terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

PSICANÁLISE X ARTE

 



UMA AVENTURA NA ABSTRAÇÃO (usando o App Zen Brush):
“Um elefante no meio do temporal”.

A arte e a poesia permitem viagens pessoais na maionese, interpretações que não se pretendem "verdadeiras", feitas apenas para o deleite de quem as contempla.

A psicanálise, não. A psicanálise se debruça sobre o universo psíquico de alguém que sofre. Ela precisa estar comprometida com a busca do entendimento verdadeiro.

É esta a origem da palavra: psíco = mente, + análise = decompor em partes para entender.






ALCOÓLICOS ANÔNIMOS VIA INTERNET: UM BOM FRUTO DA COVID

 



Dois empecilhos ao sucesso dos Alcoólicos Anônimos: o rótulo e a presença na reunião. São ambos agravantes vindos do Superego: “eu só bebo socialmente, eu não sou um merda de um alcoólatra, nem estou indo a uma reunião de merdas”.

Pois as reuniões se dão, depois da Covid, remotamente. Ainda as há presenciais, mas hoje tem-se essa opção. Isso reduziu a resistência do Superego ao tratamento. Ou seja, o anonimato - que já era um facilitador - se tornou maior ainda. Com a vantagem de você poder ser um visitante, experimentar sem participar. Deixar para decidir depois de ter olhado debaixo da cama, e descoberto que o bicho-papão não estava lá.

A principal ferramenta anti-Superego continua lá: o acolhimento afetivo de gente embarcada na mesma luta, ninguém é melhor que ninguém, todos se apoiam mutuamente, todos querem o bem de todos e de cada um.

Os AA têm sido uma ferramenta coadjuvante muito valiosa para o meu trabalho. (Link abaixo).


A senha do on-line é 000 000.



ENTREVISTA EM PSICANÁLISE: AVALIAÇÕES PERCENTUAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que você faz, na entrevista com um novo possível cliente?”

Francisco Daudt: Tudo o que servir para o principal propósito da psicanálise que faço: a cura das doenças psíquicas e o aumento do percentual de saúde, para que ele tenha mais chances de buscar felicidade.

Psicanálise é diagnóstico. Quero fazer diagnósticos percentuais, de sua saúde e de suas doenças. A saúde é avaliada sabendo se a pessoa é independente, autônoma, manda em sua vida, faz o que gosta, é capaz de amar e ser amada, de gostar e ser gostada, capacidade de pensar de maneira reflexiva, de ver problemas em si, de ver seus limites, de conhecer seus desejos, e finalmente se se sente amparada em termos afetivos.

Imagine-se respondendo de zero a dez a cada um desses ítens, e você terá um percentual aproximado da saúde que o cliente tem. Seu índice de saúde vai ser crucial para saber como lidar com suas doenças.

Só depois eu vou pensar em suas doenças e que percentuais elas ocupam na vida do cliente. Seu perfil, de zero a dez, é obsessivo, é narcisista?; tem vícios de substâncias, comportamentais, tem sintomas neuróticos, fobias, pânicos? Distúrbios psiquiátricos, DDAH, etc.?

Tudo de zero a dez.

Isso não se dá como se fosse uma entrevista com formulários a preencher, a coisa acontece como uma conversa gentil e atenta, de alguém que está profundamente interessado no outro. Essas cláusulas estão na minha cabeça, e eu as apresento num contexto em que elas se mostram pertinentes, dando espaço para que o cliente fale de si como quiser (o que me faz aprender sobre ele).

Finalmente, apresento-lhe o que está ao meu alcance fazer por ele, e como proponho que isso seja feito, frequência semanal (raramente mais que uma), horários (a sessão começa na hora certa, e termina 50 minutos depois), preço, formas de pagamento: é a parte do contrato claro, pois clareza e transparência servem ao cliente: nada, no meu trabalho, será misterioso ou obscuro, pois essas coisas servem ao Superego, e não ao cliente.

Como não cobro pela entrevista, pois a considero como um test-drive, ele me dirá se está dentro ou não. Se estiver dentro, a entrevista lhe será cobrada, pois no preço do carro está incluído o custo do test-drive.




PSICANÁLISE: A QUEM SE DESTINA? (O AMIGO PERGUNTA)

 



M. Cristina Ribeiro: “Dúvida: a psicanálise é só para quem sofre?”

Francisco Daudt: É, eu suponho que seja esse o principal motivo para alguém procurar a psicanálise clínica e pagar caro por suas sessões. Dizem que há também o autoconhecimento como motivação, mas, sem sofrimento? Não sei… sinceramente, eu não me interesso muito pelas razões que me fazem gostar de sorvete de pitanga.

Mas a psicanálise não acontece só nos consultórios. O interesse nela como corpo teórico, como instrumento de saber como a mente funciona, também é um grande motivador para seu aprendizado.

Mesmo porque a psicanálise tem duas faces: a pessoal e a social. A face social da psicanálise serve a inúmeros propósitos, desde o científico até metas úteis, como a educação dos filhos, a avaliação da própria saúde psíquica, a maneira de distingui-la de suas doenças, o aprendizado da complexidade humana, os vícios comportamentais presentes na sociedade e na política, o entendimento dos próprios desejos…

Por fim, pessoas curiosas que se debruçam sobre a teoria psicanalítica, sem terem que “se submeter” a uma análise (odeio essa expressão!), são muito bem-vindas, pois podem contribuir criticamente para a epistemologia psicanalítica: vale dizer, para a busca de uma teoria da mente humana que seja mais próxima do verdadeiro.

Adoro críticas e questionamentos sobre a psicanálise. Meu farol-guia sempre foi a proposta de Karl Popper (o terceiro na foto, ao lado de Darwin): faça sua teoria clara e vulnerável à refutação, e ela estará mais próxima do método científico.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

OBSESSIVOS E A FASE ANAL

 



Ser obsessivo é ser correto, limpo, arrumado, simétrico, fazer bem feito, entregar o prometido, ser pontual, não ter dívidas, tender ao pensamento binário (“ou isto, ou aquilo”, sem meio-termo, aquela maldição da Cecília Meirelles), ter exigências nas alturas sobre si mesmo, ter exigências de pureza idem, detectar máculas mínimas que desqualificam o todo… e, estatisticamente, ter uma inteligência acima da média.

A obsessividade é herdada, nasce-se com ela. Crianças de dois anos super arrumadinhas com seus brinquedos e objetos são um exemplo de que esse traço de personalidade não é aprendido, não é cultural.

Nascer obsessivo pode ser uma benção ou uma maldição, depende se a obsessividade é uma ferramenta sua, ou se você é um escravo dela. Lembrando: no funcionamento de nossa mente, tudo é percentual, ou seja, pode haver certa escravidão no obsessivo-ferramenta, e vice-versa, certa ferramenta no obsessivo-escravo.

Em tempo, o obsessivo-escravo pode sê-lo de forma contracultural: fazer tudo obsessivamente ao contrário do que mandam seus pais. É o prisioneiro da vingança.

Mas, e a fase anal com isso? Ah, é a dupla controle-pureza! A questão do controle está acima de tudo o mais, para os obsessivos. Quando ele aprende o controle dos esfíncteres, e que há lugar certo para liberar suas “impurezas”, aquilo lhe dá um poder especial de negociação com o mundo: se o azar lhe deu pais muito cobradores, sua tendência será ir para o “eu não preciso que ninguém me cobre, eu faço tudo melhor do que me pedem”. É o obsessivo hipercultural, o tipo mais comum.

É assim que se forma o Superego de um obsessivo. Em termos afetivos, é uma droga: ele não aceita ambivalência. Por isso, reprime a raiva que poderia ter de seus amparadores (geralmente, os pais). Se é uma questão de “ou isso, ou aquilo”, diante do dilema “você afinal ama?, ou odeia seus pais?” Ah, pode ter certeza de que o “ter raiva deles” vai sumir da consciência…

…produzindo esquisitices, como as neuroses obsessivas, as fobias, os ataques de pânico. E produzindo vícios, como o sadomasoquismo fodão-merda, e outras formas de s&m.

Sabe o “cutting”? Esses adolescentes que se cortam? Eles são obsessivos com raiva voltada para si mesmos, já que ela não pode ir para o endereço certo… 





A MÃE NATUREZA É PRECONCEITUOSA (ou, “você acha que manda no seu desejo?”)

 



Trazemos múltiplos preconceitos inatos em nosso cérebro, são softwares que vêm com a máquina, a começar com a maneira como vemos os estranhos de qualquer sexo: avaliação instantânea se representam ameaça e/ou se há possibilidade de interação sexual com eles.

Com um programa de computador, if-then, “se ameaça, luta ou fuga?”, “se não ameaça, seria uma oportunidade sexual?”

É o desejo de prazer em operação. Novos preconceitos entrarão aí, para ambos os sexos, numa velocidade tão grande que não nos tornamos conscientes deles.

Vamos tomar um caso em especial, como exemplo. Digamos que você é um homem que nasceu hétero. Seu desejo sexual já discriminou, descartando de saída, metade da humanidade. Mas vai piorar. Qual a faixa etária que o desejo busca? A fértil (entre a puberdade e abaixo dos 50). Aparência? “Gostosa” (significa nem muito gorda, nem muito magra, com quadril mais largo que os ombros, seios e bunda notáveis). Outro grande percentual da humanidade já foi descartado.

Só depois desses filtros genéticos, aí sim, entram os filtros culturais, uns mais conscientes: fácil?, difícil?, santa?, puta?, de família?, “pra casar?, ou pra que é?”, outros inconscientes, porque forjados pela criação e o complexo de Édipo que vem com ela.

Essa lista é grande, funciona como uma minuciosa entrevista de emprego, toda preconceituosa de modo a se encaixar num conceito: o seu desejo e suas variáveis, nenhuma delas modelável pelo politicamente correto…





“DESDE O NASCIMENTO DO BEBÊ, PERDI O TESÃO PELA MINHA MULHER. E AGORA?”

 



“Li que isso é comum, que os homens passam a ver suas mulheres como mães, que se sentem preteridos por elas, que desde a gravidez perderam o desejo, e agora só têm olhos para o bebê”.

Francisco Daudt: O que você leu é verdadeiro, porém não dá conta da sua complexidade, apesar de serem fatores atrapalhadores do desejo de qualquer homem.

Vamos aos outros vetores que consigo ver especificamente em você:

1. Atormentado que sempre foi pela luta interna/externa de lidar com suas raivas reprimidas (e as doenças viciosas delas decorrentes), você (seu Eu, seu Ego, olhando você separado do seu Superego e do seu Inconsciente) conheceu muito pouco o amor.

Eu digo amor, assim: esse sentimento gostoso de se sentir gostado e de querer bem de volta, essa vontade de estar com a pessoa, de se sentir compreendido, acolhido, de querer saber dela, de querer fazer alguma coisa para deixá-la alegre, dar-lhe prazer afetivo, carinhoso, ter a pessoa em mente, conversar com ela à distância, ficar feliz em sua presença, rir sozinho se lembrando dela, sentir sua falta, querer estar com ela o maior tempo possível.

Esse é um sentimento que só um Eu desalugado (percentualmente desalugado) pode experimentar. Porque o Eu desalugado pode examinar os encaixes de desejo, avaliar a justiça e equanimidade da troca. O sentimento de ternura que você tem pelo seu bebê é em parte amor, mas amor por filhos será sempre muito unilateral, por maior que seja: é muito mais “produzir amor” que sentir amor. E principalmente, que esperar ser amado de volta.

2. Se você teve pouca chance de experimentar amor, que dirá expressar o amor de maneira erótica. O erotismo, na sua vida, esteve envolvido na guerra da raiva: foi remédio e é fetiche. Para ser remédio, ele precisou ser fetiche. Ele nunca esteve a serviço do amor, nunca foi uma expressão daquilo que descrevi no parágrafo lá atrás, ele quase que exclusivamente funcionou como termômetro da hipocondria (“ufa, sou macho, não tenho febre!”), ou seja, um alívio, mais que um prazer.

Fetiche é um nome meio assustador, mas não é nada complicado. Ele é apenas o meio que a gente encontra para transformar a outra pessoa num irrelevante instrumento da nossa masturbação sofisticada (aquela que envolve alguém mais). Esse artifício imperativo manteve seu erotismo simplório, impessoal. O erotismo que é expressão do amor é algo complexo, construído, virtuoso, pessoal. É a vontade de trocar prazer sensório com a pessoa amada. É uma extensão do carinho.

Eu vejo você em franco progresso do aprendizado do amor, na medida em que seu Eu vai se desalugando da guerra. A enorme vantagem é que você tem parceria adequada para isso, e um desejo muito grande de aprender, já que adora a ideia e o sentimento de ser pai. Cobrar de si, agora, o upgrade de envolver o erotismo como expressão de amor me parece algo muito injusto, seria como fazer vestibular ao fim do segundo ano do ensino básico…

Paciência com você, é o que sugiro. Estamos num trabalho de desmonte (da doença, dos vícios) ao mesmo tempo em que investimos na construção de uma vida bela, virtuosa. Isso toma tempo…

(Disclaimer: cliente me escreveu durante minhas férias. Minha resposta foi editada para se tornar o mais genérica possível, preservando a confidencialidade e servindo a outros leitores também.)