domingo, 10 de abril de 2022

A COMICIDADE DO MAL

 


A COMICIDADE DO MAL

A babá da minha irmã caçula, mineira de Ubá, costumava cantar uma música lamentosa e triiiiste... :

“A velha sergipana / vivia na choupana / sem rede e sem cama / no seu velho sofá / ah, ah, ah, ah...
Um dia de madrugada / caiu de uma escada / e com a perna quebrada / jamais ela andará / ah, ah, ah, ah...
Vieram dos arredores / a junta dos doutores / pra lhe curar as dores / mas remédio não há / ah, ah, ah, ah...
Morreu com um sorriso / de quem tivera aviso / de ir ao paraíso / de lá não voltará / ah, ah, ah, ah”.

Tão triste era música, tantas vezes ela a cantava, que um dia começamos a debochar, trocando os “ah, ah, ah, ah” por sádicos “hahahahaha”.

Mais tarde, aos onze anos, eu e a irmã assistimos a “Imitação da vida”, um filme com Lana Turner, em que a protagonista passava por uma tal sequência de infortúnios e situações trágicas, que, se de início contristados, lá para o meio da história, a cada nova desdita, caíamos - nós e toda a plateia - na gargalhada...

Estávamos usando (sem saber) um mecanismo de defesa infantil contra a angústia: a comicidade do mal.

Sim, era algo além do que Hanna Arendt descreveu. Sua “banalidade do mal” falava de quão insensível e acostumado se pode ficar com o excesso de más notícias. A comicidade do mal tem um componente sádico - esse “rir da desgraça alheia”, que é diferente do “rir para não chorar” e do “rir de nervoso”.

Nós estávamos sacaneando a babá, sacaneando a heroína do filme, na tentativa infantil de mostrar que estávamos no comando, que aquela desgraceira não poderia nos afetar.

Essas lembranças me vieram ao assistir aos noticiários, ao constatar como temos estado, como não temos Estado, e o estado a que chegamos...


ANGELA MERKEL FAZ UM DIAGNÓSTICO PRECISO

 



A chanceler alemã sofreu uma tentativa de intimidação por parte de Vladmir Putin: sabedor de que Merkel tem medo de cães, ele chamou seu imenso labrador para se deitar aos pés dela, em sua visita ao Kremlin. Frau Merkel ficou impávida, com um sorriso gélido. Perguntada depois sobre o episódio, comentou: "Só pessoas muito inseguras de si se utilizam de expedientes como esse. O que não faz mais que deixar à mostra suas fragilidades interiores".

Ela descreveu com precisão a síndrome fodão-merda, quando um inseguro quer se afirmar como fodão através de fazer alguém mais se sentir um merda. Nem que para isso tenha que invadir a Ucrânia.





UMA MULHER E SEU LIVRO

 



O livro que mais influenciou a minha vida foi “To kill a mockingbird” (“O sol é para todos”, 1961, tradução do português Fernando Castro Ferro para a Editora José Olympio). Surrupiei o livro da biblioteca do meu irmão, e nunca me arrependi do furto.

O filme de mesmo nome faz jus ao livro, as crianças e Gregory Peck (como o pai, Atticus Finch) estão esplêndidos.

Com ele, aprendi a me conservar criança pela vida afora, e ao mesmo tempo, me transformar no pai que ambicionava ser.

A querida Harper Lee (1926-2016) terá sempre um lugar privilegiado em meu coração.



DRAMA E TIRANIA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Bony Schachter: ”Por que somos propensos a fazer drama de tudo?”

Francisco Daudt: O drama é uma arma de poder tirânico: ele dá senso de urgência (majoritariamente desnecessário) e pede uma solução simplória. Ora, a boa justiça pede diálogo e reflexão (acusação e defesa); a justiça sumária que o drama exige elimina o tempo para reflexão, exige reação. O ditador executa, a democracia parlamentar parlamenta antes de o executivo executar.

Eis porque o drama é o combustível perfeito para nosso tirano interno: o Superego.



TRÊS LIÇÕES DE HUMILDADE

 



Copérnico (1473 – 1543) nos mostrou que não éramos o centro do universo: era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrário.

Darwin (1809 – 1882) nos mostrou que não éramos uma criação em separado, acima de todos os outros animais: somos todos parentes, temos instintos como eles. O que nos diferencia é a triste consciência de nossa fragilidade e de que vamos morrer.

Freud (1856 – 1939) nos mostrou que somos manipulados sem saber por nossa biologia e nossa criação. Somos, na maior parte do tempo, um joguete dessas forças inconscientes.

Ou seja, não mandamos nem no nosso próprio quintal…



F.O.M.O. E A LÓGICA DO TIK-TOK/REELS

 



O vício do f.o.m.o. (“Fear of missing out”, medo de estar perdendo alguma coisa mais interessante) encontra nos videozinhos curtos do tik-tok/Reels sua melhor tradução.

A lógica neles contida é excitar, mas não satisfazer. Dessa maneira, mantém aberto o apetite (ou a “f.o.m.e.”) e a compulsão de ver o próximo, e o próximo, e o próximo, sem nunca ter seu desejo saciado.

Ouço relatos de clientes que passam horas correndo os vídeos…


QUER FICAR REALMENTE EMOCIONADO? LEIA ISTO: (Parece que é sobre a guerra, mas é sobre a Natureza Humana)

 



“Por que Vladimir Putin já perdeu esta guerra”
Yuval Noah Harari

“Com menos de uma semana de guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin esteja caminhando para uma derrota histórica. Ele pode ganhar todas as batalhas, mas ainda assim perder a guerra. O sonho de Putin de reconstruir o império russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real, que os ucranianos não são um povo real e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv anseiam pelo governo de Moscou. Isso é uma mentira completa – a Ucrânia é uma nação com mais de mil anos de história, e Kiev já era uma grande metrópole quando Moscou ainda não era uma vila. Mas o déspota russo contou sua mentira tantas vezes que aparentemente ele mesmo acredita nela.

Ao planejar sua invasão da Ucrânia, Putin podia contar com muitos fatos conhecidos. Ele sabia que militarmente a Rússia supera a Ucrânia. Ele sabia que a Otan não enviaria tropas para ajudar a Ucrânia. Ele sabia que a dependência europeia do petróleo e do gás russos faria países como a Alemanha hesitarem em impor sanções rígidas. Com base nesses fatos conhecidos, seu plano era atingir a Ucrânia com força e rapidez, decapitar seu governo, estabelecer um regime fantoche em Kiev e enfrentar as sanções ocidentais.

Mas havia uma grande incógnita sobre esse plano. Como os americanos aprenderam no Iraque e os soviéticos aprenderam no Afeganistão, é muito mais fácil conquistar um país do que conservá-lo. Putin sabia que tinha o poder de conquistar a Ucrânia. Mas o povo ucraniano simplesmente aceitaria o regime fantoche de Moscou? Putin apostou que sim. Afinal, como ele explicou repetidamente a qualquer pessoa disposta a ouvir, a Ucrânia não é uma nação real, e os ucranianos não são um povo real. Em 2014, as pessoas na Crimeia dificilmente resistiram aos invasores russos. Por que 2022 deveria ser diferente?

A cada dia que passa, fica mais claro que a aposta de Putin está falhando. O povo ucraniano está resistindo de todo coração, conquistando a admiração do mundo inteiro – e vencendo a guerra. Muitos dias sombrios estão por vir. Os russos ainda podem conquistar toda a Ucrânia. Mas para vencer a guerra, os russos teriam que controlar a Ucrânia, e eles só podem fazer isso se o povo ucraniano permitir. Isso parece cada vez mais improvável de acontecer.

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto aumenta a coragem dos ucranianos de resistir. E cada ucraniano morto aprofunda o ódio dos ucranianos pelos invasores. O ódio é a mais feia das emoções. Mas para as nações oprimidas, o ódio é um tesouro escondido. Enterrado no fundo do coração, pode sustentar a resistência por gerações. Para restabelecer o império russo, Putin precisa de uma vitória relativamente sem derramamento de sangue que levará a uma ocupação relativamente sem ódio. Ao derramar cada vez mais sangue ucraniano, Putin garante que seu sonho nunca será realizado. Não será o nome de Mikhail Gorbachev escrito na certidão de óbito do império russo: será o de Putin. Gorbachev deixou russos e ucranianos se sentindo como irmãos; Putin os transformou em inimigos e garantiu que a nação ucraniana daqui em diante se defina em oposição à Rússia.

Em última análise, as nações são construídas sobre histórias. Cada dia que passa acrescenta mais histórias que os ucranianos contarão não apenas nos dias sombrios que virão, mas nas próximas décadas e gerações. O presidente que se recusou a fugir da capital, dizendo aos EUA que precisa de munição, não de carona; os soldados da Ilha das Cobras que mandaram um navio de guerra russo “vá se foder”; os civis que tentaram parar os tanques russos sentando-se em seu caminho. Este é o material de que as nações são construídas. A longo prazo, essas histórias contam mais do que tanques.

O déspota russo deveria saber disso tão bem quanto qualquer um. Quando criança, ele cresceu com uma dieta de histórias sobre as atrocidades alemãs e a bravura russa no cerco de Leningrado. Ele agora está produzindo histórias semelhantes, mas se colocando no papel de Hitler.

As histórias de bravura ucraniana dão determinação não apenas aos ucranianos, mas ao mundo inteiro. Eles dão coragem aos governos das nações europeias, ao governo dos EUA e até mesmo aos cidadãos oprimidos da Rússia. Se os ucranianos se atrevem a parar um tanque com as próprias mãos, o governo alemão pode ousar fornecer-lhes alguns mísseis antitanque, o governo dos EUA pode ousar cortar a Rússia do Swift, e os cidadãos russos podem ousar demonstrar sua oposição a esse absurdo. guerra.

Todos podemos nos inspirar a ousar fazer algo, seja fazer uma doação, receber refugiados ou ajudar na luta online. A guerra na Ucrânia moldará o futuro do mundo inteiro. Se a tirania e a agressão vencerem, todos sofreremos as consequências. Não vale a pena permanecer apenas observadores. É hora de se levantar e ser contado.

Infelizmente, essa guerra provavelmente será duradoura. Tomando diferentes formas, pode muito bem continuar por anos. Mas a questão mais importante já foi decidida. Os últimos dias provaram ao mundo inteiro que a Ucrânia é uma nação muito real, que os ucranianos são um povo muito real e que definitivamente não querem viver sob um novo império russo. A principal questão deixada em aberto é quanto tempo levará para que essa mensagem penetre nas grossas paredes do Kremlin.”

Yuval Noah Harari é historiador e autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade