sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O QUE É TRANSFERÊNCIA, EM PSICANÁLISE


 Eu postei a história do gato escaldado que tem medo de água fria, e o João Caridade Santoro reclamou, com razão: “não entendi”. É mesmo, João, eu fiz uma condensação tão grande, que ficou meio obscuro. Então vamos lá:

Primeiramente, “escaldar o gato” é uma maldade antiga que se fazia quando eles ficavam de madrugada urrando (fazendo sexo) debaixo da janela. O insone incomodado punha água para ferver, abria a janela e a jogava sobre o gato, que assim ficava “escaldado”. Se mais tarde caísse água fria sobre ele, a memória do escaldamento se transferiria automaticamente àquela situação, e o bicho pularia alto, como se estivesse sofrendo nova queimadura. A água, mesmo fria, reviveria o trauma.

Então, “transferência” é um conceito que vai do banal ao complexo. O exemplo banal é que você, ao ver essas letrinhas, transfere a elas suas memórias da língua portuguesa e do aprendizado da leitura, e assim elas fazem um sentido: o sentido que ela estão fazendo é resultado dessa transferência.

Um pouco mais complexas são as transferências de memórias para situações presentes no dia a dia de nossas comunicações sociais: “o jeitão de fulano me lembra de gente do bem, eu gostei dele” (transferência positiva); “beltrano nem abriu a boca e já me parece um mané” (transferência negativa).

Engrossando mais o caldo estão as transferências que geram resistência à análise: o cliente, sempre tão falante, agora está quieto, desconfortável. “O que houve?” “Ah, uma bobagem… coisa da minha cabeça”; “Pois diga, este é o lugar para entender as coisas da sua cabeça”; “É que você está usando um casaco parecido com outro que me traz tristes memórias…”

No auge da complexidade estão as transferências neuróticas, que contam de maneira cifrada nosso complexo de Édipo: “não sei porque, mas eu sempre me apaixono pela pessoa errada! Como eu consigo me iludir de maneira tão repetida? Tudo começa lindo, mas depois eu sou rejeitado como sempre fui…” Essa dá um trabalho danado para decifrar…




VIVENDO E APRENDENDO: SOBRE O AUTISMO - parte 1


Renata Longhi é uma psicóloga que vem fazendo um trabalho admirável com clientes do transtorno do espectro autista (TEA). Ela os atende no lugar onde vivem e interagem, em suas casas, e assim pode dar assistência não só a eles, mas às pessoas que os cercam. É um trabalho lindo!

Começo aqui a transcrever a entrevista que fiz com ela, que me transportou para dentro de suas vivências, de mãe e de terapeuta, o melhor instrumento da empatia.

Francisco Daudt: Renata, foi com você que aprendi as sutilezas dos graus mais leves do espectro autista, o grau 1 (leve) e o grau 2(moderado). Queria que você contasse para nossos amigos como se tornou a terapeuta que é, a partir da sua trajetória com seu filho Gabriel, pode ser?

Renata Longhi: Sim. Sou formada em psicologia e administração de empresas. Ao longo desses anos, desenvolvi minha carreira e realizei o sonho de ser mãe de filhos incríveis: Julia, Carolina, Gabriel e Luiza.

Com um ano e oito meses, o Gabriel começou a falar algumas palavras como "mama", "papa", mas logo parou de falar e começou a apontar para o que ele queria. Além disso, passou a sentir sensibilidade com barulho e luz. Decidi buscar ajuda médica, pois percebi alguma coisa diferente nele.

Apesar de ter estudado sobre autismo na faculdade de psicologia, nunca imaginei que poderia ter um caso na minha propria família. Na década de 90 era 1 caso pra cada 2.500 crianças. Hoje, segundo o CID americano, essa estatística é de 1 pra cada 36!

Na consulta médica, o neuropediatra escreveu em uma folha de papel "autismo" e disse que era esse o diagnóstico do Gabriel e sugeriu que eu me informasse no Google sobre o assunto.

Foi o que fiz. Passava noites em claro pesquisando na internet sobre causas, tratamentos, qualidade de vida no autismo, dietas, etc. Vi muitas terapias. A que realmente me chamou atenção foi o Son-Rise, que é voltada para o amor incondicional a essa criança: o olhar carinhoso, a aceitação, o respeito, e sua interação ao mundo dela.

O Son-Rise (mistura de “alvorecer” e “criação do filho”) se baseia na ideia de que a criança esta bem no "mundo dela"; é a gente que quer traze-la para o "nosso mundo". Era justamente isso que procurava, pois, que mal o amor poderia fazer para o meu filho?

A partir dai, fui para os Estados Unidos fazer uma imersão no “Autism Center of America” e me dediquei integralmente ao programa Son-Rise. Ainda voltei mais 2 vezes para me reciclar, e na terceira inclusive o Gabriel foi junto.

Enfim, montei uma equipe com pessoas que estavam genuinamente interessadas em ajudar o Gabriel: avôs e avós, madrinha, tias, amigas, todos eram muito bem-vindos ali. Eu ensinava pra eles todo o processo e técnicas dessa terapia. Todos os dias cada uma dessas pessoas envolvidas no processo ficava 2 horas com o Gabriel, era uma média de 6 horas por dia de terapia.

Como era incrível ver dia apos dia ele interagindo e avançando em seu desenvolvimento. Quando ele tinha 5 anos de idade, fomos morar em outros países e levei essa terapia para todos os lugares em que moramos, ensinando para outras pessoas também.

Por ser uma terapia em que você pode fazer na sua própria casa, ela se torna muito acessível. Hoje o Gabriel tem 14 anos, estuda em uma escola regular, com ajuda de uma mediadora, mas semana passada já foi na coordenação dizer que nao fazia mais sentido ter apoio, afinal “ele era um estudante igual aos outros”.

E sim, ele hoje é minha fonte de felicidade: seus pequenos atos que o fazem “atípico“ simplesmente me fascinam, como nao usar “shampoo pra cabelo seco”, pois cabelo só se lava molhado, ou seus horários cronometrados: almoço as 13.30h, banho as 21.21h.

E assim continuo fascinada e encantada pelo mundo do autismo.

(Na foto de sua página no Instagram, Renata e Gabriel).




 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

FUNCIONAMENTO DO SUPEREGO - parte 4

 


Agora o Superego está instalado… mas não completo. O processo de adestramento que o formou vai continuar a construção dele, em um processo de “machine learning” semelhante ao usado pelas inteligências, tanto a artificial (I.A.) quanto a natural: aperfeiçoamento através de dados novos e correção dos antigos.

O seu princípio básico de funcionar com modelos inalcançáveis (“seja um santo; seja um gênio; seja fodão”) e antimodelos assustadores (“não erre; não seja ingrato; não tenha raiva de seus pais; não seja merda etc.”), e operá-los na base da chantagem (“senão… já sabe: desamparo”) e dos choques (vergonha, medo, angústia, culpa) já está instalado, e não se desinstalará nunca mais: mesmo que enfraqueça percentualmente, não chegará a zero.

- (Não é uma equação sem saída: as crianças podem absorver princípios éticos e de bom funcionamento através de virtudes ensinadas como vantagens para ela; mais tarde, o poder do Superego diminuirá, se aprendermos a ouvi-lo como algo em nós, e a discutir suas leis).

Mas ele ainda conta com um truque para se manter no poder: a naturalização. Assim como tiranos sugerem que eles são investidos pelos deuses para governar, que tudo sempre foi assim, que isso é “natural”, o Superego conta com nossa incapacidade de estranhamento: nenhuma criança que nasceu vendo tartarugas verdes andando pelo teto vai achar aquilo estranho. Elas simplesmente não têm como estranhar o Superego, muito menos questioná-lo. Ele passará despercebido… e como natural.

Não é seu único truque de manutenção da tirania. O outro é a sedução: “Confunda-se comigo e você será tão poderoso quanto eu!”, diz ele. “Faça com seu irmãozinho o que fizeram com você! Cause-lhe terror de desamparo!”

Mais tarde, em um outro ambiente em que o Superego costuma ser reforçado (a escola), a criança olhará o bully como um novo tirano poderoso, e ficará tentada a se identificar com ele, a fazer bullying com algum colega mais fraco.

É o “passa diante, senão vira elefante!”, uma brincadeira perversa dos meus tempos de escola: você levava um cascudo do colega da carteira de trás, e quando virava para reclamar, ele dizia a frase fatal. Naquela hora, sem saber, você estava seduzido para operar como Superego do colega em frente.

Sem saber, você estava se confundindo, por sedução, com seu próprio Superego!




COMOÇÃO CAUSADA PELO TITAN X INDIFERENÇA COM EMIGRANTES - O AMIGO PERGUNTA

 



COMOÇÃO CAUSADA PELO TITAN X INDIFERENÇA COM EMIGRANTES

De Renato Capper : “Como pode ser entendido o contraste entre as duas repercussões, Titan e naufrágio de emigrantes? O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?”

Francisco Daudt: Para tentar entender isso, somam-se a psicanálise e a psicologia evolucionista:

1. Há processos de identificação envolvidos: é muito mais provável que as pessoas tenham se identificado com aventureiros curiosos (e fascinados com o Titanic, como enorme parcela dos que veem notícias) do que com criaturas desesperadas em fuga.

2. Há medos naturais tocados em nós (confinamento, escuridão, isolamento, e principalmente desamparo: ajuda impossível).

3. Há torcida e expectativa, há tensão e acompanhamento, há vontade de ver os vídeos produzidos, há portanto investimento de tempo e emoção.
Há personalização: em técnica de roteiros, isso se chama “plantar um cachorro”. O filme mostra por mais de dez segundos um cão que não é personagem central. A partir daí, há transferência afetiva para o cão, ele se torna um “amigo”, e vamos sofrer quando inevitavelmente ele vier a se machucar/perder/morrer.

4. Há o contraste de pessoas bem-sucedidas empreendendo uma aventura cara e o resultado trágico dessa aventura, algo parecido com o próprio desastre do Titanic; algo que nos diz baixinho, “não há garantias…”

5. Por fim, infelizmente, há a banalidade do mal. Por mecanismo de defesa, a tendência é que se veja a morte de uma população sofrida como se vê perdas em combate na Ucrânia: mais raiva pelas causas (uma abstração ideológica) que compaixão pelas pessoas (uma dor individual que provoca identificação, “e se fosse comigo?”).

De modo que, a rapidez em condenar os que ficaram mais abalados com o caso do Titan só está a serviço das demonstrações de superioridade moral e da patrulha ideológica dos ofendidos. Ela, infelizmente, não traz benefícios para os desvalidos. Só traz raiva contida, por causa do julgamento injusto.





EVOLUCIONISMO E SUPEREGO

 


EVOLUCIONISMO E SUPEREGO

“Em que a psicologia evolucionista te ajuda, na pesquisa psicanalítica?”

Francisco Daudt: A entender a origem e a força do Superego, principalmente.

Olha só a sequência: nosso cérebro é o maior que existe (na relação corpo/cérebro, claro). Portanto, nascemos prematuros (ou as mães morreriam de parto). Portanto, precisamos de amparo por anos. Portanto, nosso maior medo é o desamparo. Portanto, aprendemos bem cedo o que pode desagradar e agradar nossos pais.

É assim que o Superego se forma: segundo as leis de agrado/desagrado de nossos pais, e de nossos subsequentes amparadores.

Para piorar, nenhuma mãe dá conta sozinha de um bebê. Portanto, as mães também precisam de amparo. Portanto, nossa espécie cria e depende de laços sociais.

Está vendo o poder do Superego? Ele age sobre nós através da ameaça de desamparo, a mais terrível das ameaças.




DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE Capítulo 6º Neuroses

 


DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE Capítulo 6º Neuroses

Hipocondria

Ainda que descrita por Freud como neurose, a hipocondria me parece mais fronteiriça com os vícios. Também parece ser uma derivação frequente do perfil narcisista.

O nome hipocondria vem do grego, “doença de debaixo das costelas”, região do abdome onde gases retidos podem provocar pontadas e dores que, ainda que agudas, não têm gravidade… mas podem ser confundidas com males cardíacos, podem levantar suspeitas de algo sério, podem produzir obsessões sobre o estado de saúde de quem as têm.

É isso: uma doença baseada em suspeitas obsessivas de doença grave. Seu caráter narcisista diz respeito ao seu excessivo grau de auto-observação, de tempo investido em auto-exame, de atenção desmesurada sobre o próprio corpo e sobre o que pode atingi-lo.

A cultura familiar pode ser um fator de sua origem. Há famílias em que o zelo para prevenir doenças (evitar as friagens, o sereno, as correntes de ar, agasalhar-se bem, cobrir a cabeça, a obsessão com a alimentação saudável, os medos do que provocaria câncer etc.) se confunde com demonstração de afeto. Isso é uma presença frequente na história do hipocondríaco. Sim, há culturas hipocondríacas.

Novamente, será considerado doença pelos critérios percentuais de dano causado, de sequestro de energia, de incapacitação/restrição para investimentos prazerosos.

Nas formas graves, envolverá peregrinação a vários médicos - até achar aquele/s que endosse/m as suspeitas (incluindo o descarte/desconfiança dos que apontarem a hipocondria como sendo o verdadeiro problema); o acúmulo de remédios atuais e passados (parece que nenhum será jogado fora, a verdadeira farmácia de um acumulador); a via crucis de exames complementares, quanto mais caros e complicados, melhor; cirurgias desnecessárias (essas sim, trazendo risco de vida).

Molière, o dramaturgo francês do século XVII, fez uma caricatura da doença em sua peça “O doente imaginário”. Bem, mas os quadros mais graves não ficam muito distante do que retratou. Exceto que hoje, com a sofisticação tecnológica dos exames complementares e das cirurgias, a coisa só faz piorar.

Eis porque tendo a colocar a hipocondria na categoria de vício: ela consola e dá sentido compensatório a vidas frustradas, além de servir de base para outro vício: o vitimismo.

Combatê-la não é fácil, já que narcisistas dificilmente se reconhecem como parte do problema. E há outro fator de resistência: a/s doença/s imaginária/s lhes serve/m de álibi para não fazer mais nada e para requerer constante atenção dos outros.

Chama-se a isso “resistência do benefício secundário”: o ganho que ele tem com sua doença a faz mais preciosa ainda.





FINALMENTE! A REVOLUÇÃO DO ENSINO COMEÇOU!

 


Venho defendendo a ideia de transformar as escolas em espaços de aprendizagem de CONVIVÊNCIA CIVILIZADA E DEMOCRÁTICA, com leis e debates sobre isso, deixando o aprendizado de conteúdo nas mãos de TUTORES INDIVIDUALIZADOS de I.A..

Como se cada aluno contasse com um professor particular, em permanente avaliação de suas capacidades e interesses, com apenas um currículo básico como genérico, o mais seria no atendimento específico.

Essa é minha ambição, em termos de democracia: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES! Deste modo, um aluno de Quixeramobim teria tantas oportunidades de desenvolvimento quanto um aluno da Eleva, do Jorge Paulo Lemann.

Pois parte do meu sonho começa a se tornar realidade… em Harvard!