domingo, 14 de agosto de 2022

UM IDEAL ILUMINISTA - juntar exatas com humanas

 



Quando entendi o que foi/é o Iluminismo, descobri um rótulo bom para mim. Agora, além de ser um fervoroso democrata, um liberal nos costumes e na economia (capitalista civilizado, ciente de que os investimentos no social e na ecologia trazem grande retorno), eu também era um iluminista.

Ser um iluminista é ter como valores prezados, como bússola de navegação da própria vida, a razão, a ciência, a lógica, e a vontade de saber mais, com a humildade da ignorância e a desconfiança de certezas.

Um dos meus heróis do Iluminismo - ao lado de Darwin, Freud et al. - é Edward O. Wilson (1929-2021). Acabei de ler seu livro, “O Sentido da Existência Humana” (2014), e uma das coisas que me encantaram nele foi seu ideal iluminista de unir ciências humanas com as exatas, pois elas se realimentam e se complementam para… entender mais sobre o sentido da existência humana.

Meu exemplo maior é o desmonte da crença na tábula rasa, na ideia de que nascemos como um papel em branco onde a cultura escreverá nosso destino, nosso desejo, nossas ambições… e nossos defeitos.

A crença é um subproduto do marxismo - e sua tradução política (socialismo, comunismo) - que ambicionava construir o “novo homem”: despojado de ganância, completamente cooperativo, sem individualidades, como uma colônia de térmites, ou de formigas, onde todos trabalham em favor do coletivo. Para isso, bastava dar ao Estado Socialista o controle total da educação dos filhos.

Bem, sabemos os resultados disso. “Ah, mas a União Soviética usou mal o princípio, o que não significa que ele esteja errado”. É, o apego à crença da tábula rasa continua firme e forte nas humanas: são todos culturalistas, acham que não existe essa coisa de “natureza humana”.

Mas o psicanalista aqui, encantado com a psicologia evolucionista, está convencido que fatos biológicos simples como “mulheres engravidam; homens podem dar no pé” influenciam muito no comportamento.

Por isso, vejo com enorme prazer a possibilidade de as exatas conversarem cada vez mais com as humanas. Ou, como dizem os alemães, as “geisteswissenschaften” (as ciências da alma) possam ser parceiras do saber das “naturwissenschaften” (as ciências da natureza).

Porque nossa alma é um produto da natureza.






DR. PENNA

 



Talvez por não ter conhecido meus avôs, “adotei” alguns ao longo da vida. Suas histórias me faziam viajar no tempo, para épocas mais gentis e memórias saborosas. Dr. Penna foi um “avô” muito querido.

Em 1975, quando me mudei para a vila onde moro até hoje, ele era meu vizinho de porta. Um dentista nascido em Petrópolis na virada do século (1900), educado na Inglaterra (Eton College), formado aqui pelo Dr. Fordham, o dentista americano da elite carioca dos anos 30/40.

Francisco José Penna herdara de seu mestre a clientela ilustre: num domingo, encontrei o embaixador Maurício Nabuco em frente à sua porta, para ser atendido numa emergência dentária. É, Dr. Penna tinha equipamento em casa, para essas situações. Herdou também a filha do Dr. Fordham, com quem se casou e de quem era viúvo havia muito tempo.

Dr. Penna era um gentleman. Ele me recebia à noite em seu robe de tweed, e lá ficava eu, ouvindo suas histórias, pedindo sempre mais: de como eles haviam voltado de Nova York de navio, em 1950, trazendo na bagagem todas as novidades da cozinha americana, compradas por sua mulher (geladeira e freezer também). Esses utensílios de época continuavam na casa, nostalgia pura. Inclusive seu carro, um reluzente Oldsmobile comprado zero em NY, que veio embarcado junto com eles.

De como ele pegava o trem das 6 da manhã na estação de Petrópolis, onde morava, descia na da Leopoldina, onde um táxi contratado o esperava para levá-lo ao consultório, na Av. Presidente Wilson. E de volta ao trem, no fim da tarde, chegando às 19h30 em Petrópolis, rotina que manteve por mais de trinta anos, até vir morar no Rio.

Nos anos em que estive separado, entre os dois casamentos, quando ia sair para a noite dava uma passadinha lá para me despedir. Ele sempre me fazia a mesma recomendação, em seu perfeito inglês de Eton: “Behave yourself, be good, and don’t do anything I wouldn’t do”.

Ter amigos velhinhos é um pouco parecido a ter cachorros: muito afeto e pouca duração. Dr. Penna morreu aos 90, depois de 15 anos de amizade…






SENTIMENTO DE CULPA: UM TIRO NO PÉ

 


Quer de fato combater o machismo, o racismo, a homofobia, o fascismo etc.? Não enquadre ninguém como machista, racista, homofóbico, fascista.

Não faça ninguém se sentir culpado e menor; isso só serve para você se sentir superior, é má estratégia para os seus valorosos propósitos.

Arranje um jeito de convencer o outro das vantagens (e as há, muitas) da virtude: é o melhor jeito de combater o vício.






SEXO SADOMASOQUISTA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Gustavo Wong: “Como funciona o sadomasoquismo no sexo?”

Francisco Daudt: O sadomasoquismo sexual visa passar por cima das barreiras da vergonha e da culpa, que impedem o prazer. Visa driblar os mandamentos morais do Superego. Para isso, ele se combina e se mistura com o domínio/submissão.

A coisa funciona assim: se, ao ter prazer no sexo, a mulher sente medo/vergonha/culpa de se ver como uma puta; se, ao ter prazer anal, o homem sente medo/vergonha/culpa de se ver como viado, essas barreiras impedirão o orgasmo.

O sadomasoquismo e o domínio/submissão funcionam como truque para ultrapassar/manter essas barreiras.

A parte do domínio/submissão: O macho forte domina a mulher, ou o outro homem que, diante daquela força poderosa, “não pode fazer mais nada, tem medo de apanhar e se submete, afinal, ele/ela foi currado/a, não teve saída senão a submissão. “Ah, não foi por vontade minha, eu fui forçado”. Os papéis não são fixos, a mulher pode assumir o papel de “dominatrix” e submeter o homem envergonhado.

Eu disse ultrapassar e manter, pois a vergonha e a culpa não foram questionadas nem resolvidas, elas foram ultrapassadas, dribladas, e se mantêm intactas, voltam com tudo, desafiando e pedindo nova ultrapassagem.

A parte do sadomasoquismo é mais voltada para ultrapassar a culpa. O macho sádico, causando dor no outro, produz uma espécie de “castigo adiantado”, que pune a culpa pelo prazer que ele pode sentir, ao se ver como antimodelo (puta/viado). Ao se sentir punido/a, a culpa estará expiada. Novamente, homem ou mulher podem assumir esse papel: a dominatrix combina domínio com sadismo.

Você vê como a combinação dele com o domínio/submissão funciona: “Faz isso! Ah, não vai fazer? Toma essa chicotada, então!”.

Domínio pela dor: “não posso resistir… tenho medo, e essa coisa dói!” Diante disso, há a entrega; e com a entrega, o orgasmo.

Esse é um enorme problema no caso dos estupros ou dos abusos, em ambos os sexos: eles podem produzir orgasmo… e uma tremenda ressaca moral por isso, o que frequentemente inibe a queixa criminal.

Mas… não há nada tão ruim que não possa piorar: o prazer sexual vem se somar aí ao prazer de enganar o Superego. Foi por isso que Nelson Rodrigues disse: “Essa gente está maluca? Querem tirar o pecado do sexo? Vão acabar com a metade do prazer…”






PREFÁCIO DO LIVRO NOVO (LANÇAMENTO EM BREVE)

 



Tenho horror de prefácio.

Ainda mais num livro que foi escrito para quem não lê, para quem lê só textos pequenos em mídias sociais, para viciados em telinha, para leigos interessados em psicanálise, mas que, com justa razão, largam a leitura ao primeiro termo complicado, para estudantes de psicanálise que querem entender o que leem.

Eu gosto de nheengatu. Os descobridores perguntaram como se chamava a língua daqueles índios que eles encontraram no litoral. “É nheengatu”, disseram os índios. “Mas o que isso quer dizer?” “É língua de gente”, responderam.

Pois então: meu livro fala de psicanálise em língua de gente.

E chega de prefácio.







IGUALDADE? QUE IGUALDADE?



Perguntado sobre o que achava da utopia socialista de igualdade e de modificação cultural do ser humano para eliminar dele a ganância e a inveja, Edward O. Wilson, o pai da sociobiologia, respondeu:

“Eu acho lindo. Pena que se aplique à espécie errada. Se fosse às formigas, térmites e abelhas – que são geneticamente iguais – iria funcionar plenamente. Mas com o sapiens, é um problema. Nós somos uma espécie de indivíduos geneticamente únicos. Se há algo que caracterize nossa espécie, é justamente a diferença que sempre teremos, uns dos outros.”
Mas então, que igualdade é essa da qual tanto se fala e pela qual tanto se luta? Ah, trata-se da igualdade democrática. O pilar da democracia é a igualdade, não entre indivíduos, mas de oportunidades e perante às leis.

Fora dessa, todos teremos o direito de ser diferentes, e de termos nossas diferenças respeitadas, desde que elas respeitem a Constituição.

O Pelé terá talentos assombrosos que eu posso até intimamente invejar (“que injustiça, eu não ter nascido assim”). Mas que, no aprendizado do respeito pelas diferenças, posso vir a apenas admirar…






 

EU NÃO SOU MEU SUPEREGO - O AMIGO PERGUNTA

 



De Rita Cassia Freitas: “Mas o nosso SuperEgo não é parte da gente?“

Francisco Daudt: Por certo que é. Mas nós somos um só que não é um só, e sim uma soma complexa de componentes interagindo. Quando você diz “meu joelho está doendo”, você o observa como um componente que não “é você”, mas “uma coisa em você”.

Esse “não é você”, traduzido para os softwares mentais que possuímos, dá em “não é o seu Eu”. “Eu não me confundo com esse joelho doendo, Eu não sou assim!”

Quando Freud propôs esse mapa da mente (Ego, Id e Superego - Eu, Algo em mim, O Acima de mim), ele o via como partes separadas e em constante interação. Ele viu o Eu como essa pessoa em quem nos reconhecemos, que tenta gerenciar e negociar, mediando nossos desejos de prazer com as exigências do mundo externo.

Eu tento sublinhar essas diferenças: quando me sinto culpado de algo, penso que o Superego está me dizendo que Eu sou uma pessoa horrível. Se percebo a acusação “terceirizada”, se ela me dói como o joelho, então posso discutir se ela é justa ou não. Se eu aprendi que a acusação vinda do Superego tem como base as leis tirânicas do senso comum, a minha busca por justiça fica facilitada.

Agora, se eu confundo tudo, achando que essas vozes são minhas, do meu Eu, e que Eu sou uma coisa só, perde-se um precioso instrumento de justiça: o conhecimento de onde vem a lei e de quem acusa.

O Superego é malandro, ele nos seduz a crer que somos ele: fodões com superioridade moral, melhores do que todos, críticos do mundo. Só que essa crença é uma faca de dois gumes: passamos facilmente de fodões a merdas, quando ele nos humilha. E continuamos a acreditar que “isso tudo sou Eu”…

“O truque mais esperto do Diabo é convencer-nos de que ele não existe”, disse Baudelaire (1821-1867).