sábado, 23 de setembro de 2023

“ESSE NEGÓCIO DE FOBIA NÃO É MEIO INFANTIL?”

 



“Afinal, ter medo de barata? Ah, que ridículo… ainda se fosse de aranhas…”

Francisco Daudt: É claro que é infantil. Tanto de baratas quanto de aranhas, ou de outra coisa qualquer. TODAS as neuroses nos remetem à infantilidade, à fragilidade, ao medo do mundo, ao medo do desamparo.

TODAS elas são dramas, e são dramas da infância, do tempo em que dependíamos imensamente do amparo do mundo externo (pais, família etc.). Do tempo em que nossos desejos, nossas características, nossos sentimentos e nossa maneira de ser começavam a entrar em choque com o “mundo amparador”.

E de um tempo em que esse “mundo amparador”, suas leis, suas exigências, suas ameaças, começavam a ser absorvidas por um software nascente em nossas cabeças: o Superego. Lá se depositavam aos poucos o que esse “mundo” exigia de nós; como ele nos via, como nos julgava, como ele nos ameaçava; os rótulos (“tem que ser fodão”; “não pode ser merda”).

E tudo de forma dramática. Por que o Superego é dramático, e do drama se alimenta? Porque o drama implica urgência e importância: a resposta não pode esperar por reflexões, tem que ser reativa. Diante do drama, já que a reflexão foi para o brejo, todos somos imbecis.

Voltando à barata, como essa imbecilidade dramática se aplica? Assim: a barata é do mal. Ela é habitualmente caçada e morta a chineladas. Ela é objeto de raiva e de vontade assassina. Ela mora fora de nós. Tudo isso a qualifica para poder representar um mundo externo que odiamos, mas…

…poderia ela ter poderes de retaliação? Vejamos: a barata no quarto amedronta no grau 6. Dá pra subir na cama, chamar alguém que a extermine. Mas a barata voadora bate no 10: todo fóbico sai correndo. Mesmo os não fóbicos se arrepiam todos quando uma cascuda eriça as asas e alça voo. O drama é máximo: não cabe reflexão, só reação.

“Ela vai se vingar de nós, que tanto a odiamos e queremos vê-la morta”. Já perguntei a vários fóbicos o que a barata poderia fazer contra eles. A resposta é uma só: “não sei, nem quero saber”. É o terror do desconhecido imaginado.

Está posta a cena para a representação do drama da neurose: os conflitos e as raivas que o mundo amparador nos desperta saem do palco (são reprimidos) e… a barata entra. O problema não é mais com os pais, é com a barata.

É por isso que Freud usou a palavra “verdrängung”. Costumamos traduzi-la para “repressão” ou “recalque”, mas seu significado original é “desalojamento”: sai uma coisa (o drama com os pais) e entra outra em seu lugar: o drama com as baratas.

O PSICANALISTA COMO UM CURADOR

 



A psicanálise que proponho é uma defensora da democracia parlamentar.

Explico: a democracia precisa começar dentro de nós, em nossas cabeças. O regime habitual que lá reina é a tirania do Superego: o ditador “sabe o que é certo”, e “sabe o mal que se abriga em nossas almas”.

Em nome do “nosso bem”, nos mantém sob constante ameaça de desamparo, cobrando o impossível, julgando o irrelevante, fazendo drama de tudo, com o principal propósito de se manter no poder.

O Superego contém leis nunca discutidas. Quando vamos olhá-las, elas são idiotices absorvidas do senso comum de nosso ambiente da infância: não tínhamos escolha; era absorvê-las ou ser desamparado.

Quando um cliente me chega, ele já tem um nível de amparo razoavelmente independente daquele de sua infância. Então é possível começar a transição para a democracia mental: rever aquelas leis e aquelas crenças da tirania, conversar com elas, questioná-las, começar a transição democrática.

É esse o processo de cura, em psicanálise: a busca de justiça psíquica; a modificação das crenças e leis injustas que estão em nosso Superego desde a infância, e que continuam a nos aprisionar.

Portanto, o psicanalista tem um papel de curador: não só no sentido de buscar a cura, mas também no de cuidar do processo. Como um “curador de menores”, daquele menor que existe em nós.

Quando eu disse isso, num debate sobre psicanálise que aconteceu numa Bienal do Livro, no RioCentro, houve uma reação bizarra: dividiam a mesa comigo o Jurandir Freire Costa, o Joel Birman e um psicanalista português de quem não lembro o nome. Pois o Joel Birman aparteou: “É preciso não confundir ‘curador’ com ‘currador’”.

Pensando depois, considerei: não poderia haver uma intervenção mais ilustrativa de como funciona o Superego. Suas leis não são claras, suas ameaças são alusivas, insinuações, causadoras de choque e perplexidade. Você nunca sabe direito o que ele quis dizer, só que a acusação é algo de terrível….



O PSICANALISTA COM RAIVA

 


Essa profissão é muito curiosa. Na vida do dia a dia, se alguém faz algo que nos desperta raiva, ou reagimos, ou nos afastamos. Mas se é o cliente, a nossa raiva despertada traz uma informação: “ele deve fazer isso com todos; isso é um problema na vida desse cara”.

E assim, em vez de dar-lhe uma martelada na cabeça, ou fazê-lo sentir-se culpado, ensino aos alunos que eles usem seu sentimento como início de uma investigação. Do tipo (aqui, em forma caricatural): “Olha, você falou/fez aquilo; eu fiquei com vontade de te matar. Isso é comum na sua vida? Porque podemos estar diante de uma encenação da sua história, em forma de sintoma”.

Eu sei, é difícil, mas a gente aprende. De mais a mais, a raiva existe como motivação para se buscar justiça, e a investigação dos sintomas é a forma do psicanalista de encetar essa busca.



VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1

 



Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O QUE É TRANSFERÊNCIA, EM PSICANÁLISE

 


Eu postei a história do gato escaldado que tem medo de água fria, e o João Caridade Santoro reclamou, com razão: “não entendi”. É mesmo, João, eu fiz uma condensação tão grande, que ficou meio obscuro. Então vamos lá:

Primeiramente, “escaldar o gato” é uma maldade antiga que se fazia quando eles ficavam de madrugada urrando (fazendo sexo) debaixo da janela. O insone incomodado punha água para ferver, abria a janela e a jogava sobre o gato, que assim ficava “escaldado”. Se mais tarde caísse água fria sobre ele, a memória do escaldamento se transferiria automaticamente àquela situação, e o bicho pularia alto, como se estivesse sofrendo nova queimadura. A água, mesmo fria, reviveria o trauma.

Então, “transferência” é um conceito que vai do banal ao complexo. O exemplo banal é que você, ao ver essas letrinhas, transfere a elas suas memórias da língua portuguesa e do aprendizado da leitura, e assim elas fazem um sentido: o sentido que ela estão fazendo é resultado dessa transferência.

Um pouco mais complexas são as transferências de memórias para situações presentes no dia a dia de nossas comunicações sociais: “o jeitão de fulano me lembra de gente do bem, eu gostei dele” (transferência positiva); “beltrano nem abriu a boca e já me parece um mané” (transferência negativa).

Engrossando mais o caldo estão as transferências que geram resistência à análise: o cliente, sempre tão falante, agora está quieto, desconfortável. “O que houve?” “Ah, uma bobagem… coisa da minha cabeça”; “Pois diga, este é o lugar para entender as coisas da sua cabeça”; “É que você está usando um casaco parecido com outro que me traz tristes memórias…”

No auge da complexidade estão as transferências neuróticas, que contam de maneira cifrada nosso complexo de Édipo: “não sei porque, mas eu sempre me apaixono pela pessoa errada! Como eu consigo me iludir de maneira tão repetida? Tudo começa lindo, mas depois eu sou rejeitado como sempre fui…” Essa dá um trabalho danado para decifrar…



VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1

 


Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).




O PSICANALISTA COM RAIVA

 


Essa profissão é muito curiosa. Na vida do dia a dia, se alguém faz algo que nos desperta raiva, ou reagimos, ou nos afastamos. Mas se é o cliente, a nossa raiva despertada traz uma informação: “ele deve fazer isso com todos; isso é um problema na vida desse cara”.

E assim, em vez de dar-lhe uma martelada na cabeça, ou fazê-lo sentir-se culpado, ensino aos alunos que eles usem seu sentimento como início de uma investigação. Do tipo (aqui, em forma caricatural): “Olha, você falou/fez aquilo; eu fiquei com vontade de te matar. Isso é comum na sua vida? Porque podemos estar diante de uma encenação da sua história, em forma de sintoma”.

Eu sei, é difícil, mas a gente aprende. De mais a mais, a raiva existe como motivação para se buscar justiça, e a investigação dos sintomas é a forma do psicanalista de encetar essa busca.