domingo, 14 de agosto de 2022

TRUQUE DE CONSULTÓRIO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Quais dos habituais truques de psicanalista você usa em sua clínica? Silêncio prolongado? Interpretações prontas? ‘Neutralidade’? Mistério? Distância formal? Desmascaramento das intenções ocultas, daquelas que fazem o cliente chorar? Joguinhos de poder?”

Francisco Daudt: Meu único “truque” é não ter truques, muito menos joguinhos. Entendi, com o tempo (e revisitando a época em que estive do outro lado do balcão/divã), que esses truques mencionados só servem para afirmar o psicanalista como superior e idealizado, ou seja, eles põem o analista na posição do Superego do cliente. Eles repetem, na relação analista-cliente, o jogo fodão-merda que todos temos com nosso próprio Superego.

Disso resulta que o vício sadomasoquista do fodão-merda não é investigado no cliente, pois o próprio analista nem o vê, por estar incorporado nele a partir de suas instituições formadoras. A doença s&m fodão-merda é o principal ponto cego da enorme maioria dos psicanalistas.

Por ter ciência disso, e por saber bem meu lugar de prestador de serviços para o cliente, posso ter a postura humilde e transparente de recebê-lo com afabilidade e bom humor, sem dramas, ouvi-lo com compaixão, nunca interpretar nada, simplesmente investigar e apresentar minhas hipóteses para sua avaliação: sempre facilmente rejeitáveis, se ele as confirmar, haverá muita chance de estarem corretas.
Basicamente, o “truque” é o método científico. E a ciência contém ignorância humilde, com muita vontade de saber. Saber sobre a saúde do cliente, e entender bem o que a atrapalha.






CHORO: ORIGEM E DINÂMICA

 



Na base do choro - qualquer choro - mora a impotência diante de um incômodo. A primeira manifestação disso é o choro do bebê. Ele não fala e não faz, sua dependência é quase total, sua impotência frente aos incômodos é similar. Ele chora, portanto. Melhor dizendo, ele urra.

O choro é chato para os outros, foi moldado assim pela seleção natural, para os pais tomarem uma providência que faça parar o choro e mantenha o filho vivo. Não será muito diferente, pela vida afora. Mas o bebê ganha potência, ele já pode chamar, dizer “Qué pêta!”, e seu problema é resolvido rapidinho. Quanto mais cresce, mais potência, logo, menos choro.

E o nosso choro de adultos, às vezes silencioso e solitário? Sua base continua a mesma, agora reduzida a duas situações: raiva impotente e pena de si mesmo.

“Ah, raiva impotente eu até aceito, minha filha mimadinha chora à toa, a cada vez que as coisas não saem do jeito que ela quer; mas eu, ter pena de mim? Quando entreguei minha filha no altar e chorei, eu estava com pena de mim mesma?”

Bem, você não estava sentindo-se com a missão cumprida, de tantas noites insones, tanto altruísmo e devoção à maternidade, tantas vezes que você se deixou em segundo plano para cuidar dela, tanto sacrifício feito e represado que agora chega ao fim? Essa catadupa de sentimentos não estaria condensada ali, naquela hora? O que é o choro do herói, o choro do mártir, o choro do abnegado?
“Ah, eu sou homem, não choro à toa, mas quando ouço o ‘Adagio for strings’, do Samuel Barber, eu me acabo de chorar. Onde está a pena de mim mesmo? Eu choro sim, mas de emoção frente à beleza”.

É curioso, mas os adágios são, em geral, “tears jerckers” (“puxadores de choro”). Vá ver “Morte em Veneza”, enquanto ouve o adágio da 5ª de Mahler, e identifique-se com a inescapável solidão do personagem principal. O que acontece? Você vai chorar… de pena de si mesmo. 






FALANDO DE SEXO: MEDO DE PERFORMANCE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Já estamos casados há anos, eu amo minha mulher, mas meu desejo por ela vem decaindo e agora eu tenho medo de chegar perto, provocar expectativas e não ser capaz de cumpri-las. Tem saída?”

Francisco Daudt: Claro que tem. Você me disse que, não só a ama, mas que gosta de massagem e de carinho (dar e receber). Você sofre de um medo que é o maior inibidor sexual dos homens - e atualmente, das mulheres também -, o de não ter um bom desempenho de penetração, por ereção insuficiente/ausente. A própria cobrança é o suficiente para fazer broxar. No caso delas, a inibição é de ter orgasmo, a praga de “ter que ser boa de cama” chegou a elas também.

Com essa ideia na cabeça, eles não chegam nem perto, um do outro…

Se vocês tiverem um acordo de carinho, de chamego, sem linha de montagem para o intercurso, aliás, com o trato de não penetração, vão poder dar expressão erótica do amor que têm um pelo outro. Você vai ver: se a partilha intelectual já é boa; quando se soma à partilha afetiva, fica melhor ainda; se a erótica (de novo, sem incluir penetração) for acrescentada, aí então é uma beleza!

Eu não quero criar expectativas, mas um cliente a quem sugeri isso, na sessão seguinte me disse, com um sorriso maroto (e feliz): “Ih, ontem nós quebramos o trato, hehehe…”






O voo e o ninho

 



O destino de um pássaro é voar, está em seus genes. Mas, para voar ele precisa do ninho. O ninho o protege, aquece e alimenta enquanto suas penas não crescem, suas habilidades de vôo não se desenvolvem. Se o ninho o expulsa precocemente, ele se estatela no chão e morre. Mas se o ninho o prende além da conta, ele não aprende a voar, ele fica restrito àquele casulo, ele não cumpre seu destino.

O bom destino de um pássaro, portanto, depende de um delicado equilíbrio entre o voo e o ninho: excesso de ninho aleija o pássaro; falta de ninho o mata.

Conosco não é diferente: precisamos de colo, de amparo, de proteção para seguir nosso destino – se concordarmos que nosso bom destino é a independência e a autonomia do indivíduo que se formou.

Mas o equilíbrio necessário para essa formação, a conversa entre ninho e voo, entre colo e independência, é infinitamente mais complexa e delicada que a dos pássaros. Eles afinal estão programados pelo instinto, que a eles se impõe como força maior.

Nós, não. Nossa espécie tem um programa de aprendizado tão extraordinário, e um tempo de aprendizado tão enorme, que o instinto com que nascemos vai se colorindo de experiências e de memórias tão singulares que o produto resultante se distingue do instinto, e ganha assim um nome novo: desejo.

Desejo: esse programa oceânico e descomunal que nos rege mantém com o instinto relações de raiz. Sim, continuamos a querer reprodução como os pássaros querem, mas de forma bem mais complicada, para dizer o mínimo.

De tal forma que, sim, nós botaremos filhos no mundo. Agora, daí a ter habilidade e competência para levar bem o equilíbrio entre ninho e voo, ah, isso é outra conversa.

A menina de oito anos levou um bilhete escrito por ela para sua mãe: “Não suporto mais esse cárcere maldito! Libertem-me dos grilhões que me aprisionam”. A mãe leu o bilhete e disse: “Ai, que lindo! Vou grudar na geladeira”.

Para quem acha que a psicanálise tem mania de culpar os pais, devo dizer que não é bem isso. O que ela faz é rastrear a história das incompetências da criação de cada um. Você acha que a mãe daquela menina é culpada de algo? Não, ela foi apenas incompetente, incapaz de perceber que a filha se expressava assustadoramente bem, com um diagnóstico preciso do que se passava. Incapaz de corrigir-se e de corrigi-lo. Culpa implica má intenção, e é muito raro ver pais mal-intencionados em relação aos filhos.

Criar filhos é a profissão mais difícil que existe. Como ela é universalmente adotada, seja com talento e vocação, seja sem – o que é mais freqüente –, o que acontece é que somos resultado de um show de incompetências. Uns pássaros, ora aleijados, ora estropiados, de voo capenga, passando as incompetências de geração em geração.

A essas incompetências de criação que carregamos como um fardo pela vida afora, Freud deu o nome de Complexo de Édipo. Édipo, o pobre grego quase assassinado pelos pais biológicos, que teve sua origem escondida pelos pais adotivos, e como fruto dessa trapalhada acabou se casando com a própria mãe. E se culpou por isso!

Pobre diabo foi ele. Pobres diabos somos nós.






UM IDEAL ILUMINISTA - juntar exatas com humanas

 



Quando entendi o que foi/é o Iluminismo, descobri um rótulo bom para mim. Agora, além de ser um fervoroso democrata, um liberal nos costumes e na economia (capitalista civilizado, ciente de que os investimentos no social e na ecologia trazem grande retorno), eu também era um iluminista.

Ser um iluminista é ter como valores prezados, como bússola de navegação da própria vida, a razão, a ciência, a lógica, e a vontade de saber mais, com a humildade da ignorância e a desconfiança de certezas.

Um dos meus heróis do Iluminismo - ao lado de Darwin, Freud et al. - é Edward O. Wilson (1929-2021). Acabei de ler seu livro, “O Sentido da Existência Humana” (2014), e uma das coisas que me encantaram nele foi seu ideal iluminista de unir ciências humanas com as exatas, pois elas se realimentam e se complementam para… entender mais sobre o sentido da existência humana.

Meu exemplo maior é o desmonte da crença na tábula rasa, na ideia de que nascemos como um papel em branco onde a cultura escreverá nosso destino, nosso desejo, nossas ambições… e nossos defeitos.

A crença é um subproduto do marxismo - e sua tradução política (socialismo, comunismo) - que ambicionava construir o “novo homem”: despojado de ganância, completamente cooperativo, sem individualidades, como uma colônia de térmites, ou de formigas, onde todos trabalham em favor do coletivo. Para isso, bastava dar ao Estado Socialista o controle total da educação dos filhos.

Bem, sabemos os resultados disso. “Ah, mas a União Soviética usou mal o princípio, o que não significa que ele esteja errado”. É, o apego à crença da tábula rasa continua firme e forte nas humanas: são todos culturalistas, acham que não existe essa coisa de “natureza humana”.

Mas o psicanalista aqui, encantado com a psicologia evolucionista, está convencido que fatos biológicos simples como “mulheres engravidam; homens podem dar no pé” influenciam muito no comportamento.

Por isso, vejo com enorme prazer a possibilidade de as exatas conversarem cada vez mais com as humanas. Ou, como dizem os alemães, as “geisteswissenschaften” (as ciências da alma) possam ser parceiras do saber das “naturwissenschaften” (as ciências da natureza).

Porque nossa alma é um produto da natureza.






DR. PENNA

 



Talvez por não ter conhecido meus avôs, “adotei” alguns ao longo da vida. Suas histórias me faziam viajar no tempo, para épocas mais gentis e memórias saborosas. Dr. Penna foi um “avô” muito querido.

Em 1975, quando me mudei para a vila onde moro até hoje, ele era meu vizinho de porta. Um dentista nascido em Petrópolis na virada do século (1900), educado na Inglaterra (Eton College), formado aqui pelo Dr. Fordham, o dentista americano da elite carioca dos anos 30/40.

Francisco José Penna herdara de seu mestre a clientela ilustre: num domingo, encontrei o embaixador Maurício Nabuco em frente à sua porta, para ser atendido numa emergência dentária. É, Dr. Penna tinha equipamento em casa, para essas situações. Herdou também a filha do Dr. Fordham, com quem se casou e de quem era viúvo havia muito tempo.

Dr. Penna era um gentleman. Ele me recebia à noite em seu robe de tweed, e lá ficava eu, ouvindo suas histórias, pedindo sempre mais: de como eles haviam voltado de Nova York de navio, em 1950, trazendo na bagagem todas as novidades da cozinha americana, compradas por sua mulher (geladeira e freezer também). Esses utensílios de época continuavam na casa, nostalgia pura. Inclusive seu carro, um reluzente Oldsmobile comprado zero em NY, que veio embarcado junto com eles.

De como ele pegava o trem das 6 da manhã na estação de Petrópolis, onde morava, descia na da Leopoldina, onde um táxi contratado o esperava para levá-lo ao consultório, na Av. Presidente Wilson. E de volta ao trem, no fim da tarde, chegando às 19h30 em Petrópolis, rotina que manteve por mais de trinta anos, até vir morar no Rio.

Nos anos em que estive separado, entre os dois casamentos, quando ia sair para a noite dava uma passadinha lá para me despedir. Ele sempre me fazia a mesma recomendação, em seu perfeito inglês de Eton: “Behave yourself, be good, and don’t do anything I wouldn’t do”.

Ter amigos velhinhos é um pouco parecido a ter cachorros: muito afeto e pouca duração. Dr. Penna morreu aos 90, depois de 15 anos de amizade…






SENTIMENTO DE CULPA: UM TIRO NO PÉ

 


Quer de fato combater o machismo, o racismo, a homofobia, o fascismo etc.? Não enquadre ninguém como machista, racista, homofóbico, fascista.

Não faça ninguém se sentir culpado e menor; isso só serve para você se sentir superior, é má estratégia para os seus valorosos propósitos.

Arranje um jeito de convencer o outro das vantagens (e as há, muitas) da virtude: é o melhor jeito de combater o vício.