terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

PSICANÁLISE: A QUEM SE DESTINA? (O AMIGO PERGUNTA)

 



M. Cristina Ribeiro: “Dúvida: a psicanálise é só para quem sofre?”

Francisco Daudt: É, eu suponho que seja esse o principal motivo para alguém procurar a psicanálise clínica e pagar caro por suas sessões. Dizem que há também o autoconhecimento como motivação, mas, sem sofrimento? Não sei… sinceramente, eu não me interesso muito pelas razões que me fazem gostar de sorvete de pitanga.

Mas a psicanálise não acontece só nos consultórios. O interesse nela como corpo teórico, como instrumento de saber como a mente funciona, também é um grande motivador para seu aprendizado.

Mesmo porque a psicanálise tem duas faces: a pessoal e a social. A face social da psicanálise serve a inúmeros propósitos, desde o científico até metas úteis, como a educação dos filhos, a avaliação da própria saúde psíquica, a maneira de distingui-la de suas doenças, o aprendizado da complexidade humana, os vícios comportamentais presentes na sociedade e na política, o entendimento dos próprios desejos…

Por fim, pessoas curiosas que se debruçam sobre a teoria psicanalítica, sem terem que “se submeter” a uma análise (odeio essa expressão!), são muito bem-vindas, pois podem contribuir criticamente para a epistemologia psicanalítica: vale dizer, para a busca de uma teoria da mente humana que seja mais próxima do verdadeiro.

Adoro críticas e questionamentos sobre a psicanálise. Meu farol-guia sempre foi a proposta de Karl Popper (o terceiro na foto, ao lado de Darwin): faça sua teoria clara e vulnerável à refutação, e ela estará mais próxima do método científico.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

OBSESSIVOS E A FASE ANAL

 



Ser obsessivo é ser correto, limpo, arrumado, simétrico, fazer bem feito, entregar o prometido, ser pontual, não ter dívidas, tender ao pensamento binário (“ou isto, ou aquilo”, sem meio-termo, aquela maldição da Cecília Meirelles), ter exigências nas alturas sobre si mesmo, ter exigências de pureza idem, detectar máculas mínimas que desqualificam o todo… e, estatisticamente, ter uma inteligência acima da média.

A obsessividade é herdada, nasce-se com ela. Crianças de dois anos super arrumadinhas com seus brinquedos e objetos são um exemplo de que esse traço de personalidade não é aprendido, não é cultural.

Nascer obsessivo pode ser uma benção ou uma maldição, depende se a obsessividade é uma ferramenta sua, ou se você é um escravo dela. Lembrando: no funcionamento de nossa mente, tudo é percentual, ou seja, pode haver certa escravidão no obsessivo-ferramenta, e vice-versa, certa ferramenta no obsessivo-escravo.

Em tempo, o obsessivo-escravo pode sê-lo de forma contracultural: fazer tudo obsessivamente ao contrário do que mandam seus pais. É o prisioneiro da vingança.

Mas, e a fase anal com isso? Ah, é a dupla controle-pureza! A questão do controle está acima de tudo o mais, para os obsessivos. Quando ele aprende o controle dos esfíncteres, e que há lugar certo para liberar suas “impurezas”, aquilo lhe dá um poder especial de negociação com o mundo: se o azar lhe deu pais muito cobradores, sua tendência será ir para o “eu não preciso que ninguém me cobre, eu faço tudo melhor do que me pedem”. É o obsessivo hipercultural, o tipo mais comum.

É assim que se forma o Superego de um obsessivo. Em termos afetivos, é uma droga: ele não aceita ambivalência. Por isso, reprime a raiva que poderia ter de seus amparadores (geralmente, os pais). Se é uma questão de “ou isso, ou aquilo”, diante do dilema “você afinal ama?, ou odeia seus pais?” Ah, pode ter certeza de que o “ter raiva deles” vai sumir da consciência…

…produzindo esquisitices, como as neuroses obsessivas, as fobias, os ataques de pânico. E produzindo vícios, como o sadomasoquismo fodão-merda, e outras formas de s&m.

Sabe o “cutting”? Esses adolescentes que se cortam? Eles são obsessivos com raiva voltada para si mesmos, já que ela não pode ir para o endereço certo… 





A MÃE NATUREZA É PRECONCEITUOSA (ou, “você acha que manda no seu desejo?”)

 



Trazemos múltiplos preconceitos inatos em nosso cérebro, são softwares que vêm com a máquina, a começar com a maneira como vemos os estranhos de qualquer sexo: avaliação instantânea se representam ameaça e/ou se há possibilidade de interação sexual com eles.

Com um programa de computador, if-then, “se ameaça, luta ou fuga?”, “se não ameaça, seria uma oportunidade sexual?”

É o desejo de prazer em operação. Novos preconceitos entrarão aí, para ambos os sexos, numa velocidade tão grande que não nos tornamos conscientes deles.

Vamos tomar um caso em especial, como exemplo. Digamos que você é um homem que nasceu hétero. Seu desejo sexual já discriminou, descartando de saída, metade da humanidade. Mas vai piorar. Qual a faixa etária que o desejo busca? A fértil (entre a puberdade e abaixo dos 50). Aparência? “Gostosa” (significa nem muito gorda, nem muito magra, com quadril mais largo que os ombros, seios e bunda notáveis). Outro grande percentual da humanidade já foi descartado.

Só depois desses filtros genéticos, aí sim, entram os filtros culturais, uns mais conscientes: fácil?, difícil?, santa?, puta?, de família?, “pra casar?, ou pra que é?”, outros inconscientes, porque forjados pela criação e o complexo de Édipo que vem com ela.

Essa lista é grande, funciona como uma minuciosa entrevista de emprego, toda preconceituosa de modo a se encaixar num conceito: o seu desejo e suas variáveis, nenhuma delas modelável pelo politicamente correto…





“DESDE O NASCIMENTO DO BEBÊ, PERDI O TESÃO PELA MINHA MULHER. E AGORA?”

 



“Li que isso é comum, que os homens passam a ver suas mulheres como mães, que se sentem preteridos por elas, que desde a gravidez perderam o desejo, e agora só têm olhos para o bebê”.

Francisco Daudt: O que você leu é verdadeiro, porém não dá conta da sua complexidade, apesar de serem fatores atrapalhadores do desejo de qualquer homem.

Vamos aos outros vetores que consigo ver especificamente em você:

1. Atormentado que sempre foi pela luta interna/externa de lidar com suas raivas reprimidas (e as doenças viciosas delas decorrentes), você (seu Eu, seu Ego, olhando você separado do seu Superego e do seu Inconsciente) conheceu muito pouco o amor.

Eu digo amor, assim: esse sentimento gostoso de se sentir gostado e de querer bem de volta, essa vontade de estar com a pessoa, de se sentir compreendido, acolhido, de querer saber dela, de querer fazer alguma coisa para deixá-la alegre, dar-lhe prazer afetivo, carinhoso, ter a pessoa em mente, conversar com ela à distância, ficar feliz em sua presença, rir sozinho se lembrando dela, sentir sua falta, querer estar com ela o maior tempo possível.

Esse é um sentimento que só um Eu desalugado (percentualmente desalugado) pode experimentar. Porque o Eu desalugado pode examinar os encaixes de desejo, avaliar a justiça e equanimidade da troca. O sentimento de ternura que você tem pelo seu bebê é em parte amor, mas amor por filhos será sempre muito unilateral, por maior que seja: é muito mais “produzir amor” que sentir amor. E principalmente, que esperar ser amado de volta.

2. Se você teve pouca chance de experimentar amor, que dirá expressar o amor de maneira erótica. O erotismo, na sua vida, esteve envolvido na guerra da raiva: foi remédio e é fetiche. Para ser remédio, ele precisou ser fetiche. Ele nunca esteve a serviço do amor, nunca foi uma expressão daquilo que descrevi no parágrafo lá atrás, ele quase que exclusivamente funcionou como termômetro da hipocondria (“ufa, sou macho, não tenho febre!”), ou seja, um alívio, mais que um prazer.

Fetiche é um nome meio assustador, mas não é nada complicado. Ele é apenas o meio que a gente encontra para transformar a outra pessoa num irrelevante instrumento da nossa masturbação sofisticada (aquela que envolve alguém mais). Esse artifício imperativo manteve seu erotismo simplório, impessoal. O erotismo que é expressão do amor é algo complexo, construído, virtuoso, pessoal. É a vontade de trocar prazer sensório com a pessoa amada. É uma extensão do carinho.

Eu vejo você em franco progresso do aprendizado do amor, na medida em que seu Eu vai se desalugando da guerra. A enorme vantagem é que você tem parceria adequada para isso, e um desejo muito grande de aprender, já que adora a ideia e o sentimento de ser pai. Cobrar de si, agora, o upgrade de envolver o erotismo como expressão de amor me parece algo muito injusto, seria como fazer vestibular ao fim do segundo ano do ensino básico…

Paciência com você, é o que sugiro. Estamos num trabalho de desmonte (da doença, dos vícios) ao mesmo tempo em que investimos na construção de uma vida bela, virtuosa. Isso toma tempo…

(Disclaimer: cliente me escreveu durante minhas férias. Minha resposta foi editada para se tornar o mais genérica possível, preservando a confidencialidade e servindo a outros leitores também.)






UMA HISTÓRIA DE NARCISISMO

 




Ouvido do cliente: “Depois do nascimento da nossa filha, ela nunca mais mostrou nenhum desejo por mim; rechaçava qualquer aproximação, virava pro lado e dormia.”

“Meses mais tarde, ela me disse: ‘Ah, acho que eu entendi porque não quis mais sexo com você. É porque, quando você me engravidou da Joana, eu vi que tinha perdido todas as chances de voltar para o Rodolfo, minha grande paixão; ele nunca ia querer uma mulher já com filha, e a raiva que eu fiquei de você me tirou qualquer tesão’.”

“Olha, doutor, essa foi a pior coisa que eu ouvi na minha vida. A nossa história começou justamente por causa do Rodolfo. Ela estava com ele, engravidou dele, ele jurou que se ela abortasse, ele se casaria com ela; ela abortou e ele lhe deu um pé na bunda”.

“A gente já era amigo há muito tempo, e eu fui lá dar colo, consolar ela, e nessa de carinho, a gente acabou ficando junto e se casando. O Sr. sabe, como homem, eu sou um ‘papai’: eu cuido, amparo, estimulo o crescimento, me interesso pela pessoa… Será que a sina de todo ‘papai’ é ser desvalorizado pelas mulheres? Principalmente se comparado aos cafajestes, como o Rodolfo? Ou será que eu é que escolhi errado? Eu jurava que, se lhe desse uma filha, estaria curando a ferida do aborto… Porra, que engano!”

“É claro que eu não vou me separar dela, pois seria perder o convívio com meus filhos, a coisa que mais quis e mais amo na vida, acho que é esse negócio de ser ‘papai’. Sim, eu a trato bem, continuo apoiando a careira dela, cuidando do que ela precisa.

“Outro dia me disseram que a gente devia ser um casal muito feliz, pois nunca ninguém nos viu brigando. Por certo que eu não brigo com ela: só briga quem tem esperança de que o outro mude, e isso eu já perdi faz tempo.”

“Imagino que ela vá encontrar outro cafajeste e se apaixonar por ele, já que ela tem uma longa história disso. Se acontecer, eu vou acolher e esperar que ela só saia do casamento se a outra relação estiver bem encaminhada, assim eu ganho mais tempo de convívio com as crianças. O Sr. sabe, o menino veio depois de três anos, por muita insistência minha, mas foi quase uma ‘inseminação artificial’, de tão fria”.

“Acho que essa ilusão de ser feliz no casamento deve ser olhada de maneira diferente: não poderia ser mais feliz do que sou, com os filhos que tive. Afinal, não se pode ter tudo…”


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Tentei explicar para ele como funciona o narcisismo: não é por maldade, é por incapacidade inata de perceber o outro: ela não tinha a menor ideia do quanto o estava magoando com a história do Rodolfo. Eles têm um medo patológico de ver alguma falha em si mesmo.

Os narcisistas são os mais vulneráveis ao vício fodão-merda, pois TODOS sofrem de baixa autoestima, TODOS temem e negam suas limitações e vulnerabilidades, TODOS têm grandes dificuldades de cultivar a humildade como virtude.

Alguns narcisistas chegam ao consultório; desses, alguns entendem que nasceram com essa praga, alguns treinam consideração e empatia como um exercício, como redução de danos, alguns conseguem ganhar terreno, já que, na mente, tudo é uma questão percentual: não há narcisistas 100%, assim como não há ninguém isento de algum narcisismo. 





quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O QUE UMA KOMBI TEM A VER COM A PSICANÁLISE

 



O Daniel Accioly é o craque do marketing digital que gerencia e produz toda a minha comunicação pelas redes: Site, Twitter, Facebook profissional, YouTube, Instagram etc. são desenhados, musicados, legendados e postados por ele. Eu só faço o conteúdo. É uma parceria que me deixa muito feliz.

Pois sabedor do meu gosto por carrinhos 1:18 (já que não sou o Jay Leno e não tenho os originais), ele me deu de presente de natal essa kombi da foto. Ela tem um valor simbólico para além da boniteza: o da metáfora da kombi, tantas vezes usada por mim.

Digo que uma pessoa com doença psíquica é como uma kombi: até anda, mas 80% do seu motor são usados para vencer a resistência do ar, já que a kombi é uma parede ambulante.

Cabe ao psicanalista desbastar suas arestas, melhorar seu Cx (coeficiente de penetração aerodinâmica), tendo como meta transformá-la num Jaguar E-type, uma flecha cujo motor só precisa fazê-lo andar… ou voar!

Tirar, portanto, o fardo das doenças, essa parede que carregamos a contragosto, de modo a sua libido (o motor do nosso “carro”) ser usada de acordo com nosso desejo, e não nos desgastes que o complexo de Édipo nos impõe.

Obrigado, Daniel!

(Em tempo: o Jaguar E-type foi considerado por Enzo Ferrari como o mais belo carro jamais feito).





O DIA EM QUE EU RETRIBUÍ AO PELÉ (AINDA QUE SÓ UM POUQUINHO)

 



O Pedro Bial me comentou que ele estranhava todos o chamarem de 
”Bial”, quando ele se sentia sendo “Pedro”.

“Mas é porque “Bial” é sua profissão, é uma persona profissional, e “Pedro” é você. Há vantagens nessa separação. Não vê o Pelé, que só fala nele em terceira pessoa? Quando ele fala “o Pelé isso, o Pelé aquilo”, ele está intuitivamente se protegendo, protegendo o Edson, estabelecendo para si mesmo e para os outros essa distância”.

O Pedro gostou muito da teorização, e quando mais tarde entrevistou o Pelé, contou para ele a minha teoria. O rei ficou encantado, disse que era isso mesmo que ele sentia, mas nunca tinha sabido explicar.

E eu, mais encantado ainda, de ter podido retribuir a ele, ainda que só um pouquinho, por tanta beleza que ele me fez ver!