domingo, 14 de agosto de 2022

O BALDE E A TRANSFERÊNCIA

 



O conceito de transferência, em psicanálise, parece misterioso mas é simples: trata-se de transferir a um estímulo sensorial (algo que foi visto, ouvido ou sentido) um arquivo de nossa memória, que passa a dar um significado ao estímulo.

Quando você lê BALDE, aqui, transfere para essas manchinhas pretas na tela um arquivo de sua memória, e elas ganham um significado… de balde. O processo é tão automático, que você nem percebe que ele se deu. Se você lesse EIMER, não haveria arquivos de memória para transferir, a coisa não significaria nada (Eimer é balde em alemão).

Pois eu e minha irmã, quando crianças, fizemos uma brincadeira curiosa: ficamos falando “balde”, um para o outro, como se fosse uma conversa de palavra única, por uns cinco minutos… ao fim dos quais, já não sabíamos mais o que era balde. Virou um ruído. Tínhamos desconectado o automatismo da transferência! Claro, se alguém nos perguntasse o que era balde, iríamos responder. Mas sem o automático, íamos ter que pensar…

A transferência neurótica (reação exagerada frente a um estímulo banal) é mais complexa. Mas tem as mesmas bases. Meu melhor exemplo para ela é o “gato escaldado tem medo de água fria“. Um gato que sofreu queimaduras, porque um dia alguém jogou água fervendo nele, vai pular alto se sentir água fria batendo-lhe no lombo. E isso vai durar anos: a transferência automática é “qualquer água no lombo vai me queimar”. Os arquivos de dor estão cruelmente gravados em sua memória.

Disclaimer: nenhum animal foi molestado ou ferido no fazimento desta postagem.

Disclaimer 2: Mesmo falando de psicanálise, nenhuma palavra desconectada de arquivos de sua memória foi usada neste texto. Não houve “parapraxia”, nem “busca do inefável”, nem “supereu” que te deixassem perplexos. Isto foi sim intencional.






ÉDIPO NO CONSULTÓRIO - O AMIGO PERGUNTA



“Meu nome é Édipo, sou rei de Tebas e quero me matar. Ou pelo menos furar meus olhos! Só vim aqui porque o Terésias insistiu muito…”

“Bem, já que o Sr. veio até aqui, poderia me dar três meses antes de fazer essas coisas, para ver se eu posso ajudá-lo? Por que o Sr. quer se matar, ou furar os olhos?”

“Tá bom, doutor, mas só três meses. Eu sou culpado pela praga que assola Tebas, pois descobri que matei meu pai e me casei com minha mãe. Sou um monstro!”

“Olha, monstros não costumam aparecer no consultório, pois eles não sofrem com seus malfeitos. O Sr. tinha plena consciência de que eles eram seus pais, por ocasião da morte e do casamento?”

“Não, não! Só descobri depois, quando me disseram que eu era filho adotado pelos reis de Corinto, e sobre quem eram meus verdadeiros pais. Mas aí já era tarde… e olha que eu fugi de Corinto justamente para escapar da sina que a pitonisa de Delfos me lançou: matar meu pai e casar com minha mãe…”

“Majestade, o psicanalista é um advogado de defesa. O Sr. já chega aqui com uma sentença feita, e isso é injusto, só a acusação teve voz. Está errado! Antes de mais nada eu quero ver os autos do processo.

E começamos bem: se o Sr. não sabia quem eram eles, temos um excelente começo: não houve intenção, nem parricida, nem incestuosa. Sem intenção, sem conhecimento, sua culpa diminui enormemente. Vamos ver agora em que circunstâncias esses fatos se deram”.

(Segue em “Édipo no consultório 2”)





 

ORGASMO SÁDICO - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que pode haver de erótico na boca de uma mulher anestesiada?”

Francisco Daudt: Nada. Afora o estímulo sensorial, o orgasmo desse caso não vem do erotismo, e sim do extremo da transgressão. Há a adrenalina do risco pelo desafio ao Superego, não só o interno, mas à sua representação externa: a sociedade, a equipe médica e enfermagem, a violação do juramento de Hipócrates, o sagrado da maternidade etc.

O Marquês de Sade costumava se masturbar diante de um crucifixo, desafiando a imagem com blasfêmias (“Se você existe, me mate agora, seu porco!”) e finalmente chegando ao orgasmo com uma gargalhada: “Está vendo? Eu venci! Você não existe!” Não há melhor exemplo de que o prazer, ali, vinha do desafio e da vingança, não do erotismo.

Como nada do que é humano nos é estranho, Nelson Rodrigues uma vez reclamou: “Quem são esses loucos que querem abolir o pecado, na prática sexual? Eles vão matar grande parte de sua graça!” De fato, quanto mais proibido e transgressor é o sexo, mais ele se afasta do sexo pessoal, mais ele se aproxima do fetiche e da masturbação. E a masturbação é a principal vida sexual dos homens.

“Peccato che non sia peccato” (“é uma pena que não seja pecado”), diz-se em italiano, lamentando que uma comida deliciosa não tenha esse “tempero extra” da transgressão, esse bônus de prazer…






PSICANÁLISE: COMO SE TRATA A DOENÇA? - O AMIGO PERGUNTA



De Claudio Kuyven: “Você disse que o diagnóstico é a base do tratamento psicanalítico. Como assim? Se o ortopedista faz um diagnóstico, ele indica um procedimento. O procedimento é o que trata. Mas e em psicanálise?”

Francisco Daudt: Sim, em psicanálise, o diagnóstico é o tratamento. O que acontece é que a psicanálise faz diagnóstico o tempo todo. Ela é, na verdade, uma constante investigação em busca de conhecimento que atravesse a complexidade da mente. Diagnóstico vem do grego: dia = através + gnosis = conhecimento.

E é conhecimento, é diagnóstico, da doença e da saúde. Saber-se da saude do cliente é crucial; quando a doença é vício, p.ex: um casal tem uma ligação sadomasoquista, mas… também tem um vínculo amoroso.

Quando você faz o diagnóstico de que o vício rouba o potencial amoroso deles, e que o vício é resultado de algo não escolhido, mas absorvido do ambiente familiar de origem, neste momento você aciona a mais poderosa arma de cura da psicanálise: nosso senso inato de JUSTIÇA.

Ao se perceber joguete de sua história (o complexo de Édipo é isso), o cliente se mobiliza para ser dono de sua vida, para trilhar o caminho que mais lhe convém, para se libertar de um passado que lhe atrapalha os desejos mais autênticos. A psicanálise serve a isso: busca de justiça.

O diagnóstico da doença aciona a vontade de se livrar de uma prisão injusta; o diagnóstico da saúde é, essencialmente, o conhecimento de seu desejo mais autêntico, que ele buscará realizar. Ou você acha que se matar cheirando cocaína é expressão do desejo autêntico de alguém?

É por isso que a cura, em psicanálise, vem do constante diagnóstico. Cabe ao psicanalista transferir tecnologia para o cliente, de modo a que ele continue a se conhecer (a se diagnosticar) pela vida afora.

É a isso que Freud chamou de “análise interminável”.






 

“O REPRIMIDO RETORNA?” - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que é esse tal de retorno do reprimido?”

Francisco Daudt: O retorno do reprimido é menos complicado do que parece. Suponha um pensamento incômodo sobre alguém. Você varre da consciência, “não quero pensar nisso”, mas ele não desaparece da sua cabeça. Volta e meia ele dá notícias. E você varre de novo.

Isso, numa coisa boba. Vamos aumentar a gravidade um pouquinho: você tem aquele encontro agendado, mas há uma ambivalência em relação à pessoa em questão. Você quer, e também não quer. Mas já agendou, já está comprometido. Aí a ambivalência retorna de uma forma mais esquisita: você perde o compromisso, pois se esqueceu totalmente dele. O retorno se deu de forma disfarçada, substituída: é o ato falho.

Vamos aumentar a gravidade mais ainda: você depende do seu pai, ele é a fonte de amparo na sua vida, mas… ele é injusto e cruel com você, muitas vezes, e isso desperta em você uma raiva (que você não chama de raiva, chama de mágoa, desconforto, ressentimento; chamar de raiva seria muito forte). A ameaça de desamparo é tão grande, que esses desconfortos somem de sua mente: aí sim, se deu uma repressão. O retorno desse reprimido vai se dar de forma ainda mais esquisita: o sintoma neurótico. Você tem pensamentos invasivos de outra natureza, tem sonhos estranhos e repetitivos, você desenvolve uma fobia a baratas ou aranhas, você tem crises de pânico, você tem ritos obsessivos aprisionantes.

A cara do sintoma não se parece nem um pouco com a raiva reprimida, mas ele retorna e retorna, podendo tomar outras formas mais complexas: a paixão neurótica por alguém com características do seu pai, como se você quisesse corrigir a história, só que a pessoa se parece tanto (naquele aspecto injusto) com ele que em vez de haver correção, o que existirá é repetição.

Você acaba encontrando sucessores do seu pai pela vida afora: é o retorno do reprimido…






FALANDO DE SEXO: ZONAS ERÓGENAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Me pegaram, me mandaram ficar imóvel, e me mapearam o corpo para descobrir minhas zonas erógenas. Fiquei fora de mim! Nem sabia que determinadas áreas do meu corpo eram capazes de me dar tanto prazer. Isso é normal?”

Francisco Daudt: Não. Isso é totalmente anormal, no sentido estatístico. Não só você é uma raridade afortunada, mas quem te mapeou também. O normal é que a pessoa passe a vida só percebendo prazer na boca e nos genitais, e que jamais, sim, jamais se disponha a pesquisar com tanta meticulosidade, quer em si, quer em outros, as áreas do corpo capazes de gerar prazer intenso, de arrepiar, de dar tesão.

Zonas erógenas são isso. Desde que nascemos, elas concentram nossas atenções, já que somos máquinas programadas para buscar prazer - é assim que o gene egoista nos manipula para se duplicar. A primeira é a boca: sugar alimenta e dá prazer. A segunda é o esfíncter anal: o jogo de retenção/liberação das fezes dá prazer, e foi tomado por Freud como ícone de negociação com a cultura (você precisa saber onde defeca). A terceira é a genital: do prazer que ela produz virão nossos genes duplicados.

Mas quando o indivíduo sai da fisiologia para o esporte, ele pode explorar cada centímetro quadrado de seu corpo como zona erógena em potencial. Com a exceção da ponta dos cotovelos, já ouvi de tudo.

Os exemplos mais corriqueiros são os mamilos “felizes” (é triste, mas mamilos cegos não são raros), o períneo e a parte externa do ânus. Essa perianal é um problema, quase um tabu para os homens, que dirá o canal retal… Eles têm um potencial de prazer enorme, frequentemente inexplorado, pelos medos de viadagem.

Menos comuns são: axilas, nuca, pescoço, orelhas, canal auditivo, narinas, laterais do tronco, umbigo, virilhas, nádegas e seu rego, parte interna das coxas, parte de trás dos joelhos, pés e seus dedos. Basicamente, onde puder haver cócegas, poderá haver prazer, se o estímulo for o certo.

Outra questão é o tipo de estímulo. Os mais bem sucedidos são a lambida e a sugada. Mas as mordidas leves, a passagem das unhas em intensidade variável, a massagem, a pegada também têm seu lugar.

Ou seja, como disse o amigo politicamente incorreto, “esse negócio de foder é pra proletário (que vale pela prole que produz); tem tanta coisa boa pra se fazer na cama e o cara fica obcecado com os finalmente?”





SUICÍDIO

 



Pessoas que cometem suicídio não querem que a vida acabe; querem que a dor acabe.

Na clínica, nunca combato “aquela coisa”; busco combater a dor.