terça-feira, 23 de julho de 2024

RACIONALIZAÇÃO

 


A racionalização é um jeito de driblar o Superego e fazer algo que ele condena, através de construir um raciocínio que faça a transgressão parecer lógica.

A racionalização é um mecanismo de defesa utilizado pelo indivíduo para justificar ou explicar comportamentos, pensamentos ou sentimentos de forma lógica e aceitável. Quando alguém recorre à racionalização, busca encontrar explicações plausíveis para suas ações ou pensamentos, mesmo que essas explicações não sejam verdadeiras ou não reflitam a realidade.

Mas é preciso distinguir a racionalização, como mecanismo de defesa, do uso da razão para questionar o Superego. Enquanto a racionalização busca driblar o Superego, o uso da razão pode questionar suas leis.

Um exemplo: “prostituição é crime e é errado” (diz o Superego); “ah, mas a pobre moça precisa do dinheiro pra comer” (diz a racionalização).

O uso da razão questionando o Superego pergunta: “onde está o crime?, onde está o erro? Quero que me explique, não quero aceitar sem entender.”

(Do texto de “A psicanálise do Superego” para uso do DrDaudtAI)


quarta-feira, 10 de julho de 2024

O AMIGO PERGUNTA - A PSICANÁLISE E O MÉTODO CIENTÍFICO

 


O AMIGO PERGUNTA 

“Você fala que a psicanálise pode se valer do método científico. Poderia me dar um exemplo?”

Francisco Daudt. O meu preferido é o conceito de angústia de castração, enunciado pelo Freud. A proposta do método científico é: feita a hipótese, exponha ela, da maneira mais transparente possível, à possibilidade de ser refutada, de ser criticada (Karl Popper). Nunca a aceite como fato verdadeiro, antes disso.

A pergunta simples é: alguém cortar o seu pênis já foi alguma questão para você? Para mim nunca foi, nem quando meu tio me ameacou disso, aos meus cinco anos. Nem pra mim, nem para nenhum outro homem que eu conheci.

Foi por isso que me dei conta de que alguma coisa mais realista precisava entrar como razão de nossas angústias. Pensei no desamparo.

Reformulo agora a pergunta: alguma vez na sua vida você se angustiou pensando que não iam mais gostar de você, que você ia ser abandonado, largado, cancelado, bloqueado, expulso, que iam te dar gelo, que você estava caminhando na direção da sifudência?

Pois é: a angústia de desamparo passou no teste…






terça-feira, 2 de julho de 2024

A MODA E O DRAMA

 



Estar na moda faz parte do arsenal de qualificações que prometem tornar alguém atraente, portanto é da natureza humana, como as penas do pavão são da natureza e do arsenal dele.

Fazer drama sempre chamou a atenção, pois situações dramáticas tocam nossos instintos de sobrevivência - pela ameaça e urgência que anunciam. Por isso, o drama sempre foi arma do Superego, sempre foi artifício de domínio, sempre foi emburrecedor, pois pede reação e impede a reflexão.

Portanto, há momentos na história em que o drama e a moda se sobrepõem, já que ambos nos são atraentes: se eu faço drama, estou no lugar do Superego, estou “acima de todos”. Se eu somo isso a estar na moda, “eu sou o máximo”!

Há poucos momentos na história em que essa soma de drama e moda se somaram de forma tão bizarra, e tão irracional, quanto na morte de Rodolfo Valentino: centenas de mulheres se suicidaram (!) por “não suportarem viver num mundo sem ele”. Elas se imolaram em nome de suas “grandezas de espírito”.

Moda e drama se somam hoje para exibir a superioridade moral dos ofendidos das causas identitárias, do politicamente correto, dos “suicidadores dos outros” (através do cancelamento e da censura).

Penas de pavão…





segunda-feira, 1 de julho de 2024

TRÊS SEGUNDOS QUE MUDARAM MINHA VIDA


O amigo pergunta

“Como você conseguiu se formar psicanalista sem ser através de uma instituição?”

Francisco Daudt: Por causa de três segundos de hesitação. Eu era médico clínico desde 1971 quando, em 1976 resolvi me tornar psicanalista. Procurei meu antigo analista (de 1969 a 74), Roberto Quilelli, para saber com ele como proceder para uma formação.

Ele havia se tornado analista didata (formador de novos analistas) da Sociedade Brasileira de Psicanálise, na época de orientação kleiniana (de Melanie Klein). Diante de minha vontade, entendendo que um candidato precisaria passar por uma “análise didática”, ele me perguntou: “Você retomaria a análise comigo?”

Foi o momento em que hesitei por três segundos… e respondi, “Mas claro que sim!” Tremendo golpe de sorte: ele leu minha hesitação, mais que minha resposta, e disse: “Ok, vou falar com o Walderedo para a gente achar um analista pra você”.

Se não fosse pela hesitação dos três segundos, se não fosse ele inteligente como era, eu provavelmente seria hoje um membro da SBP, com formação kleiniana. Um desastre que ia, pelo menos, atrasar em muito minha vida.

É que a análise com ele não tinha sido nada boa. Como qualquer kleiniano, ele usava o Superego como ferramenta de “cura”. Como eu lhe disse, depois de uns dois anos de análise: “Ah, entendi o processo da psicanálise. É igual ao da igreja católica. Lá, você se arrepende dos seus pecados e promete não pecar mais. Na psicanálise, você se arrepende de seus sintomas e promete nunca mais tê-los.”

O que eu não disse foi que, tanto na igreja quanto na psicanálise, esse processo de “cura” não funcionava. Eu continuei pecando e eu continuava com meus sintomas. Entrei com eles e saí, cinco anos depois (e muita grana depois), com eles. As intervenções dele eram raras e enigmáticas. Eu não falava nada, pois estava intimidado com aquela representação rediviva do meu Superego. 

Mas ele me ajudou muito a entender o tipo de psicanalista que eu… não queria ser. Fiquei com aversão a figuras suoeregoicas em geral, e na psicanálise em particular. Ele contribuiu muito para eu querer aprender sobre o Superego, e assim desenvolver a psicanálise que faço hoje.

O resto da história, encurtando, foi ele me mandar falar com o Waldredo Ismael de Oliveira, o super chefe da SBP, e ele me indicar o genro, Roberto Curi Hallal, para ser meu analista formador. Acontece que o genro não era daqui, tinha sido formado na Argentina pelo Angel Garma, um freudiano formado por Theodor Reik, que tinha sido formado por Karl Abraham, formado por sua vez por… Sigmund Freud em pessoa.

Foi assim que minha formação foi: fora de qualquer instituição; nem kleiniana, nem lacaniana (as duas opções de então, no Rio); totalmente freudiana (e eu, que não entendia nada do que Lacan escrevia, entendia tudo escrito por Freud). Foi assim que me tornei um analista em linha direta com Freud, uma “sexta geração”.

Ah, claro, minha segurança vinha também de eu ser médico, e médico tem um poder social ímpar, não se submete a ninguém.

Um somatório de várias sortes: eu ser médico; eu ter encontrado um analista freudiano não institucional; e… aqueles três segundos de hesitação, que foram bem compreendidos pelo Roberto Quilelli.

(Na imagem: Freud; Karl Abraham; Theodor Reik; Angel Garma e Roberto Curi).





quinta-feira, 27 de junho de 2024

O QUE É O DESEJO



Em termos gerais, o Desejo é o motor de nossa sobrevivência e da sobrevivência da espécie, sendo que nossa sobrevivência serve à sobrevivência da espécie, pela procriação.

O Desejo opera em nós através do desconforto em busca de conforto. Nascemos com três desejos básicos: de prazer; de justiça; de que as coisas façam sentido.

PRAZER: O desejo de prazer tem vários desconfortos – ou tensões – para nos mover em direção ao conforto: a fome, que busca o prazer da comida; a sede, busca o da bebida; o tesão, busca o do sexo; a dor, busca o alívio.

Pode parecer estranho chamar o desejo de desconforto, pois nós somos capazes de apreciar o desejo… se o desconforto for moderado, e se o conforto estiver acessível.

Por exemplo: a fome moderada chama-se “apetite”, e ele nos dá água na boca, por antecipação imaginada do prazer específico de uma comida gostosa. O mesmo se passa com a sede. O tesão sempre conta com a masturbação como alívio, mas ele pode bem se parecer com o apetite gostoso, caso o seu objeto esteja ao alcance. A dor pode ser gostosa como o apetite, e podemos até buscá-la, se o seu alívio estiver sob nosso controle (a sauna, o frio e o exercício fisico, por exemplo).

JUSTIÇA: o desejo de buscar justiça é movido pelo desconforto da raiva que a injustiça nos causa. A raiva é a resposta genética frente à injustiça, assim como a fome e a sede o são, frente às privações. 

Seu alívio pode ser tosco, como na vingança, p.ex., ou pode ser bem construído e eficiente, como nas negociações que levam em conta ambas as partes (promotoria e defesa, p.ex.). 

Também existe um prazer parecido com o apetite, na busca de justiça, quando a própria injustiça é provocada, e o fazer justiça se torna uma brincadeira sob nosso controle e alcance (como nos filmes de ação, nos jogos competitivos e nos videogames, p.ex.).

FAZER SENTIDO: seu desconforto é a perplexidade e a intriga. Seu conforto buscado serve à sobrevivência e a ter as coisas sob controle, inclusive a busca dos outros prazeres. 

O desconforto pode ser intenso, como por exemplo nas doenças, nas pragas, nas variações do clima, que só vieram a fazer sentido e nos dar certo controle através da ciência. 

Mas o desconforto moderado pode ser gostoso, pode ser uma brincadeira, como nas pesquisas, nos livros e filmes de investigação criminal, por exemplo.

Esses desejos conversam entre si, e toda essa conversa serve àquelas duas motivações iniciais: sobrevivência e à procriação.




 

terça-feira, 25 de junho de 2024

FORA DE QUE CAIXINHA?

 


“Pensar fora da caixinha” expressa capacidade criativa. Mas, de que caixinha se está falando? 

Refleti sobre isso quando um aluno me perguntou a que eu devia minha criatividade em psicanálise, e assim me dei conta da sorte que tive na vida: minha formação psicanalítica não se deu dentro de nenhuma caixinha, não fui filiado a nenhuma instituição.

A caixinha em questão se refere à tribo de amparo, aquela de que não se pode divergir sem risco de expulsão. Aquela que formata nosso Superego assustador: “olha lá, hein?” 

As crianças são criativas enquanto não são postas em caixinhas limitadoras e impositivas. Como exemplo, eu adorei ler livros desde criança, pois era um brinquedo só meu. 

Mais tarde, as escolas puseram os livros dentro da caixinha do dever de casa… e nunca mais as crianças leram, pois transgressão é uma triste forma de submissão às caixinhas…



quinta-feira, 20 de junho de 2024

OUVIDO NO CONSULTÓRIO

 



O cliente estava contando uma história para os amigos; seu pai, ainda que fora do grupo, escutava:

“Ele ficou encantado com a beleza da vizinha e botou na cabeça que iria se casar com ela. Marceneiro numa cidade pequena, se arrumou todo e foi fazer sua proposta. Mas a moça disse que era virgem, e que queria continuar assim. Ele disse que prometia não encostar nela, só queria que ela se casasse com ele. Ela aceitou, e eles se casaram”.

O pai, ao lado, comentou: “Mas que maluquice! Que cara bobo!”

A história continuou: “Acontece que uns tempos depois a moça ficou grávida… mas não do marido!” Comentário do pai: “Mas que sem-vergonha!” 

“O marido foi tirar satisfações com a mulher, mas ela jurou que não tinha transado com ninguém, que continuava virgem”. O marido aceitou as explicações e a apoiou na gravidez. E o pai: “Além de corno, otário! Mas que mulerzinha mau-caráter!”

“Pois é, a gravidez correu bem, o menino nasceu e cresceu com saúde, amparado pela mãe e pelo marceneiro, e acabou mundialmente famoso, pois aos 33 anos foi condenado à morte e morreu crucificado”.

Nessa hora, o pai, católico fervoroso, deu um gemido fundo de dor, como se tivesse levado uma facada no peito. No dia seguinte, o cliente foi convocado pela mãe, que lhe deu uma descompostura por ter blasfemado na casa deles, que aquilo era inaceitável etc.

O filho respondeu que não, que nunca havia proferido uma blasfêmia, sequer um adjetivo, que ele tinha contado os simples fatos, sem a aura do sagrado, como os locais de Nazaré teriam feito, na época.