segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

“ELE ESTÁ ACIMA DE NÓS” - A PSICANÁLISE DO SUPEREGO

 



“Qual a diferença dessa sua psicanálise do Superego e as outras?”

Francisco Daudt: Para começo de conversa, minha psicanálise do Superego é totalmente derivada da de Freud. A diferença é que o foco de investigação freudiana era o Id, o inconsciente reprimido, os desejos e as raivas tão transgressores que não eram suportáveis na consciência.

Quando eles vinha à tona, no consultório, era sempre com muito horror e vergonha. O cliente ficava arrasado de ver o monstro que morava dentro dele: “quer dizer que, no fundo, eu queria matar meu pai? Queria ter minha mãe só para mim? Horror!”

Claro que eu estou aludindo ao Édipo e a reação que ele teve quando “sua verdade” veio à tona. Ele ficou tão horrorizado que furou os próprios olhos.

Mas a tal “verdade” de Édipo era, afinal, uma grande injustiça contra ele. Foi o próprio Édipo a vítima da tragédia, da trama armada por aqueles que estavam “Acima dele”. Quem conhece a história sabe que seu pai tentou matá-lo duas vezes, quando ele nasceu e na estrada de Tebas. Só que na segunda vez se deu mal, e Édipo matou-o, sem saber que era ele, e em legítima defesa!

Todas as psicanálises puseram o cliente no banco dos réus, examinaram suas “culpas”, endossando-as, fizeram o cliente se arrepender de seus desejos e raivas, viram o Superego como se ele fosse o padrão moral a seguir, o meio de cura.

Mas eu sempre achei isso uma tremenda injustiça. O próprio Freud nunca questionou a “culpa” de Édipo, e eu fui seu advogado de defesa desde o meu primeiro livro, escrito há 32 anos, mostrando como tramaram contra ele, desde antes de seu nascimento.

Quem tramou? Os que estavam “Acima dele”: os adultos que o criaram. Por isso resolvi investigar quem reprime, quem pune, quem julga. Neste momento em que escrevo, uma moça foi condenada à morte pelo “crime” de usar seu véu de maneira inapropriada. Foi justo?

Eis porque resolvi investigar o juiz e suas leis: são eles justos? São tirânicos? São cruéis? Se as iranianas tiverem sintomas neuróticos e pesadelos com o desejo de uso inapropriado do véu, a psicanálise deve fazê-las se arrepender desse desejo proibido? Ou deve questionar a justiça do juiz e de suas leis?

Foi o que resolvi fazer: investigar o “Acima de nós”, o Superego.


ATO FALHO (“FEHLLEISTUNG”) E AMBIVALÊNCIA

 



Fehl + leistung = falho, errado + realização, ato = ato falho

Ele estava na fila de pêsames do velório da sogra odiada do amigo. Quando chegou sua vez, abraçou-o e disse: “Meus parabén… opa, quer dizer, meus sentimentos!”

Não foi de sacanagem, apenas saiu assim. Depois do acontecido, ele - muito envergonhado - se deu conta de que, desde de que soube da morte, vinha tentando não pensar naquele ódio que o amigo tinha.

Ao mesmo tempo, se condoía de verdade pela perda que a filha havia sofrido, não houve hesitação nem erro quando ele a abraçou.

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Assim se formam os atos falhos (lapsos de fala, esquecimentos, perda de objetos, erros sintomáticos do dia-a-dia): por causa da ambivalência.

“Ambivalência” é quando se tem sentimentos opostos em relação a alguém ou a alguma coisa, e ambos valem (ambi + valem). No caso dos atos falhos, um dos sentimentos é bem aceito, mas o outro não (tristeza pela filha x a noção sobre o ódio do amigo).

A repressão do “mau sentimento” se manifesta na esquisitice do ato falho, essa foi a descoberta de Freud (em “A psicopatologia da vida cotidiana”). Todos os sintomas neuróticos têm isso em comum: a esquisitice, vide p.ex. a fobia de baratas.

PS: Sobre o “falar língua de gente”, Ernest Jones, o primeiro tradutor de Freud para a língua inglesa, nos fez o desfavor de inventar o termo grego “parapraxia” para nomear o “ato falho”… (soava mais médico, sabe?). 





SUGESTÃO PARA OS ALUNOS: Roteiro de Autoanálise

 



1. Escolher uma hora regular diária. Sugiro assim que acordar, para poder anotar os sonhos, e uma durante o dia/noite, para o geral.

2. Fazer uma pauta de assuntos que quiser tratar (incômodos/sintomas atuais, ou temas que perturbaram a vida inteira).

3. Quando for fazer a análise, usar a pauta (sonhos, assuntos) e começar a fazer associações livres em cima deles, tudo por escrito (com senha), para poder ser relido.

4. Na ausência de pauta, usar associação livre: olhar para os pensamentos como se fosse para uma tela de tv, e descrever o que aparece, sem censura. Se aparecer alguma censura (ah, isso é bobagem, ah, isso me dá vergonha, ah, não quero falar desse assunto), escrever a censura... e a coisa censurada.

O que for escrito funciona como pecinhas de um quebra-cabeças, não se preocupe em juntá-las logo, NUNCA FAÇA INTERPRETAÇÃO. Você vai ver que uma associação puxa outra, anote todas.

Aí já tem um bom começo de conversa.






CONVERSA ou TRETA? REALISTAS ou IDEALISTAS? NEO-ILUMINISTAS ou PÓS-MODERNOS?

 

Creio que as conversas devem começar, não no assunto, mas numa declaração de princípios, na posição das pessoas que o discutem: ela é uma “realista”? Ela crê que a árvore que cai no meio do deserto, sem testemunhas, faz ruído ao cair?

O realista está convencido da existência de uma realidade para além dele mesmo e de suas crenças. Já para os chamados “idealistas” (a realidade mora em suas ideias, convicções e narrativas), o ruído só existirá por causa das testemunhas que o ouvem, ele é dependente da realidade psíquica do espectador.

Minha proposta é: para conversar com alguém, é preciso partilhar axiomas, verdades autoevidentes, caso contrário você não terá uma conversa, terá uma treta cuja finalidade é derrotar o outro, nunca será se aproximar do conhecimento verdadeiro (episteme).

Uma conversa assim não atende ao meu desejo, pois o inevitável atrito trará mais calor do que luz. Não tenho desejo de treta, tenho desejo de luz (daí me definir como neo-iluminista).

Mas meu tio dizia que eu era muito exigente, nesse alinhamento. Para ele, bastava que a pessoa concordasse com apenas uma posição:

“Você mataria sua mãe a facadas? Não? Oba, então já partimos de um ponto em comum”…





quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A TENTAÇÃO FODÃO-MERDA ESTÁ NO AR

 



Cada um que se vê vitorioso com o resultado das eleições está sendo seduzido para se sentir fodão, e para esculachar os perdedores como merdas.

Essa divisão binária dos brasileiros vem sendo construída há muito tempo: o “nós contra eles”.

Mas o “nós contra eles” não prosperaria se o terreno não fosse fértil: a crença em que a humanidade se divida binariamente em fodões e merdas começa dentro de nós: é a relação que temos com nosso próprio Superego; ele lá em cima fodão, nós cá em baixo merdas.

O momento é uma oportunidade de desinvestirmos desse vício, de retomarmos uma identidade democrática de conversa e tolerância, de ouvir o que o outro tem a dizer, de abdicar do esculacho e da vingança: com a política, com a família, com os amigos… e dentro de nós mesmos.

“Compaixão” é saber que sofremos juntos: todos nós sofremos nas mãos do Superego; todos nós somos seduzidos por ele a fazer os outros sofrerem.





sábado, 15 de outubro de 2022

ASSISTINDO A “DAHMER”

 



A necrofilia, assim como todas as parafilias (práticas sexuais esquisitas), é uma derivação do fetichismo: um meio de anular a existência do outro e transformar qualquer sexo em masturbação.

É um artifício (do francês “fétiche”, do português “feitiço”) de não ter que negociar com as diferenças, e ainda mais: ter o gozo de se vingar do Superego, pela transgressão de suas normas.





A PSICANÁLISE PRECISA TER COMPROMISSO COM A CURA

 



Nas palavras de Millôr Fernandes:

“E mais, uma das minhas coisas contra a psicanálise é que a psicanálise não cura exatamente ninguém. Quando você ataca um psicanalista ele já diz: ‘Mas nós não temos pretensão terapêutica’. Então foda-se, pô. Se cobram entrada!”

Ouço dizer que psicanalistas atualmente substituíram a culpa pela responsabilidade. Em muitos casos, é trocar seis por meia-dúzia: não há como controlar sintomas através de responsabilidade, é preciso desmontá-los em suas origens.

Mas em outros, não: a que responde a psicanálise? O que se pode esperar/cobrar de um psicanalista? Ou ele é o único que tem direito a “cobrar”?