrevista, as chances são de que ele ficará mudo durante a terapia. Por que você há de pagar (caro) para alguém que não diz nada? É teu trabalho se entender? Pois então fale para o espelho. É muito mais barato.

  5. Contrato. Sinta-se confortável com um contrato claro de tempos de sessão e de custos. Pergunte sobre férias suas e do terapeuta, quem paga o quê. Pergunte sobre pontualidades (há poucas coisas mais constrangedoras do que encarar colegas numa sala de espera), porque você tem mais o que fazer na vida, e continua sendo uma falta de respeito – em qualquer especialidade médica – te fazer esperar tendo hora marcada. Woody Allen diz em um filme que não podia se suicidar porque seu analista cobraria as sessões que ele faltasse. Contratos precisam ser claros!

  6. Como eu saio da sessão? Não deixe ninguém te convencer que sair de rastos, aos prantos e arrasado de uma sessão significa que ela foi “funda e produtiva”. Só significa que o terapeuta pôs mais dor naquilo de que você já se acusava. Ele quer que você se arrependa. É mais barato procurar a igreja católica (nos confessionários).

  7. Senso de humor. Se você sentir falta dele no seu terapeuta, significa que ele gosta de drama, e o drama é parte integrante, agravante e fundamental dos seus sintomas. Vá embora! Parte da cura é não se levar tão a sério, não se achar (e a ninguém) tão importante.

Dentro de cem anos, lembre-se, estaremos todos mortos (provavelmente, esquecidos). E, faz parte do meu imaginário aparelho humildificador, amanhã este artigo será papel de embrulhar peixe…


Diversos: Encanto e delicadeza

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Contracapa do CD do violonista Willians Pereira

Música é o que de mais próximo conheci (entendi, percebi, senti) do conceito de místico, que, de resto, me escapa. Escrever sobre música é um ato estranho, lembra-me o que um amigo disse ao ler uma vasta explicação sobre um quadro: “Arte não precisa de bula”. Certamente a música que faz minha mente fluir solta, deixando-se levar ao sopro dos acordes, como aquela peninha da abertura do “Forrest Gump”, não é uma das marchas militares do John P. DeSouza. Mas “encanto e delicadeza” são componentes que reconheço como tradução dessa mística. Reencontrá-los em peças que já me haviam encantado, como no Chopin e no Puccini do disco, só que na fala mansa do violão de Willians, foi um alumbramento. Ele nos dá tempo de saborear timbres, escandir acordes com seu instrumento, como se fossemos co-autores, surpreender-nos com soluções harmônicas inesperadas. É. O disco produziu encanto com sua delicadeza. O que mais posso pedir da música? Sim, porque Willians deixou a música vir antes do instrumentista. O que mais posso pedir dele?


Artigos: Estamos perdendo a guerra!

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado N’O Globo

Odeio ter que brigar. Odeio sentir raiva. Não tenho vocação para qualquer espécie de militância política. Quem me conhece ou leu meus livros sabe que gosto do amor companheiro, da amizade, da beleza, de cultivar o espírito, enfim, de viver em paz. Mas há ocasiões em que me lembro de uma anedota que meu pai costumava contar. Dois grãos de milho conversam no chão de um galinheiro, e um deles comenta com o outro, ao ver a galinha engolir um terceiro, a sorte que tiveram porque não foi com eles, sem se darem conta de que serão os próximos. 

Pois foi esse pai, hoje com 99 anos, e minha mãe, de 90, que ficaram sob a mira de revólveres por duas horas dentro do quarto deles, reféns de cinco assaltantes que levaram o que ainda restava do último assalto (faz quatro meses) e mais o carro, que depois foi recuperado numa favela próxima. Dois assaltos em quatro meses, isso depois de viver na mesma casa  50 anos de tranqüilidade.

É então este indivíduo-milho que aqui escreve cheio de raiva e angústia por ter visto seus pais-milhos serem engolidos por uma das várias galinhas gulosas que vêm infestando nossa cidade. Cidade? País, queria dizer. Talvez um leitor-milho possa pensar um pensamento-milho típico: “Antes eles do que eu! E mesmo ele só está reclamando porque foi atingido de perto”. Quem sabe ele possa ter o mesmo desplante do Sr. Marcelo Itagiba, subsecretário de segurança(?), que declarou ser esse assalto “um episódio esporádico”. Ao ouvir isso, fui por minha vez “assaltado” por duas dúvidas: o Sr. Itagiba usa o mesmo Aurélio que eu? E mora ele no mesmo Rio de Janeiro que eu?

A raiva traz pensamentos sanguinários, mas para minha surpresa descobri que eles não se dirigiam aos pés-de-chinelo que renderam meus pais, e sim às autoridades que, em nome do Estado, deveriam estar zelando por nossa segurança. Aqui cabe um dado histórico que aprendi no livro “Armas, germes e aço”, de Andrew Diamond. Na savana africana, na época em que éramos caçadores-coletores, há milhares de anos, se um homem encontrava um desconhecido, seguia-se uma luta de morte imediatamente: o desconhecido era sempre o inimigo. Depois da domesticação de plantas e animais, a agropecuária, houve comida excedente, não foi mais necessário se deslocar sem parar, as famílias aumentaram e se estabeleceram em cidades. Ora, para que não houvesse a necessidade constante de uns ficarem matando os outros, surgiram leis de convivência, e um poder central que zelava pelo cumprimento dessas leis. Diamond chamou essa organização de governo de “cleptocracia” (o poder-ladrão, em grego), pois os governantes roubavam do povo, sob a forma de impostos, mas prometiam em troca manter as leis de convivência. A violência passava a ser monopólio do Estado, ninguém podia mais tomar as leis nas próprias mãos.

Os habitantes das cidades acharam isso muito confortável, pois que não tinham que passar o dia se defendendo e matando cada vez que um desconhecido passava por perto. Na verdade podiam se dedicar a coisas mais interessantes, e foi assim que surgiram as invenções para o bem-estar, e não para a guerra. Foi assim que surgiu a filosofia. Não se importavam muito com o roubo dos governantes, chamados impostos (ainda que esteja por nascer aquele que goste de impostos) desde que eles cumprissem seu principal papel: zelar pela lei e pela ordem. Se os cidadãos começassem a achar que os governantes os estavam roubando demais e protegendo-os de menos, a revolta era certa… e sanguinária.

Você já está sentindo em que direção meu argumento caminha, não é? Mas no meu coração não existe só raiva sanguinária. Ela conversa, e muito, com meus sentimentos democráticos. Tenho um apreço imenso pela democracia, até hoje a menos pior das cleptocracias, pois que contempla e defende os direitos do indivíduo, e melhor: não o considera inferior aos governantes! Seu poder deve emanar do povo, e em seu nome ser exercido. Qualquer tirania (hoje chamada ditadura) me enoja, seja ela exercida em nome de quem for, mesmo dos despossuídos, quando se chama ditadura do proletariado, pois tal concentração de poder sempre corrompe, sempre acaba se tornando um pretexto para a camarilha dirigente se locupletar, levando a cleptocracia ao paroxismo. A democracia, pelo contrário, é, mais que o direito, o dever de desconfiar dos governantes. Não é à toa que ela se exerce em três poderes distintos, um vigiando a aspiração tirânica do outro.

É, portanto, com meu pensamento democrático, que constato uma perversão grave e crescente no nosso Estado, e em nosso país: uma fração da população está tirando dos supostos zeladores da lei o monopólio da violência, quer seja subsidiada pelo dinheiro do tráfico, quer seja pela ganância de poder travestida em luta social pela terra. Formam governos paralelos onde vigem suas próprias regras, estranhas às instituídas pela democracia. Como resultado, nós, cidadãos que gostaríamos de viver em paz, produzindo riquezas ou fazendo filosofia, vivemos em medo, não sentimos mais a proteção dos cleptocratas (que aliás andam com um apetite tributário que vou te contar…). A isto se dá o nome de guerra civil. E nós a estamos perdendo! Seja por leniência, complacência, cumplicidade, incapacidade, despreparo ou corrupção, nossos governantes estão perdendo a guerra. Mas eles não morrerão nela. Guerra não mata generais, mata a infantaria (que significa “os infantes”, as crianças) que fica entre o mar e o rochedo, ou seja, nós, cidadãos-milhos, pequenos, impotentes e desarmados… tal como meus pais.

Um antigo primeiro-ministro inglês dizia que o homem honesto precisa ser tão ousado quanto o marginal para defender sua vida digna. Que ousadia democrática está ao nosso alcance, além do voto, para pressionar nossos governantes a se empenhar de verdade a ganhar essa guerra? E-mails em massa para a imprensa ainda livre, e para acordar o governo? Panelaços, como aquele glorioso que apoiou as “diretas, já!”? Passeatas (mas não, nunca, passeatas “pela paz”, que devem causar acessos de riso nos traficantes)? Não sei, já disse, não tenho vocação para militante. Sei que o governo democrático instituído não pode perder essa guerra. Para que o grito de vitória tão simbólico, e nada esporádico, viu, Sr. Itagiba, de “Perdeu, perdeu!” proferido pelos assaltantes não se torne o lamento de toda uma civilização: “Perdemos… perdemos.”


Artigos: HOMOFOBIA: Por Quê?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo para a Revista G Magazine

Homofobia [De hom(o)- + -fobia.]:

S. f.  Aversão a homossexuais ou ao homossexualismo.

É um fenômeno universal e multicultural demais para ser desprezado como “preconceito que o tempo muda”. Não. Merece um olhar cuidadoso, e, já vou avisando, você vai ler aqui reflexões sobre o tema, e não a resposta, muito menos a solução dessa coisa misteriosa.

Você pensa que na Grécia clássica não havia homofobia? Pois a única forma de homoerotismo bem acolhida na época era o amor apaixonado e erótico de um homem mais velho por um rapazinho pré-adolescente, quando ele se tornava seu protetor e conselheiro, um segundo pai. Fosse um senhor de escravo adulto querer fazer sexo oral naquele que era sua propriedade e isso caísse no conhecimento do povo, ele seria visto com aversão. Tribos indígenas americanas acolhiam bem o homem-mulher, que como elas se vestia e comportava, desejando um homem viril como parceiro. Um fenômeno que Hugo Denizart detectou como atual em seu livro “Engenharia Erótica”: nas classes pobres a bicha-louca exuberante foi desaparecendo, dando lugar ao homem-mulher atual (o travesti), que em vez de vaias recebe cantadas na rua, dinheiro na prostituição, e é perfeitamente aceita como parceira fixa nas prisões (chamada “mulher de cadeia”, como Dráuzio Varella conta em “Estação Carandiru”).

O resumo disso é que o homossexual masculino (que o capítulo lésbicas é outra história bem diferente) tem sido aceito ao longo dos tempos “desde que esteja bem localizado dentro de um nicho social, uma aparência e uma visibilidade que não incomode os héteros”. Saiu dali, ele desencadeia curto-circuitos cerebrais (aversões) que se dão no coletivo, sim, mas também no mais íntimo do pensamento do indivíduo hétero, e disso sou testemunha de consultório. Exemplo: André Gonçalves fez um personagem de novela que mantinha um romance com um amigo, sem que o personagem tivesse qualquer estereotipo, quer de bicha, quer de pitboy. Era um cara “normalzinho”, que podia ser amigão de um hétero. Resultado: o ator foi perseguido e maltratado na rua. Seguem-se alguns componentes reconhecíveis na construção da homofobia:

  1. Desprezo pelas mulheres:

As primeiras (e mais primitivas) manifestações de homofobia se dão na infância, e não têm nada a ver com erotismo. Pelo fato de que uma boa percentagem de futuros homossexuais nasce com jeito de mulher, desde os três-quatro anos preferirão brincar de boneca, de casinha, não serão musculares e desdenharão dos esportes, dos brinquedos de guerra, do futebol etc. , desse conjunto que não existe por imposição cultural, e sim por conformação biológica. É raro o homo que teve tiazinhas cercando-o de babados e dando-lhe bonecas na infância. Muito mais comum foi ter um pai furioso, impondo-lhe lutas marciais, chuteiras e bolas de futebol. Pois esses não serão discriminados como viadinhos. Os colegas de escola vão chamá-los de mulherzinha; mariquinha. Vão identificá-los como um ser desprezível: a menina. Nessa época as meninas nem ao menos são objeto de desejo. Mais tarde, quando o forem, elas serão fáceis (e desprezadas por isso) ou difíceis (e causadoras de rancor por isso). Como pode entrar na cabeça de um menino hétero que seu semelhante queira ser, ou parecer, um traste tal?

2.  Aversão aos estrangeiros:

Não nos damos conta que conviver com estranhos sem partir para matá-los é um fato muito novo na espécie humana. Surgiu há cerca de 12.000 anos com a criação da cidade-estado. Antes disso, o ancestral caçador-coletor  partia para a luta mortal se o outro fosse reconhecido como estranho a sua tribo. Vamos tomar nossos primitivos mais próximos (as crianças). Quando saem de sua tribo (a casa) e entram num ambiente hostil (o colégio) elas se defendem passando um contínuo radar que pesca qualquer desvio do homogêneo, do familiar: esses são os inimigos. É por isso que não existe ninguém tão intolerante com as diferenças que as crianças. Os apelidos são característicos: “Gaguinho”; “Quatro-olho”; “Deixa-que-eu-chuto”;  “Ferrugem”; “Pelé”; “Tição”, e por aí vai… Os mariquinhas não haveriam de ficar de fora.

3. Medo de contágio:

Existe uma mitologia gay de que no fundo todos os héteros são enrustidos. Ela é errada, mas não deixa de ter algum parentesco com a verdade. Quando Kinsey publicou seu famoso relatório dos anos 40 mostrando que a experiência homossexual masculina (ainda que única) era muito mais comum do que se supunha, principalmente na infância e na adolescência, ele causou uma comoção equivalente a revelar o segredo mais íntimo de alguém. Sua classificação dos homens quanto à capacidade de desejo homossexual continua comprovável e útil. Ele os dividiu nos tipos de 1 a 6. O tipo 1 é o hétero em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse erótico por outro homem. Não quer dizer que o tipo 1 não possa ter prazer com outro homem. Muitos deles tiveram iniciação sexual com amiguinhos (por falta de outra oportunidade) e não ficaram traumatizados, não precisaram reprimir tal lembrança, são capazes de achar graça nisso. Por isso mesmo, tendem a ser os mais indiferentes/tolerantes à questão homossexual: ela não chega a ser um assunto.

O problema, quanto à homofobia, está nos tipos 2 e 3, que têm crescente capacidade de desejo homo, mesmo sendo héteros (definido por tesão visual maior por mulheres). Esses, se têm lembranças infantis homo, delas se envergonham, precisaram reprimi-las. São os tais que necessitam “afirmar sua masculinidade”, pois que, para eles mesmos, ela pode ser posta em dúvida. Cá e lá se assustam (e se afastam) com o amor que desenvolvem por seus amigos, ou com a atração que determinados homens lhes despertam. Esses sim, têm medo de “virar viado”. É um medo sem fundamento. Sua preferência visual permanecerá a mesma pela vida afora. Poderiam, teoricamente, fazer um acordo com eles mesmos, “é, eu de vez em quando vou ter tesão em homem, mas isso não me arranca pedaço”. Sinto muito, isso é teórico. Eles investiram tanto na repressão, demonizando seus poucos desejos homoeróticos, reforçando uma postura defensiva de supermachos, que passaram a ter medo, fobia, do contágio. Agem como os antigos agiam com os leprosos, apedrejando-os por pavor, mas o contágio que temem é o do desejo.

O tipo 6 é o homo em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse hétero. Esse é o que “sai do armário” mais facilmente, não é tanto uma questão de coragem e sim de total falta de opção. Os tipos 5 e 4 são os que têm crescente capacidade de desejo hétero, mas são e serão sempre homossexuais (pela preferência visual). Esses muitas vezes, já que podem, se casam, constituem família, e infelizmente podem engrossar o problema da homofobia por não aceitarem sua condição, tentarem reprimi-la e ficarem assim parecidos com os tipos 2 e 3 acima. É curioso, mas quando os tipos 5 e 4 se assumem gays, podem exercer uma patrulha “heterofóbica” sobre seus pares, criticando-os por transarem com mulheres, desprezando-as, chamando-as de “rachas”, pois também andaram reprimindo seus desejos héteros.

Faz parte do miolo (de 2 a 5) o michê que confessou para a polícia: “A bicha não quis me pagar porque disse que eu também gostei, aí eu matei ele, que nenhuma bicha vai me chamar de viado, eu faço isso por dinheiro”. Infelizmente, é um caso bem comum.

 4. O inimigo que nos une:

Quando dentro de grupos, turmas ou mesmo povos, surge uma liderança tirânica que quer impor suas idéias ou vontades calando qualquer discussão, é comum que o déspota se valha de um inimigo, uma espécie de bode expiatório para seus males, contra quem todos devem estar unidos, e a favor de quem ninguém pode ser, sob pena de ser suspeito dos mesmos “crimes” do bode. Tem sido assim: desde o colégio e suas tribos; skinheads; pitboys; os nazistas com os judeus (e os homossexuais, de quebra); o Bush com os terroristas; Stalin com todo mundo que não se submetia a ele; a esquerda brasileira com a ditadura; a ditadura com os comunistas. Por aí vai.

Talvez o fato histórico mais grave nessa série: Moisés, ao impor Iavé como deus único, perseguiu os devotos de sub-deuses cujos cultos tinham orgias homoeróticas, inaugurando a homofobia da cultura judáico-cristã, que vemos até hoje nos pronunciamentos do papa católico.

Essa forma de homofobia (eleger o homossexual como o inimigo que une) é a mais grave de todas, mas é a que traz a maior lição: a prática homofóbica está ligada à tirania, ao excesso de poder (de grupos ou estados fortes), e seu melhor remédio está no aprendizado da democracia e no aprimoramento de suas leis anti-discriminação, no costume de parlamentar e conviver com as idéias (ou jeitos de ser) diferentes.

Francisco Daudt da Veiga é psicanalista carioca, e autor, dentre outros livros, de “O amor companheiro – a amizade dentro e fora do casamento” (Sextante).