domingo, 10 de abril de 2022

“EU ACHAVA QUE A PSICANÁLISE ERA UMA PSEUDOCIÊNCIA PERIGOSA…” - O AMIGO PERGUNTA

 



Francisco Daudt: E você, Samuel Fernando, tinha/tem muitas razões para achar isso.

Eu próprio também acho que ela vive esse risco. Não conheço muitos psicanalistas que se preocupem com epistemologia, que declarem suas bases para a busca do conhecimento verdadeiro.

Não acredito que a psicanálise venha a ser uma ciência, algum dia. Sua pesquisa é muito pessoal, muito dependente da postura do psicanalista. Mas ela pode se valer dos instrumentos científicos para sua busca de verdade.

No meu caso, escolhi o filósofo da ciência Karl Popper e sua refutabilidade das hipóteses, como meu norte: seja claro no que você propõe ao cliente, e dê a ele toda a liberdade de dizer que você está errado. Só tome como aproximadamente certa a hipótese que for confirmada sem hesitação.

O problema é que a psicanálise requer gente inteligente que também dê valor às ciências exatas, não só às humanas. O culturalismo é uma praga, na psicanálise; a aversão à psicologia evolucionista, a qualquer influência biológica no funcionamento da mente, é uma tristeza.

Acreditar na tábula rasa, que nossa mente é uma folha em branco em que a cultura escreverá tudo, é o maior risco de reducionismo que a psicanálise corre. É deixar de lado um componente crucial da nossa complexidade.

Afora o triste fato da seleção adversa que uma psicanálise obscura, hermética e “poética” promove: gente que não entende o que lê ou ouve, e tem vergonha de admitir isso, passa a se enganar e achar que entende, passa a mistificar e humilhar terceiros com sua suposta sapiência: seleção garantida de crentes do fodão/merda…



ENSINANDO PSICANÁLISE

 



Sempre fiquei intrigado com o termo “análise didática”, que se dizia como fundamental para a formação psicanalítica. Imaginava que o candidato seria analisado, e seu didata lhe explicaria os conceitos analíticos que se aplicavam a seu caso.

Depois, na minha própria formação, descobri que não era nada daquilo. Era uma psicanálise pessoal regular, só que feita por um psicanalista didata (um título outorgado pela sua instituição de origem).

Pois acabei inventando um jeito de ensinar psicanálise muito baseado naquela minha primeira compreensão do termo: meu orientando/aluno tem uma hora semanal para me falar de seus dramas, de seus sintomas, de sua história, e eu, em vez de tratá-lo, mostro como a teoria psicanalítica se aplica a ele e a seus eventos psíquicos. Indico a bibliografia relacionada. Ele aprende psicanálise na própria pele.

Apresento aqui alguns deles, uns interessados em se formar psicanalistas clínicos, outros em conhecer teoria psicanalítica. Seus endereços de Instagram (quando os há) vêm em parênteses, logo a seguir do nome:

Eduardo Affonso (@eduardo_alves_affonso); Renato Capper; Lucas Peccin (@lucaspeccin); Samuel Fernando (@samuel_fernando33); Pedro Buarque Bisaglia (@pedrobisaglia); Guilherme Veiga; Gustavo Wong (@gustavowb_); Claudio Kuyven (@claudiokuyven); Daniel Vicente(@daniel_vicente_psi); Fernanda Wainer (@nacasadananda); Stella Veiga. 





A IMORTAL E A NOSSA MESA DO GUIMAS

 



Eu e o Marco De Bellis temos ido almoçar aos sábados no Guimas quase que mensalmente (pausa pandêmica, claro) nos últimos 30 anos.

Como bons obsessivos, o ritual é sempre o mesmo: chegamos pontualmente às 12h e sempre somos os primeiros a entrar, nos sentando à mesma mesa junto à janela… exceto por uma vez, há uns 15 anos:
quando entramos, nossa mesa estava tomada pela Fernanda Montenegro e um pequeno grupo. Fui até lá:
“Fernanda, você está ocupando a nossa mesa”, disse-lhe eu.

“Oh, desculpe, eu não sabia…”, disse-me ela.

“Mas eu estive pensando, você já me deu tantas alegrias na vida e eu nunca pude retribuir em nada… Bem, chegou a hora então: pode ficar com a mesa!”

Ela sorriu, muito agradecida. Como haviam começado o almoço cedo, terminaram antes de nós. Fernanda veio à nossa mesa e se dirigiu a mim:

“Muito obrigada, outra vez. Sua mesa realmente é ótima.”

E foi assim que consegui fazer alguma coisa pela nova imortal da Academia…



COMO NASCE O SENTIMENTO DE CULPA

 



Através de uma linha de montagem genético-cultural:

1. Nascemos com softwares de sobrevivência, atentos a cobras, escuridão, confinamento, altura, grandes insetos voadores etc., mas principalmente ao medo do desamparo.

2. O medo do desamparo nos torna alertas ao que desagrada a nossos pais, e a prestar muita atenção ao que eles dizem sobre isso.

3. Se eles nos rotulam, ou nos comparam a alguém horrível (“Você está igual ao filho do vizinho, aquela criança malvada”), aprendemos sobre a existência de antimodelos, pessoas ou qualidades que devemos evitar como à peste. Mais tarde serão os outros, a cultura, e sobretudo o senso comum que vão criar antimodelos e nos manipular com eles.

É assim que o Superego se forma: um software genético-cultural que nos cobra perfeição, nos julga e nos ameaça, e que não distinguimos de nós mesmos.

4. Quando essa acusação/comparação, que vinha de fora, começa a vir de nossa própria cabeça, aí começa a vergonha de ser horrível, aí começa o sentimento de culpa.

5. O sentimento de culpa é a arma de manipulação mais eficiente que a humanidade já inventou: alguém pode te pôr de joelhos usando uma arma, e você se levantará quando a arma sumir. Mas se você se sente culpado, é você mesmo que vai implorar perdão… de joelhos, que nem o Fiuk.

Abaixo, o “João Felpudo” (aquela criança horrível inventada pelo alemão Hoffmann, que não corta as unhas nem o cabelo, não toma banho nem escova os dentes), e “Juca e Chico” (duas pestes malvadas, que acabam tendo ‘o que merecem’, invenção do alemão Wilhelm Busch). Personagens muito usados pelas mães de outrora: “Você está igual ao João Felpudo!”


BOM SENSO X SENSO COMUM

 



Uma amiga, estudante dos franceses Deleuze, Guattari, Foucault et.al., costumava se referir ao bom-senso como “bom senso/senso-comum”, como se fossem sinônimos.

Não sei de onde ela tirou isso, mas eles são dois conceitos que não se confundem, apesar de conterem ideias em comum.

O bom-senso fala da lógica contida num conceito; o senso-comum fala da crença comum partilhada por grande número de pessoas, não importa se tenha lógica ou não. É aquilo que “todo mundo sabe que é assim”.

“É melhor fazer alguma poupança, pois não existe destino mais cruel que ser velho pobre” faz parte do bom senso.

“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, “Deus ajuda a quem cedo madruga”, “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” e a maioria das máximas, provérbios e ditados falam do senso comum.

O senso comum é a crença - ou mesmo religião - mais poderosa do mundo, não à toa ele clama que “todo mundo sabe que é assim”. É tão sutil e poderosa que nem reconhecida como crença ele é. Apenas é…

O senso comum nos pensa como rebanho; o bom senso pode ser facilmente contestado pelo indivíduo: “isso não me parece de bom senso”. Ele está mais próximo do senso crítico, dá mais liberdade de estranhamento.

Essas reflexões me vieram quando um amigo me contou de sua viagem à família, que mora em Minas: “Não vai comer arroz? Tá fresquinho, viu!”, “Mas, nem um pouquinho?”, “Vai nos fazer essa desfeita?”

Ele cometera a blasfêmia de não querer arroz. Olha a religião aí, gente… 



A COMICIDADE DO MAL

 


A COMICIDADE DO MAL

A babá da minha irmã caçula, mineira de Ubá, costumava cantar uma música lamentosa e triiiiste... :

“A velha sergipana / vivia na choupana / sem rede e sem cama / no seu velho sofá / ah, ah, ah, ah...
Um dia de madrugada / caiu de uma escada / e com a perna quebrada / jamais ela andará / ah, ah, ah, ah...
Vieram dos arredores / a junta dos doutores / pra lhe curar as dores / mas remédio não há / ah, ah, ah, ah...
Morreu com um sorriso / de quem tivera aviso / de ir ao paraíso / de lá não voltará / ah, ah, ah, ah”.

Tão triste era música, tantas vezes ela a cantava, que um dia começamos a debochar, trocando os “ah, ah, ah, ah” por sádicos “hahahahaha”.

Mais tarde, aos onze anos, eu e a irmã assistimos a “Imitação da vida”, um filme com Lana Turner, em que a protagonista passava por uma tal sequência de infortúnios e situações trágicas, que, se de início contristados, lá para o meio da história, a cada nova desdita, caíamos - nós e toda a plateia - na gargalhada...

Estávamos usando (sem saber) um mecanismo de defesa infantil contra a angústia: a comicidade do mal.

Sim, era algo além do que Hanna Arendt descreveu. Sua “banalidade do mal” falava de quão insensível e acostumado se pode ficar com o excesso de más notícias. A comicidade do mal tem um componente sádico - esse “rir da desgraça alheia”, que é diferente do “rir para não chorar” e do “rir de nervoso”.

Nós estávamos sacaneando a babá, sacaneando a heroína do filme, na tentativa infantil de mostrar que estávamos no comando, que aquela desgraceira não poderia nos afetar.

Essas lembranças me vieram ao assistir aos noticiários, ao constatar como temos estado, como não temos Estado, e o estado a que chegamos...


ANGELA MERKEL FAZ UM DIAGNÓSTICO PRECISO

 



A chanceler alemã sofreu uma tentativa de intimidação por parte de Vladmir Putin: sabedor de que Merkel tem medo de cães, ele chamou seu imenso labrador para se deitar aos pés dela, em sua visita ao Kremlin. Frau Merkel ficou impávida, com um sorriso gélido. Perguntada depois sobre o episódio, comentou: "Só pessoas muito inseguras de si se utilizam de expedientes como esse. O que não faz mais que deixar à mostra suas fragilidades interiores".

Ela descreveu com precisão a síndrome fodão-merda, quando um inseguro quer se afirmar como fodão através de fazer alguém mais se sentir um merda. Nem que para isso tenha que invadir a Ucrânia.