terça-feira, 21 de maio de 2024

VÍCIOS: O PODER DO GATILHO

 


O cliente está há mais de vinte anos sem beber. Ele não tem bebida em casa, deixou de frequentar os antigos cúmplices de botequim, vive uma vida tranquila e produtiva, mas…

…comprou uns lenços umedecidos com álcool que são um sucesso para limpar seus óculos. Como ele é obsessivo, empreende esse ritual com certa frequência. E deu pra cheirar o lenço assim que termina a limpeza: uma longa e profunda prise.

Foi o bastante para começar a pensar de novo em bebida. A olhar as garrafas de whisky nas prateleiras do supermercado. A namorar a ideia de que, talvez, “um pouquinho não fizesse mal”.

Entendeu o que estava acontecendo: quando há vício em substâncias, o gatilho permanece. Nem é preciso muito “duro” para que a ideia do “Dreher” apareça. Basta o cheiro…




segunda-feira, 13 de maio de 2024

DOMÍNIO-SUBMISSÃO, O VÍCIO DO MIMADO

 


Vício de domínio-submissão é uma compulsão danosa de ter outros sob seu poder, ou de se entregar submisso a esse poder, ou as duas coisas aplicadas a pessoas diferentes.

O vício de domínio-submissão é derivado da relação que temos com nosso Superego desde o início.

Como o Superego é formado absorvendo leis e valores impostos na base da chantagem (“ou aceita, ou eu te desamparo”), mantemos com ele essa relação de submissão ou de rebeldia, de vingança contra suas imposições, como é o caso dos obsessivos contraculturais, como se fosse uma tentativa de dominá-lo, em vez de submeter a ele, mas que continua prisioneiro dele, só que pelo avesso.

Uma modalidade de vício de domínio-submissão especialmente perversa é a induzida pela falta de autoridade de pais que mimam os filhos: eles se põem submissos aos filhos por “medo de que os filhos não venham a amá-los”, ou por medo de “serem opressores”, ou por confundir mimo com “o amor que devem ter pelos filhos”.

Nesse caso, os pais fazem de seus filhos pequenos tiranos, viciados desde a infância no domínio-submissão inverso: os pais submissos aos filhos. A doença do mimo é o vício de domínio-submissão inverso.

Novamente, as relações de domínio-submissão podem não ser viciosas se não causarem dano. A própria relação que tivemos com nossos pais e amparadores da infância não deixa de ser de domínio-submissão, dada a discrepância de poderes que ela continha.

Mas a submissão por confiança (como a que temos com um cirurgião que nos opera, p.ex.) é diferente da submissão por medo de desamparo, e é essa diferença que vai começar a estabelecer a fronteira entre saúde e vício.

O problema dessa fronteira entre domínio-submissão por confiança e a por medo é que essa, a por medo, é nossa relação com o Superego desde o início.

Se nossos pais usaram mais da autoridade do saber (a autoridade baseada no convencimento e no respeito a inteligência da criança), eles transmitiram valores para a pessoa da criança, para seu Ego.

Se a autoridade usada foi a de imposição por medo do desamparo, esses valores foram para o Superego, e vão formar base para possíveis doenças neuróticas e viciosas pela vida afora, com três vícios mais típicos daí derivados: o vício de domínio-submissão, o vício sadomasoquista básico e o vício sadomasoquista fodão-merda.


“DEPOIS, DEPOIS…” : O VÍCIO DA PROCRASTINAÇÃO

 


Não há cenários melhor para examinar o uso de drama pelo Superego, de como o Superego é capaz de transformar a menor coisa num “duro”, num sacrifício a ser combatido com o “dane-se” do vício, fazendo dessa menor coisa um drama: “ah, que horror, que drama, tenho que lavar a louça!” 

O que torna irresistível aquela palavrinha que equivale ao “dane-se”: “Depois, depois eu faço…”

Todos os vícios são fruto de uma guerra entre a construção e o imediatismo; todos os vícios obedecem a uma linha de montagem.

O mundo externo pede preparo, aprendizado e construção para que se lide bem com ele, a coisa é necessária, mas não é imediata nem pronta.

Se a construção for monopolizada pelo Superego, por cobrança, por imposição, por chantagem moral e por drama (“faça isso, senão ninguém vai gostar de você!”), haverá uma pressão enorme para tocar um “dane-se” para o Superego, em favor de um prazer imediatista, que virá de várias formas: dos vícios de substâncias e dos de comportamento (sexuais ou não).



terça-feira, 30 de abril de 2024

PSICANÁLISE QUE NINGUÉM ENTENDE - O AMIGO PERGUNTA

 



De Leandro Alves de Siqueira: “Vi que existe entre os psicanalistas uma espécie de gozo no falar difícil e no não entendimento. Mas não é um contrassenso?”

Francisco Daudt: Leandro, as nossas ações são complexas, multideterminadas, mas existe esse componente, um certo complexo de inferioridade na psicanálise: diante da dificuldade de se entender a psiquê humana, e frustrada por sua impotência, a pessoa pode se sentir atraída a se dedicar mais ao confeito do que ao bolo; mais às firulas do que à substância; mais à espuma que ao chope; mais ao rito do que ao significado; mais à forma que ao conteúdo; mais à erudição que à sabedoria.

Tenho muita compaixão pelo aspirante a psicanalista que ambicionava entender os segredos da mente, mas quando chegou ao curso de psicologia (ou à formação analítica) se deparou com uma enxurrada de conhecimentos esotéricos, que o deixavam perplexo.

Imagino-o sempre a se perguntar, “mas então é isso? Eu não estou entendendo nada, então… o errado devo ser eu, eu devo ser meio burro”. E a partir daí, começou um processo de se adaptar, de aderir, de aprender a falar difícil, de ter o gozo de passar a perplexidade adiante, de não ser mais a vítima dela, mas seu causador.

Eu mesmo escapei por pura sorte dessa arapuca: eu era médico clínico havia cinco anos quando resolvi ser psicanalista. Não precisei cursar psicologia, portanto. Estive prestes a fazer uma formação com analista kleiniano, mas o destino me pôs diante de um freudiano formado na Argentina pelo Angel Garma (que tinha se formado com o Theodor Reik, formado por sua vez pelo próprio Freud). Foi desse jeito que me tornei um “freudiano de quarta geração”, em linha direta com o velho professor austríaco.

Assim, minha base teórica principal foi Freud, e ele fala língua de gente: eu entendia tudo. Ainda por cima, coordenei por dez anos grupos de estudo de Freud, e não tem melhor jeito de aprender que ensinar.

É daí que vem minha mania de ser claro.



quinta-feira, 25 de abril de 2024

"A COISA MAIS DURA QUE OUVI EM TODA MINHA VIDA" - O AMIGO PERGUNTA

 


“Ela tinha sido enganada pelo cara depois que ele a engravidou: ele disse que se ela abortasse, ele se casaria com ela, que ele só não queria mais filhos. Pois bem, ela abortou e ele lhe deu um pé na bunda.

Eu era seu amigo e fiquei devastado, solidário a ela. Dei-lhe todo o apoio, carinho e consolo que pude, eu gostava dela. Eu sei é que ela finalmente olhou para mim, pareceu gostar de mim, e acabamos por nos casar. Ela engravidou logo. Eu sempre quis ser pai, não podia estar mais feliz, e pensei que a gravidez de nossa filha também fosse lhe curar as antigas dores.

Mas algo estranho ocorreu: desde a gravidez e mesmo depois que nossa filha nasceu, meses se passaram sem que ela me permitisse qualquer aproximação sexual. Eu tentava conversar a respeito, mas nada.

Finalmente ela veio falar comigo: 'Fiquei pensando no porquê do meu afastamento, e concluí que foi o seguinte: quando você me engravidou, você tirou toda a possibilidade de um dia eu voltar para o fulano (o tal que a tinha enganado). Isso fez com que eu não quisesse mais que você nem chegasse perto…'

Foi a coisa mais dura que ouvi em toda minha vida.”

Francisco Daudt: Posso imaginar. É uma história de luto, de perda de uma ilusão, uma espécie de engano de pessoa tardio, com o agravante de estarem ligados pela filha (agravante, por um lado; atenuante por outro, já que foi um sonho realizado seu, de se tornar pai). 

A descoberta do narcisismo de alguém em quem se investiu tanto traz sempre sentimentos conflitantes: uma raiva descomunal… e ao mesmo tempo, uma perplexidade enorme. 

Como funciona essa cabeça narcisista? A intuição te mostra que não houve malícia, má intenção naquele comunicado horrível. A outra nem se deu conta de como estava te ferindo. Aos olhos dela, ela estava apenas sendo honesta.

Ao mesmo tempo, sua história contrapõe dois perfis masculinos clássicos: o “papai” (você, capaz de acolhimento e consideração) e o “cafajeste” (o cara; no caso, o pior tipo de cafajeste, o Don Juan das falsas promessas). 

Há um cuidado adicional: verifique se há repetição de finais infelizes em seus relacionamentos amorosos, pois você estaria vivenciando algo que se chama de neurose de transferência: a atração fatal por narcisistas, com a esperança (fadada ao desastre) de convertê-los em pessoas capazes de te apreciar. 

Se for esse o caso, seria preciso examinar sua história de aprendizado afetivo, pois a neurose de transferência conta o que está inscrito em nosso complexo de Édipo.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

A INEFICIÊNCIA DO DRAMA

 


O paciente entrou no Miguel Couto andando, mas com uma faca cravada no olho, até o cabo. As pessoas viam aquilo e gritavam, outras desmaiavam…

Ele chegou à sala de atendimento, o médico olhou para ele, pediu para que ele dissesse se sentia as mãos, ele disse que sim. Em seguida, o médico pegou o cabo da faca e tirou-a fora. O paciente ficou bem.

Perguntado como pôde ser tão frio, o médico respondeu: “Nós não estamos aqui pra fazer drama; estamos para resolver problemas”.

Essa lição da ineficiência do drama me ficou, já lá se vão 54 anos dessa cena. Mas foi lidando com a psicanálise do Superego que a coisa fez mais sentido para mim: o drama não serve para resolver problemas; ele serve para dar um sentido tal de horror e urgência, que a única resposta é a reação, nunca a reflexão.

Por isso o drama é a arma preferida dos tiranos, por isso o drama é a arma preferida de nosso tirano interno: o Superego.

Veja na política: quando a ditadura argentina estava por um fio, o general Leopoldo Galtieri, o tirano de então, inventou de tomar posse das ilhas Falklands. Isso! Ele inventou um drama de guerra para “unir a Argentina” sob seu comando, e se manter no poder.

Eficiência? Nenhuma. Argentinos morreram e as Falklands continuaram com a Inglaterra. Galtieri ganhou alguns meses de sobrevida.

O Nicolas Maduro começou a trilhar o mesmo caminho, querendo pôr a Venezuela em guerra com a Guiana. Os exemplos não faltam. O drama nunca resolvendo o problema, mas… mantendo a ditadura.

Sendo assim, um dos instrumentos fundamentais da psicanálise do Superego é NÃO FAZER DRAMA de nada. Nada é um horror; nada é um escândalo; ninguém é um monstro assustador; apenas a doença é objeto de análise… e o Superego faz parte do problema, não da solução.

Ela examina com cuidado a faca, para poder retirá-la com segurança e serenidade.




segunda-feira, 22 de abril de 2024

O QUE MOVE A HUMANIDADE… E O QUE NOS MOVE: SENTIDO E JUSTIÇA

 

“O homem que sabe” (homo sapiens) tem, desde sempre, buscado entender o mundo. Para nós, uma questão de sobrevivência e de controle do que nos pode afetar.

Não é só questão da espécie; é questão pessoal nossa, desde o nascimento. Quando ouvia trovões, perguntava à babá o que era aquilo que estava me assustando. “É que vai haver festa no céu, e São Pedro está arrastando os móveis para limpar os salões. Depois ele vai jogar água no chão, e ela vai cair aqui: é a chuva”. Ela dava sentido à coisa e eu sossegava.

A humanidade passou também pelas etapas da busca de sentido pelo pensamento mágico, que deu origem a todas as religiões e a todas as cosmogonias (explicações para a origem do universo), até ter a humildade de respeitar sua ignorância e sua vontade de investigar: o nascimento da ciência. Mas isso só há uns 300 anos, no Iluminismo.

A ciência e a investigação a partir da ignorância respeitada (o que faço em psicanálise) são os mais eficientes instrumentos inventados pela humanidade, até agora, para dar sentido ao estranhamento.

O mesmo se passou com o desejo de justiça, de ajuste, de correção do que não bate bem, daquilo que nos incomoda: desde a porrada no nariz até a negociação que leva em conta ambas as partes. 

Em termos individuais e em termos gerais da história humana: das formas toscas de correção das injustiças (vingança, guerra, pena de Talião etc.) a formas iluministas democráticas (diplomacia, direito de defesa, negociação, ONU, votações, processos judiciais etc.).

A democracia, a consideração pelas partes em litígio, a igualdade de direitos perante a lei são os mais eficientes instrumentos inventados pela humanidade, até agora, para produzir justiça.