domingo, 14 de agosto de 2022

IGUALDADE? QUE IGUALDADE?



Perguntado sobre o que achava da utopia socialista de igualdade e de modificação cultural do ser humano para eliminar dele a ganância e a inveja, Edward O. Wilson, o pai da sociobiologia, respondeu:

“Eu acho lindo. Pena que se aplique à espécie errada. Se fosse às formigas, térmites e abelhas – que são geneticamente iguais – iria funcionar plenamente. Mas com o sapiens, é um problema. Nós somos uma espécie de indivíduos geneticamente únicos. Se há algo que caracterize nossa espécie, é justamente a diferença que sempre teremos, uns dos outros.”
Mas então, que igualdade é essa da qual tanto se fala e pela qual tanto se luta? Ah, trata-se da igualdade democrática. O pilar da democracia é a igualdade, não entre indivíduos, mas de oportunidades e perante às leis.

Fora dessa, todos teremos o direito de ser diferentes, e de termos nossas diferenças respeitadas, desde que elas respeitem a Constituição.

O Pelé terá talentos assombrosos que eu posso até intimamente invejar (“que injustiça, eu não ter nascido assim”). Mas que, no aprendizado do respeito pelas diferenças, posso vir a apenas admirar…






 

EU NÃO SOU MEU SUPEREGO - O AMIGO PERGUNTA

 



De Rita Cassia Freitas: “Mas o nosso SuperEgo não é parte da gente?“

Francisco Daudt: Por certo que é. Mas nós somos um só que não é um só, e sim uma soma complexa de componentes interagindo. Quando você diz “meu joelho está doendo”, você o observa como um componente que não “é você”, mas “uma coisa em você”.

Esse “não é você”, traduzido para os softwares mentais que possuímos, dá em “não é o seu Eu”. “Eu não me confundo com esse joelho doendo, Eu não sou assim!”

Quando Freud propôs esse mapa da mente (Ego, Id e Superego - Eu, Algo em mim, O Acima de mim), ele o via como partes separadas e em constante interação. Ele viu o Eu como essa pessoa em quem nos reconhecemos, que tenta gerenciar e negociar, mediando nossos desejos de prazer com as exigências do mundo externo.

Eu tento sublinhar essas diferenças: quando me sinto culpado de algo, penso que o Superego está me dizendo que Eu sou uma pessoa horrível. Se percebo a acusação “terceirizada”, se ela me dói como o joelho, então posso discutir se ela é justa ou não. Se eu aprendi que a acusação vinda do Superego tem como base as leis tirânicas do senso comum, a minha busca por justiça fica facilitada.

Agora, se eu confundo tudo, achando que essas vozes são minhas, do meu Eu, e que Eu sou uma coisa só, perde-se um precioso instrumento de justiça: o conhecimento de onde vem a lei e de quem acusa.

O Superego é malandro, ele nos seduz a crer que somos ele: fodões com superioridade moral, melhores do que todos, críticos do mundo. Só que essa crença é uma faca de dois gumes: passamos facilmente de fodões a merdas, quando ele nos humilha. E continuamos a acreditar que “isso tudo sou Eu”…

“O truque mais esperto do Diabo é convencer-nos de que ele não existe”, disse Baudelaire (1821-1867).






DEUS E O SUPEREGO - O AMIGO PERGUNTA

 



“Por que, em toda promessa a Deus, o oferecimento, a moeda de troca é um sacrifício, algum tipo de sofrimento?”

Francisco Daudt: Porque qualquer deus - debates metafísicos à parte - tende a ser, para a maioria da humanidade e desde tempos imemoriais, uma projeção externa do nosso Superego.

E a relação que temos com o Superego é sadomasoquista: ele nos ampara e protege, mas em troca nos domina, nos humilha, nos faz sentir culpa, nos impõe penitências… e só então nos perdoa e concede graças. Nós o idealizamos, veneramos, queremos estar à altura de suas exigências.

Mas também nos revoltamos contra ele, trapaceamos, transgredimos suas leis tirânicas, pecamos… e temos a maior ressaca moral disso tudo.

Eis por que entendemos que os deuses/Superego gostam de nos ver sofrendo: é a prova de nossa submissão e devoção a eles.






SAPIENS, O SER TRIBAL

 


(do meu livro “O amigo pergunta - sobre psicanálise, pelas redes sociais”, lançamento em breve)

Mesmo nas cidades, continuamos a viver em tribos. Quer saber a primeira situação em que somos forçados a conviver com extra-tribos: a escola. De onde você pensa que vem o bullying? Do estranhamento com o “diferente”. Aqueles pequenos trogloditas são confrontados com seres de outras tribos, e fazem exatamente o que nossos ancestrais fariam: caem na porrada.

Eis porque as escolas deveriam priorizar o aprendizado da convivência civilizada (leis, governo, obrigações sociais), mais importante do que as matemáticas e geografias. Aliás, com o ensino à distância, creio que esse será o futuro das escolas (mas isso é assunto para outra conversa).









ANTES DE DISCUTIR SOBRE POLÍTICA, DÁ UMA OLHADA NISSO:

 



Karl Popper é meu filósofo da ciência predileto. Ele disse:

“Uma filosofia muito perniciosa poderia ser formulada nessas palavras: ‘As opiniões de uma pessoa são sempre determinadas por seus interesses políticos ou econômicos’.

É muito comum que isso só se aplique ao oponente de alguém, da seguinte forma: ‘se você não vê as coisas como eu as vejo, você deve estar dominado por alguma motivação econômica sinistra’.

A parte pior desse tipo de filosofia é que sua aceitação torna impossível qualquer discussão séria. E conduz à perda de interesse em descobrir a verdade sobre as coisas. Porque, em vez de colocar o problema como ‘Qual é a verdade sobre esse assunto?’, as pessoas simplesmente perguntam: ‘Quais são as suas motivações?’ E esta é, obviamente, uma pergunta de pouca significância.”






A FILOSOFIA COMO BASE DA POLÍTICA

 



O Stephen Kanitz me sugere que investir no comunitarismo é bom remédio para uma sociedade mais justa e unida, em vez do cultivo do ódio, que resulta no atual galopante tribalismo fodão-merda.

Respondi com algumas reflexões, em busca de um caminho:

“Ética a Nicômaco”, de Aristóteles x Imperativo categórico kantiano:

Sempre fui um admirador da ética aristotélica, o reverso do que sinto pela ética kantiana.

O imperativo categórico é o retrato do Superego, a cristalização do mal-estar na cultura; é o total desrespeito com o indivíduo e suas circunstâncias.

A ética aristotélica contém a flexibilidade que contempla o indivíduo e suas singularidades. Se a virtude está, não no meio, mas em algum ponto entre seu exagero e sua falta (a coragem, em algum ponto flexível entre a temeridade inconsequente e a covardia), ela contemplará as variáveis individuais.

O problema, como sempre, é o pensamento binário da maioria. Como seduzir as pessoas à contemplação da complexidade? Como fazer ver que os interesses da comunidade são também interesses do indivíduo?

O que remete à minha frase preferida, de Freud: “A virtude precisa ser recompensada ainda nesta Terra, ou a ética pregará em vão”.






quarta-feira, 8 de junho de 2022

O TRIBALISMO QUE NOS ASSOLA - O AMIGO PERGUNTA

 



Stephen Kanitz me pede: “Expanda mais sobre o tribalismo. É exatamente isso que acho que acontece no Brasil.”

Foi a partir de um diagnóstico que fiz em “Um impaciente chamado Brasil”:

“O vício que assola o Brasil é o tribalismo fodão/merda. A política do “nós contra eles”, que vem sendo cultivada há anos, ganhou o impulso das mídias sociais para se tornar guerra viciosa: a dopamina (neurotransmissor do prazer) que inunda o cérebro a cada vez que xingo, humilho, rotulo o outro de merda, se torna nossa dependência, nossa razão de viver.”

Tentando expandir, então:
A tribo é o grupamento-base do sapiens desde seu surgimento, cerca de 70 mil anos atrás. Ela continua a existir: pode reparar que seus conhecidos, parentes e amigos nunca passam de 200 (não vale contar os de mídia social).

A tribo é cooperativa, o altruísmo recíproco é estimulado pelo afeto e pelos laços sociais; os comportamentos predatórios são inibidos pela abundância de testemunhas e pelo medo de má fama/desamparo.

A civis, a polis, a cidade de milhares/milhões de habitantes é completamente antinatural, já que nosso software de sobrevivência considera o estranho como inimigo, até que provado em contrário.

Para conviver com esses estranhos/inimigos, foram criadas as leis e o Estado que as aplica. Foram inventadas a civilização, a civilidade, as boas maneiras, a “educação/polidez”, que são amortecedores da hostilidade natural que os estranhos nos despertam.

Foram inventados os “extensores de familiaridade”: ilusões que se esforçam para estender nossa ideia de tribo à cidade, ao estado, ao país. Assim, somos todos “uma grande família”: os cariocas, os fluminenses, os brasileiros. Elas diminuem nossos sentimentos hostis para com os estranhos e eventualmente aumentam nossa simpatia por eles.

Mas a natureza humana continua latente e imutável: nosso tribalismo hostil a outras tribos sempre se manifestou em disputas de superioridade e de poder. Daí vêm as guerras de torcidas de futebol, p.ex., ou os conflitos políticos. Lembro-me bem do ódio que lacerdistas e getulistas se devotavam mutuamente. Mas suas manifestações eram muito restritas, esse ódio era pouco danoso, por consequência.

Não havia meios e/ou oportunidades para que a motivação odiosa resultasse em dano.

Isso mudou, hoje existem abundantes meios e oportunidades: as mídias sociais e o algoritmo que dá palanque às tretas. Quando mais ódio e insulto, quanto mais reação violenta a postagem causar, mais prêmio de divulgação; a natureza humana adora a proeminência social, o que torna a violência mais sedutora ainda.

Isso estimula a reatividade e inibe a reflexão. O rótulo ganha da argumentação, por ser curto, por ser rápido, por ser rasteiro e fácil de compreender. Cada vez mais o algoritmo opera uma seleção adversa: dá voz e prêmio aos imbecis (Umberto Eco) e inibe os reflexivos.

Os suavizadores da convivência (civilidade, polidez, educação) vão para o espaço, e as tribos hostis só fazem se multiplicar: amigos e familiares da tribo original se dividindo, tornando-se inimigos, cultivando rancores em nome de uma suposta sensação de superioridade.

Esse é meu diagnóstico estendido. Não sei a cura…