quinta-feira, 1 de agosto de 2024

O PEGADOR E A MULHER-MARAVILHA

 


É importante lembrar que nem todo uso de um personagem construído em que nos metemos remete ao falso-self. 

De algum modo, todos nós usamos personagens diferentes em ambientes diferentes, o que mais se adapta a aquele ambiente, como diversas faces de nossa personalidade, como o “sociável”, o “engraçado” etc. 
Há mesmo personagens construídos que servem à nossa sobrevivência, mecanismo de defesa diferente do falso-self: uma pessoa com infância muito sofrida pode construir em si uma espécie de super-herói a quem nada afeta. 

O problema é ela se acostumar a esse personagem, não saber nada de seus desejos e manter pela vida afora circunstâncias adversas em que o personagem continue a ser necessário. Isso poderia se estabelecer como um vício de domínio-submissão difícil de largar.

Outro personagem defensivo é o “pegador”, uma espécie de defesa contra as inibições sexuais em que a pessoa se vê com autoestima baixa para se fazer desejado, mas seu “personagem pegador” supostamente não sabe o que é isso. 

O problema é que a pessoa pode se tornar dependente desse personagem, novamente como num vício de domínio-submissão, continuar pela vida sem saber seus próprios desejos, e se ver impotente quando quiser uma relação mais pessoal.


sexta-feira, 26 de julho de 2024

O PRAZER DA SUBMISSÃO


Há quase 500 anos, Étienne de La Boétie escreveu um ensaio (“O Discurso da Servidão Voluntária”) em que estabelece uma semelhança inédita entre indivíduo e sociedade.

Ele descreve como o sentir-se amparado é capaz de despertar o prazer da submissão, da entrega, seja sexual, seja social, política ou religiosa.

Essa foi uma das minhas primeiras fontes para compreensão de nossa relação com o Superego: como a dinâmica de domínio-submissão que mora em nós, adestrada desde a infância sob o poder concentrado de nossos pais, pode nos levar ao jogo externo de domínio-submissão em graus variados.

Esses jogos vão desde a brincadeira amorosa na cama, até a adesão viciosa a tiranias políticas em que somos, ora passivos, ora ativos, submissos ao tirano e tiranos com os outros.

Tudo isso em troca do amparo de nossos pares. Acho especialmente fascinante como isso pode ser operado: desde maneira alegre e saudável (no playground da cama, por exemplo), até a maneira viciosa e cruel, nas diversas formas de sadomasoquismo, sexual, interpessoal e social.

Sempre em variações percentuais. Nunca no “tudo ou nada”.

(Na imagem: La Boétie, quando escreveu o “Discurso”… aos 18 anos!)



terça-feira, 23 de julho de 2024

GENÉTICA OU CULTURA?

 



Aguinaldo Silva, de quem a mãe de meus filhos foi coautora em “Fina Estampa”, conta em sua autobiografia que sofreu na infância por ter sido gay efeminado desde sempre, e só ter encontrado meninos como ele depois dos 13 anos.

Até então, sofreu bullying na escola e se julgava alguma aberração da natureza, pois nunca havia visto ninguém com quem se identificasse.

Isso me chamou especial atenção, pois tenho encontrado psicanalistas que creem na tábula rasa, na ideia de que nascemos como uma folha em branco em que a cultura/criação escreverá cada um de nossos traços.

Não quero me estender sobre tema tão óbvio, mas eu lhes pergunto, sobre a própria orientação sexual: qual o motivo de a incidência mundial de gays ser percentualmente idêntica em todos os cantos da Terra, mesmo entre povos nativos sem contato com outras culturas?

Mesmo entre os gays masculinos, os efeminados - percentual fixo também - o são desde pequenos: ninguém lhes ensinou os trejeitos, a escolha de brincar de bonecas e de casinha, a aversão aos esportes musculares, e outros traços femininos que muita gente ainda julga puramente culturais.

Steven Pinker, em seu livro “Tabula Rasa”, lista cerca de quinhentos comportamentos idênticos em todas as culturas , os chamados “Universais”, desde os básicos (busca de prazer, busca de justiça, busca de que as coisas façam sentido, medos inatos como desamparo, escuro, altura, cobras etc.) até outros mais elaborados, como capacidade de absorver linguagem, cuidar de filhos, cooperação etc.

Essa é a maior contribuição da Psicologia Evolucionista à psicanalise: como a natureza humana (traços herdados que nos fazem únicos) interage com nossa criação.

É justamente o atropelo de nossas características únicas herdadas que formará nosso Superego e causará mais tarde as doenças psíquicas. 








RACIONALIZAÇÃO

 


A racionalização é um jeito de driblar o Superego e fazer algo que ele condena, através de construir um raciocínio que faça a transgressão parecer lógica.

A racionalização é um mecanismo de defesa utilizado pelo indivíduo para justificar ou explicar comportamentos, pensamentos ou sentimentos de forma lógica e aceitável. Quando alguém recorre à racionalização, busca encontrar explicações plausíveis para suas ações ou pensamentos, mesmo que essas explicações não sejam verdadeiras ou não reflitam a realidade.

Mas é preciso distinguir a racionalização, como mecanismo de defesa, do uso da razão para questionar o Superego. Enquanto a racionalização busca driblar o Superego, o uso da razão pode questionar suas leis.

Um exemplo: “prostituição é crime e é errado” (diz o Superego); “ah, mas a pobre moça precisa do dinheiro pra comer” (diz a racionalização).

O uso da razão questionando o Superego pergunta: “onde está o crime?, onde está o erro? Quero que me explique, não quero aceitar sem entender.”

(Do texto de “A psicanálise do Superego” para uso do DrDaudtAI)


quarta-feira, 10 de julho de 2024

O AMIGO PERGUNTA - A PSICANÁLISE E O MÉTODO CIENTÍFICO

 


O AMIGO PERGUNTA 

“Você fala que a psicanálise pode se valer do método científico. Poderia me dar um exemplo?”

Francisco Daudt. O meu preferido é o conceito de angústia de castração, enunciado pelo Freud. A proposta do método científico é: feita a hipótese, exponha ela, da maneira mais transparente possível, à possibilidade de ser refutada, de ser criticada (Karl Popper). Nunca a aceite como fato verdadeiro, antes disso.

A pergunta simples é: alguém cortar o seu pênis já foi alguma questão para você? Para mim nunca foi, nem quando meu tio me ameacou disso, aos meus cinco anos. Nem pra mim, nem para nenhum outro homem que eu conheci.

Foi por isso que me dei conta de que alguma coisa mais realista precisava entrar como razão de nossas angústias. Pensei no desamparo.

Reformulo agora a pergunta: alguma vez na sua vida você se angustiou pensando que não iam mais gostar de você, que você ia ser abandonado, largado, cancelado, bloqueado, expulso, que iam te dar gelo, que você estava caminhando na direção da sifudência?

Pois é: a angústia de desamparo passou no teste…






terça-feira, 2 de julho de 2024

A MODA E O DRAMA

 



Estar na moda faz parte do arsenal de qualificações que prometem tornar alguém atraente, portanto é da natureza humana, como as penas do pavão são da natureza e do arsenal dele.

Fazer drama sempre chamou a atenção, pois situações dramáticas tocam nossos instintos de sobrevivência - pela ameaça e urgência que anunciam. Por isso, o drama sempre foi arma do Superego, sempre foi artifício de domínio, sempre foi emburrecedor, pois pede reação e impede a reflexão.

Portanto, há momentos na história em que o drama e a moda se sobrepõem, já que ambos nos são atraentes: se eu faço drama, estou no lugar do Superego, estou “acima de todos”. Se eu somo isso a estar na moda, “eu sou o máximo”!

Há poucos momentos na história em que essa soma de drama e moda se somaram de forma tão bizarra, e tão irracional, quanto na morte de Rodolfo Valentino: centenas de mulheres se suicidaram (!) por “não suportarem viver num mundo sem ele”. Elas se imolaram em nome de suas “grandezas de espírito”.

Moda e drama se somam hoje para exibir a superioridade moral dos ofendidos das causas identitárias, do politicamente correto, dos “suicidadores dos outros” (através do cancelamento e da censura).

Penas de pavão…





segunda-feira, 1 de julho de 2024

TRÊS SEGUNDOS QUE MUDARAM MINHA VIDA


O amigo pergunta

“Como você conseguiu se formar psicanalista sem ser através de uma instituição?”

Francisco Daudt: Por causa de três segundos de hesitação. Eu era médico clínico desde 1971 quando, em 1976 resolvi me tornar psicanalista. Procurei meu antigo analista (de 1969 a 74), Roberto Quilelli, para saber com ele como proceder para uma formação.

Ele havia se tornado analista didata (formador de novos analistas) da Sociedade Brasileira de Psicanálise, na época de orientação kleiniana (de Melanie Klein). Diante de minha vontade, entendendo que um candidato precisaria passar por uma “análise didática”, ele me perguntou: “Você retomaria a análise comigo?”

Foi o momento em que hesitei por três segundos… e respondi, “Mas claro que sim!” Tremendo golpe de sorte: ele leu minha hesitação, mais que minha resposta, e disse: “Ok, vou falar com o Walderedo para a gente achar um analista pra você”.

Se não fosse pela hesitação dos três segundos, se não fosse ele inteligente como era, eu provavelmente seria hoje um membro da SBP, com formação kleiniana. Um desastre que ia, pelo menos, atrasar em muito minha vida.

É que a análise com ele não tinha sido nada boa. Como qualquer kleiniano, ele usava o Superego como ferramenta de “cura”. Como eu lhe disse, depois de uns dois anos de análise: “Ah, entendi o processo da psicanálise. É igual ao da igreja católica. Lá, você se arrepende dos seus pecados e promete não pecar mais. Na psicanálise, você se arrepende de seus sintomas e promete nunca mais tê-los.”

O que eu não disse foi que, tanto na igreja quanto na psicanálise, esse processo de “cura” não funcionava. Eu continuei pecando e eu continuava com meus sintomas. Entrei com eles e saí, cinco anos depois (e muita grana depois), com eles. As intervenções dele eram raras e enigmáticas. Eu não falava nada, pois estava intimidado com aquela representação rediviva do meu Superego. 

Mas ele me ajudou muito a entender o tipo de psicanalista que eu… não queria ser. Fiquei com aversão a figuras suoeregoicas em geral, e na psicanálise em particular. Ele contribuiu muito para eu querer aprender sobre o Superego, e assim desenvolver a psicanálise que faço hoje.

O resto da história, encurtando, foi ele me mandar falar com o Waldredo Ismael de Oliveira, o super chefe da SBP, e ele me indicar o genro, Roberto Curi Hallal, para ser meu analista formador. Acontece que o genro não era daqui, tinha sido formado na Argentina pelo Angel Garma, um freudiano formado por Theodor Reik, que tinha sido formado por Karl Abraham, formado por sua vez por… Sigmund Freud em pessoa.

Foi assim que minha formação foi: fora de qualquer instituição; nem kleiniana, nem lacaniana (as duas opções de então, no Rio); totalmente freudiana (e eu, que não entendia nada do que Lacan escrevia, entendia tudo escrito por Freud). Foi assim que me tornei um analista em linha direta com Freud, uma “sexta geração”.

Ah, claro, minha segurança vinha também de eu ser médico, e médico tem um poder social ímpar, não se submete a ninguém.

Um somatório de várias sortes: eu ser médico; eu ter encontrado um analista freudiano não institucional; e… aqueles três segundos de hesitação, que foram bem compreendidos pelo Roberto Quilelli.

(Na imagem: Freud; Karl Abraham; Theodor Reik; Angel Garma e Roberto Curi).