quarta-feira, 8 de junho de 2022

O TRIBALISMO QUE NOS ASSOLA - O AMIGO PERGUNTA

 



Stephen Kanitz me pede: “Expanda mais sobre o tribalismo. É exatamente isso que acho que acontece no Brasil.”

Foi a partir de um diagnóstico que fiz em “Um impaciente chamado Brasil”:

“O vício que assola o Brasil é o tribalismo fodão/merda. A política do “nós contra eles”, que vem sendo cultivada há anos, ganhou o impulso das mídias sociais para se tornar guerra viciosa: a dopamina (neurotransmissor do prazer) que inunda o cérebro a cada vez que xingo, humilho, rotulo o outro de merda, se torna nossa dependência, nossa razão de viver.”

Tentando expandir, então:
A tribo é o grupamento-base do sapiens desde seu surgimento, cerca de 70 mil anos atrás. Ela continua a existir: pode reparar que seus conhecidos, parentes e amigos nunca passam de 200 (não vale contar os de mídia social).

A tribo é cooperativa, o altruísmo recíproco é estimulado pelo afeto e pelos laços sociais; os comportamentos predatórios são inibidos pela abundância de testemunhas e pelo medo de má fama/desamparo.

A civis, a polis, a cidade de milhares/milhões de habitantes é completamente antinatural, já que nosso software de sobrevivência considera o estranho como inimigo, até que provado em contrário.

Para conviver com esses estranhos/inimigos, foram criadas as leis e o Estado que as aplica. Foram inventadas a civilização, a civilidade, as boas maneiras, a “educação/polidez”, que são amortecedores da hostilidade natural que os estranhos nos despertam.

Foram inventados os “extensores de familiaridade”: ilusões que se esforçam para estender nossa ideia de tribo à cidade, ao estado, ao país. Assim, somos todos “uma grande família”: os cariocas, os fluminenses, os brasileiros. Elas diminuem nossos sentimentos hostis para com os estranhos e eventualmente aumentam nossa simpatia por eles.

Mas a natureza humana continua latente e imutável: nosso tribalismo hostil a outras tribos sempre se manifestou em disputas de superioridade e de poder. Daí vêm as guerras de torcidas de futebol, p.ex., ou os conflitos políticos. Lembro-me bem do ódio que lacerdistas e getulistas se devotavam mutuamente. Mas suas manifestações eram muito restritas, esse ódio era pouco danoso, por consequência.

Não havia meios e/ou oportunidades para que a motivação odiosa resultasse em dano.

Isso mudou, hoje existem abundantes meios e oportunidades: as mídias sociais e o algoritmo que dá palanque às tretas. Quando mais ódio e insulto, quanto mais reação violenta a postagem causar, mais prêmio de divulgação; a natureza humana adora a proeminência social, o que torna a violência mais sedutora ainda.

Isso estimula a reatividade e inibe a reflexão. O rótulo ganha da argumentação, por ser curto, por ser rápido, por ser rasteiro e fácil de compreender. Cada vez mais o algoritmo opera uma seleção adversa: dá voz e prêmio aos imbecis (Umberto Eco) e inibe os reflexivos.

Os suavizadores da convivência (civilidade, polidez, educação) vão para o espaço, e as tribos hostis só fazem se multiplicar: amigos e familiares da tribo original se dividindo, tornando-se inimigos, cultivando rancores em nome de uma suposta sensação de superioridade.

Esse é meu diagnóstico estendido. Não sei a cura… 





MALLEEFOWL (FAISÃO AUSTRALIANO, OU “GALINHA DE MALLEE”): O BICHO QUE É NOSSO EXTREMO OPOSTO

 



Eu estava em Buenos Aires, em 1983, para um congresso de psicanálise, quando assisti na tv do quarto do hotel a um documentário sobre a Galinha de Mallee.

Pode parecer estranho, mas isso foi um importante fator para que eu escrevesse meu primeiro livro, ”A Criação Original - a teoria da mente segundo Freud”.

É que o bicho já nasce pronto! Não entra em contato com os pais, não toma conhecimento de seus pares (exceto para acasalamento), vive sozinho e se vira desde o nascimento.

“Ele e o exato oposto de nós!”, pensei eu. É nossa dependência e longa necessidade de amparo o que produz nossas encrencas psíquicas; é por isso que absorvemos os problemas de nossos pais e as imbecilidades do senso comum.

A galinha de Mallee NÃO TEM COMPLEXO DE ÉDIPO!

(Link para o documentário sobre ela: https://youtu.be/FgPqZoSHXoM )




O TIJOLO E A CATEDRAL

 



Um frade fez a mesma pergunta a dois pedreiros na obra da Notre Dame de Paris: "O que você está fazendo?"

O primeiro respondeu: "Estou assentando uma fileira de tijolos".

O segundo se pôs de pé e respondeu: “Eu estou construindo uma catedral!"

Ambas importam:

Em breve, sairá um livro meu: “O amigo pergunta - sobre psicanálise, pelas mídias sociais”.

Ele será um tijolo maior, feito de tijolinhos de postagens minhas aqui no Facebook, na construção da minha catedral…





POR QUE EU QUERO TRAZER A PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA PARA A PSICANÁLISE? - O AMIGO PERGUNTA

 



O professor Stephen Kanitz me fez essa pergunta, e aqui a respondo, da forma mais concisa possível:

É porque as duas estudam o sapiens por ângulos complementares: a psicologia evolucionista contempla a espécie; a psicanálise contempla o indivíduo.

A meu ver, não há como entender o indivíduo sem saber as forças biológicas da espécie que nele operam.

Os culturalistas, aqueles que creem que o ser humano nasce como uma folha em branco, onde a cultura tudo escreverá (poderíamos ser ensinados a ter tesão num rinoceronte?), cometem um erro grave ao negar as forças biológicas que operam em nós, mas…

…tocam na condição biológica que dá tanta força para que a cultura nos modele: a necessidade de amparo.

Nenhum outro animal nasce tão impotente, tão necessitado de amparo quanto nós. Em minutos, um bezerro ou um portrinho se põem de pé e buscam a teta da mãe. Um bebê humano, deixado sobre uma mesa plana, morrerá de fome e sede ali mesmo: não consegue nem CAIR DA MESA.

Pela vida afora nós faremos QUALQUER NEGÓCIO para acalmar nosso medo principal: o medo de desamparo.

Esse é o principal fator biológico a agir sobre nosso comportamento. Mas nem de longe é o único.

É por isso que quero me valer da psicologia evolucionista. 





O QUE É UM RACIONALISTA? - O AMIGO PERGUNTA

 



De Delba Monducci: O que é um racionalista? Como ele evita a vaidade humana quanto ao saber? Neste tópico, Popper é o quê, racionalista ou assertivo?

Francisco Daudt: Delba, um racionalista é aquele que, como eu, considera o Iluminismo uma virada na história da humanidade.

A partir do Iluminismo, passaram a ter lugar no mundo a razão, a lógica, a humildade do não saber, o assumir da ignorância, não como motivo de orgulho (como fazem muitos, atualmente), mas como base da vontade de aprender, do desejo epistemológico (da busca do conhecimento verdadeiro), do apreço pela ciência, pelo teste de refutação de nossas hipóteses.

Novamente, como disse Karl Popper, o racionalista é aquele que valoriza mais sua vontade de aprender que sua vaidade do saber.

A virtude da humildade é, como todas as virtudes, fruto de uma construção. Não existe humildade de prazer imediatista, como o é o exibicionismo vaidoso. Ela pede um treino diário.

Em tempos de Facebook, treino-a quando surge um comentário debochado, provocativo, “demolidor” por suas supostas certezas. É quando tento abrir espaço para o debate, tento uma respeitosa e humilde resposta que atenda, sem outros adjetivos, o substantivo, a substância da questão.

Ok, se ele for insultuoso, eu simplesmente bloqueio o “amigo”. Vejo a treta como algo que não visa convencer - e não convence nem vence - atrito que não traz luz, só calor inflamado…
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Iluminismo, por Immanuel Kant (1724 – 1804).
“O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma menoridade que estes mesmos se impuseram a si. (…) Sapere aude! [Ouse saber!] Tem coragem para fazer uso da tua própria razão!”





domingo, 10 de abril de 2022

DE UM PSICANALISTA PARA NEUROCIENTISTAS E EVOLUCIONISTAS

 



(Eles estudam a espécie; a psicanálise estuda o indivíduo)

A psicanálise que busco construir se vale da psicologia evolucionista e da neurociência (que estudam a mente da espécie) para estudar a mente do indivíduo.

Estudar a mente do indivíduo implica conhecer infinitos vetores, um de cada vez, entendendo como eles interferem na resultante. E assim mesmo só ter uma pálida ideia, pois não há complexidade igual sobre a face da Terra.

Ela começa contemplando o genérico: reprodução e sobrevivência como drives (impulsos) básicos, um buscando o prazer, o outro evitando o desprazer; softwares genéticos, como tipos mentais (orientação sexual, “cabeça de homem”, “cabeça de mulher”, obsessividade, herança para vício, para depressão, inteligências abrangentes ou especializadas, e seus vários níveis, capacidades de reflexão/reação etc.).

Levando tudo isso em conta, volta-se para a pessoa, começa a entender como se deu o embate desejo/cultura naquele indivíduo. Como ele negociou sua busca de prazer frente ao medo do desamparo por desagradar seu ambiente familiar; de que características pessoais ele teve que abrir mão, por conta desse embate; que crenças disfuncionais absorveu, como decorrência do embate; que distorções sofreu seu desejo (a psicanálise que busco não considera a vontade de se drogar como parte do Desejo, senão que a vê como uma distorção, um paliativo do desejo).

Toda essa pesquisa e investigação se dá, em psicanálise, por engenharia reversa: o cliente chega com seu sofrimento, sua doença, seus sintomas. O pressuposto psicanalítico é que esse sofrimento é fruto daquele embate desejo/cultura (quando se fala “cultura” aqui, se supõe o atropelamento que o senso comum produz sobre as singularidades do indivíduo, começando pela família, continuando fora dela). É a partir dessas doenças/sintomas que se vai investigando e deduzindo, tanto o desejo mais autêntico, quanto seus atrapalhadores.

Essa psicanálise que faço define saúde mental como a eficiente negociação com o mundo para a realização dos desejos do indivíduo. Considera como doença todos os atrapalhadores dessa negociação, que levam à distorção de seu desejo.

Não vejo conflito de interesses, portanto, entre as ciências da mente e a psicanálise. O estudo da espécie serve ao indivíduo; o estudo do indivíduo serve à compreensão da espécie. Uma ajuda a outra.



“EU ACHAVA QUE A PSICANÁLISE ERA UMA PSEUDOCIÊNCIA PERIGOSA…” - O AMIGO PERGUNTA

 



Francisco Daudt: E você, Samuel Fernando, tinha/tem muitas razões para achar isso.

Eu próprio também acho que ela vive esse risco. Não conheço muitos psicanalistas que se preocupem com epistemologia, que declarem suas bases para a busca do conhecimento verdadeiro.

Não acredito que a psicanálise venha a ser uma ciência, algum dia. Sua pesquisa é muito pessoal, muito dependente da postura do psicanalista. Mas ela pode se valer dos instrumentos científicos para sua busca de verdade.

No meu caso, escolhi o filósofo da ciência Karl Popper e sua refutabilidade das hipóteses, como meu norte: seja claro no que você propõe ao cliente, e dê a ele toda a liberdade de dizer que você está errado. Só tome como aproximadamente certa a hipótese que for confirmada sem hesitação.

O problema é que a psicanálise requer gente inteligente que também dê valor às ciências exatas, não só às humanas. O culturalismo é uma praga, na psicanálise; a aversão à psicologia evolucionista, a qualquer influência biológica no funcionamento da mente, é uma tristeza.

Acreditar na tábula rasa, que nossa mente é uma folha em branco em que a cultura escreverá tudo, é o maior risco de reducionismo que a psicanálise corre. É deixar de lado um componente crucial da nossa complexidade.

Afora o triste fato da seleção adversa que uma psicanálise obscura, hermética e “poética” promove: gente que não entende o que lê ou ouve, e tem vergonha de admitir isso, passa a se enganar e achar que entende, passa a mistificar e humilhar terceiros com sua suposta sapiência: seleção garantida de crentes do fodão/merda…