segunda-feira, 17 de julho de 2023

A PSICANÁLISE COMO PSEUDOCIÊNCIA - O AMIGO PERGUNTA

 


De Lucas Peccin: “Você viu que a Natália Pasternack inclui a psicanálise na lista das pseudociências? Isso me deixa indignado!”

Francisco Daudt: Lucas, não há porque brigar por isso, mesmo porque ela tem boa parcela de razão, e eu tenho muita admiração por ela.

Nós estamos fazendo algo de muito novo, e vamos conquistar nosso público com isso: a psicanálise como protociência, aspirante ao conhecimento verdadeiro, aderente ao método científico quando possível, humilde machine learning em processo, reconhecedora de seus limites e de sua ignorância, com vontade de saber, de investigar, sem dogmas nem interpretações irrefutáveis tiradas da cartola; o cliente é nossa bancada de testes: o que ele refutar será jogado fora.

A psicanálise precisa se tornar respeitável primeiramente para nós mesmos! O resto será consequência da nossa sinceridade.





SUPEREGO - ORIGEM E FUNCIONAMENTO - parte 3

 





O Superego está, portanto, ligado a raizes biológicas fortíssimas: nosso software de sobrevivência, nossos impulsos de autopreservação. Tudo isso através do medo do desamparo.

Eis porque o Superego age de forma dramática e com senso de urgência: nada é para depois; tudo é grave.

Eis porque o Superego age nos dando choques: horror; repulsa; vergonha; culpa; ridículo; angústia; fobias e pânicos.

Eis porque é difícil perceber seu conteúdo ideativo (a “argumentação” do Superego): ela não aparece; só aparecem o choque, o drama, o alarme. Todos eles exigindo reação imediata: arrependimento, fuga, luta, repulsa.

A maneira como o absorvemos é capaz de dar uma pista de seu conteúdo: são modelos impositivos (“você tem que ser assim!”) e antimodelos repulsivos (“tudo, menos ser assim!”).

Qualquer xingamento que cole (nos cause ofensa ou choque) para nós será um antimodelo do Superego: fraude, farsa, imundo; vagabundo; bagunceiro; preguiçoso; viado/bichona; puta/sem-vergonha, idiota etc., todos esses podendo ser resumidos num só: “você é um merda!”

A lista é infindável, mas ela cai naquela definição do pior palavrão do mundo: é aquele que nos atinge, pois pensamos que ele pode retratar nosso lado sinistro/oculto, nossa realidade envergonhada.

Mas como o Superego é blindado quanto a seus conteúdos - é um juiz que nunca faz uma acusação clara, da qual possamos nos defender -, acabamos por não entender bem porque aqueles adjetivos nos atingem tanto, só sabemos que ESTAMOS EM PERIGO DE DESAMPARO, e isso é grave.

É daí que vem a repressão. É daí que vêm aquelas que consideramos “nossas verdades ocultas”, nossos monstros no porão, nosso inconsciente reprimido, a parte chata do nosso Id (“Algo em mim é perigoso!”).

Já posso adiantar que, quando a psicanálise entende esse “porão”, em vez de aparecer um monstro imundo saindo de debaixo da cama, aparecem desejos legítimos misturados a uma mitologia do senso comum familiar, que os distorceu.

Dois grupos de desejo em especial são alvos dessa mitologia familiar: os sexuais e os de justiça.

Os sexuais dão “tesões inaceitáveis;

os de justiça dão “raivas inaceitáveis”.

Só isso. Trazidos à luz, pode-se finalmente discutir o que eles têm de valor, e o que, por direito, a pessoa pode ter deles.

Ou, como me disse um cliente: “Eu não quero ter que ser fodão, eu só quero ser bom! Eu não quero morrer de medo de ser um merda, eu só quero poder errar e depois corrigir, ser incompleto, ter fragilidades!”






DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE 6º capítulo - Neuroses 3

 


DIAGNÓSTICOS EM PSICANÁLISE 6º capítulo - Neuroses 3

Neurose histérica

Ela é resultado da repressão do desejo sexual, que o Superego da pessoa considera como algo degradado, através de dois antimodelos: a puta, para o desejo hétero das mulheres; e o viado, para o desejo homoerótico dos homens.

Desse modo, quando o desejo surge, o Superego acusa, a angústia aparece. É a hora de entrar a repressão, como mecanismo de defesa.

A repressão, como vimos, desaparece com a consciência do desejo e a substitui por algo irreconhecível. No caso da histeria, o substituto é alguma anomalia corporal: a cegueira, a paralisia, o desmaio etc. Sempre corporal, sempre referido ao desejo inicial, sempre de início súbito, relacionado com o momento em que o desejo proibido foi despertado.

A partir dali, o problema estava deslocado: não era mais uma questão de desejo, e sim de saúde corporal. Não há mais angústia: há sintoma.

Na primeira vez em que Freud pôde entender o conteúdo do sintoma histérico, a paciente (Anna O.) estava com uma paralisia do braço que a mantinha com a mão estendida.

Pela hipnose (feita por Joseph Breuer), puderam saber que ela havia visto o pênis do pai pelo pijama entreaberto, e desejado estender a mão para tocá-lo. Foi quando a paralisia se deu… mas manteve a mão estendida: uma espécie de solução de compromisso entre o desejo e sua proibição.

Como ela é resultado da repressão do desejo sexual, e os costumes mudaram, a histeria está ficando cada vez mais rara. O último cliente que entrou com sintoma histérico no meu consultório foi há mais de 30 anos, e o desejo em questão era homoerótico pedófilo. Ele virou a cabeça para observar a bundinha de um menino de doze anos na piscina, e na mesma hora se instalou um torcicolo severo. Entrou na sessão usando um colar de Minerva para imobilização da cervical.

A investigação descobriu o que descrevi acima, discutimos seu direito ao desejo, a diferença entre pensar (não causa dano a ninguém) e agir, pusemos em questão a tirania das leis de seu Superego, e… ele retirou o colar, curado do torcicolo: uma daquelas curas, dramáticas e clássicas, da histeria.

Mas no século XIX, quando Freud a descreveu, a coisa era tão comum que havia até a personalidade histérica: a mulher (majoritariamente) hipersedutora, jogando charme sem parar, até que o homem tomasse um passo adiante. Nessa hora, ela, escandalizada, dizia: “Mas o que você está pensando? Não é nada disso, eu não sou dessas, eu só estava sendo simpática!”

Ou seja, ela foi levada por seu Superego a encontrar um jeito de dizer que são os outros os erotizados, que ela não tinha desejo nenhum. Um mecanismo de defesa chamado “projeção”, uma espécie de terceirização do crime.

Novamente, hoje em dia ainda é possível se encontrar comportamentos histéricos, mas em homens, que são levados a terceirizar seus desejos homoeróticos: altamente sedutores de outros homens, até que alguém lhes dê uma cantada. Reagirão com escândalo… ou mesmo violência.







SÓFOCLES, O PSICANALISTA QUE CUROU ÉDIPO DE SEU COMPLEXO

 


Adoro a orelhada como método de aprendizado. Olha só o que o Flavio de Campos me contou, e eu não sabia:

“Estou traduzindo 'Édipo em Colono', última peça que Sófocles escreveu. Nela, temos um Édipo que superou a culpa e argumenta que tudo o que fez, fez sem saber o que estava fazendo - matou o pai sem saber que era o pai dele, casou com a mãe sem saber que ela era mãe dele. Em 'Édipo em Colono', Édipo tb diz que ter cegado a si mesmo foi uma hubris, uma desmesura das emoções.”

Ou seja, Sófocles percebeu a injustiça do complexo de Édipo (literalmente), e escreveu uma peça, corrigindo-a!

É exatamente o que um psicanalista tem como missão de consultório: investigar a história de seu cliente para entender as crenças infantis que lhe foram injustamente metidas na cabeça, e que o torturam pela vida afora, e assim libertá-lo delas, fazer justiça. 







COMO SE FORMA O SUPEREGO - PARTE 2

 


O Superego impõe comportamentos através de ameaças. Uma espécie de adestramento aos valores do senso comum doméstico. Pode parecer que esses comportamentos sejam valores morais úteis, mas infelizmente não é só assim.

Como cada família tem seu senso comum, haverá casas em que a lei seja: “Comporte-se como um fodão! Não aceitamos merdas nesta casa!” (O exemplo é literalmente o que o pai do Trump disse para ele, na infância: “No losers in this family!”). Já se percebe que, nesses casos, o Superego não é o herdeiro da dissolução do complexo de Édipo, mas a sua verdadeira manutenção!

A pessoa carregará os ruídos de sua infância, as besteiras do senso comum da casa, as leis idiotas que foram aceitas como uma questão de sobrevivência, mas que agora são capazes de lhe perturbar pela vida afora.

O Superego se manterá como um enclave tirânico de nossa infância, carregado por um Eu (Ego) que teme suas lambadas, seus choques, suas acusações, suas ameaças.






COMO SE FORMA O SUPEREGO

 


Primeiro, equalização de nomenclatura: por razões práticas, vou usar os clássicos Ego, Id e Superego. Eles têm ganhado nomes novos, como “Eu, Isso e Super Eu”, mas, por razões de clareza, faço questão de traduzir seus nomes alemães originais:

Das Ich (o Eu);

Das Es (equivalente em inglês ao “The it”, como não temos pronome neutro em português, chamarei de “o Algo em mim”);

Das Überich (como “Super Eu” parece um Eu com superpoderes, prefiro a acepção alemã: “O Acima de Mim”).

1. Leitura freudiana - o Superego como parte da solução:

A resposta freudiana tradicional é que, quando a criança aceita a “castração” (equivale dizer, aceita os poderes do mundo externo sobre ela), seu complexo de Édipo se dissolve, e ela:

a. renucia ao amor/posse da mãe e abandona sua rivalidade com o pai;

b. absorve os valores da cultura, os “pode e não pode” e os “deve e não deve”, que passarão a vigiá-la e puni-la desde essa nova instância mental: o Superego.

O Superego é, pois, o herdeiro da dissolução do complexo de Édipo.

Dessa maneira, na leitura freudiana, o Superego seria muito bem-vindo, indispensável ao processo civilizatório, guardião da moral e dos bons costumes. Todos os nossos males viriam de não acatar bem suas ordens, não atender bem a seus ideais, não estar à altura deles. Seríamos permanentemente adestrados por seu poder de nos causar “angústia de castração”, a cada vez que saíssemos da linha.

2. Minha leitura: o Superego como parte do problema:

Minha leitura da formação do Superego tem divergências com a anterior: ela inclui dados da psicologia evolucionista e décadas de investigação psicanalítica da formação do Superego dos clientes. O que me levou a uma conclusão bem diferente: o Superego é parte ativa dos nossos problemas psíquicos, e nossos valores/ambições/metas não devem ser propriedade dele, e sim nossa, de nosso Ego.

Eis como entendo a formação do Superego: nascemos com softwares inatos. O DNA nos imprimiu um impulso de buscar prazer (que acaba nos levando a replicá-lo) e outro de evitar desprazer (que nos mantém vivo para realizar a tarefa anterior).

Outros softwares vêm igualmente com a máquina, para o bem ou para o mal, como o de orientação sexual, inteligência, obsessividade, narcisismo genético, TDAH, perfil mental masculino ou feminino (desvinculado da orientação sexual, ou mesmo do sexo de nascença), aptidão para exatas ou humanas etc. Todos esses inatos formam o Id, enquanto não somos conscientes deles.

Mas são o de prazer/desprazer que mais estarão implicados na formação do Superego. O Ego é o primeiro desses programas que se torna consciente para nós. “Eu me lembro” da primeira coisa registrada em minha memória: esse “Eu” já é o Ego consciente. Há registros assombrosamente precoces do Ego, gente capaz de lembrar de seus meses de idade, lembranças de berço.

O Superego vai nascer dos impulsos de evitar o desprazer: a raiva (diante de injustiças); a náusea/repugnância (diante do podre); o medo. Este último é o principal, na formação do Superego.

O medo inato tem como causadores a altura; o confinamento; o escuro; os répteis; os grandes insetos voadores… e o desamparo. Dado o nível de dependência com que nossa espécie nasce, o medo/angústia de desamparo vai ser o mais importante e o menos visível dos medos. É ele que será o motor da formação do Superego.

“Angústia de desamparo” é o termo que escolhi para entrar no lugar do freudiano “Angústia de castração”: ela é muito mais reconhecível, além de se aplicar tanto a meninos quanto a meninas. A ameaça “eu não vou mais gostar de você” tem muito mais poder do que “eu vou te trancar no quarto escuro”. Ela será a maior arma de chantagem disponível para a cultura nos dobrar (pais, professores, amigos, turma, emprego, qualquer pessoa ou instituição do amparo da qual dependamos… pelo resto da vida!).

Quando os prazeres do Ego da criança entrarem em choque com os interesses de sua cultura de criação, ela pode: a) ser ensinada a negociar com eles, não como valores pétreos escritos nas tábuas da lei, mas como circunstâncias do momento que precisam ser atendidas: “eu sei que se masturbar é gostoso, mas é algo para se fazer em privacidade, não em público, assim como ir ao banheiro”, p.ex., versus b) ser ameaçada de grave desamparo por ter feito algo horrível, p.ex. “a masturbação é um pecado mortal que vai te mandar para o inferno, quando você morrer!”

No primeiro caso, a criança aprende algo útil para si; no segundo, ela absorve um medo de desamparo ligado a algo que lhe é muito prazeroso, que agora está categorizado como algo horrível. Aí está o germe do Superego. (E também o germe da face reprimida do Id).









ACERTANDO PONTEIROS - O AMIGO PERGUNTA

 


De Lucas Peccin: “Qual o segredo de uma boa relação amorosa duradoura? Por que as DRs são tão difíceis? Você disse uma vez sobre o poder de “acertar ponteiros". Como praticá-lo bem?”

Francisco Daudt: As “DRs” e o acerto de ponteiros tornam-se muito mais fáceis e produtivos se partirem da seguinte premissa: “Eu gosto de você, eu quero ficar com você, é pra isso que estamos conversando: pra gente poder se amar mais!”

É claro, só funciona quando a premissa é verdadeira…