domingo, 10 de abril de 2022

SENTIMENTO DE CULPA

 



1958 - Calouro sofre, e não era diferente quando entrei no Santo Inácio. Os alunos do Admissão sofriam bullying dos veteranos, que nos chamavam de “bebês”.

Entre os veteranos havia um anão, que resolveu entrar na onda e me chamou de bebê. “Olha quem fala…”, debochei de volta. O colega dele me mandou um olhar prenhe de censura, apontando para a condição especial do mini-bully.

Morri de sentimento de culpa. Tanto, que resolvi me confessar. Chegado ao confessionário, não sabia qual mandamento teria transgredido, mas meu crime se parecia muito mais com um pecado mortal do que qualquer dos atos libidinosos que praticava assídua e solitariamente.

Expliquei meu crime ao padre, ele não se impressionou, me despachou com uma merreca de três ave-marias como penitência. Eles só gostavam do 6º mandamento. Só pensavam “naquilo”…



O VÍCIO FODÃO/MERDA: UMA FACE DO SADOMASOQUISMO - O AMIGO PERGUNTA

 



Samuel Fernando: “Por que o vício fodão/merda (f&m) é sadomasoquista?”

Francisco Daudt: É de se esperar, esse estranhamento. Quando se pensa em sadomasoquismo, pensa-se numa prática sexual bizarra, com couro, botas, chicotes e algemas. Nunca se pensa num hábito do dia-a-dia, numa prática comum entre colegas de escola, funcionários de escritório, casais, membros da mesma família, “amigos” de redes sociais.

No entanto, o bullying, o assédio moral, a humilhação, o cancelamento, ou qualquer prática que implique fazer os outros sofrerem (sadismo); ou quando alguém se entrega à vitimização, ao deboche e ao sofrimento autoinfligido (masoquismo), de maneira compulsiva e sistemática, isso também se configura como um vício: o vício sadomasoquista.

Lembrando: sua face fodão/merda (f&m) acontece quando uma pessoa se torna dependente de humilhar terceiros, fazê-los de merda, para se sentir superior, se engrandecer a seus olhos e aos olhos dos espectadores, se sentir fodão.

Até o f&m sofre influência da moda: a atual tendência a mostrar superioridade moral nas tretas das mídias sociais é totalmente f&m. O mesmo vale para os caçadores de ofensas. O ofendido exibe sua virtude ao apontar o crime do ofensor, pede seu cancelamento, seu linchamento público: é o fodão “do bem” humilhando o merda, “em nome de valores elevados que ele possui”.

Esse sadomasoquismo f&m começa dentro da cabeça, numa relação perversa entre nós e nosso Superego. Absorvemos, por humilhação externa, a crença de que somos insuficientes, de que devemos ser, no fundo, uns merdas. Nosso Superego sádico nos acusa, julga e humilha, e nós, passivos e masoquistas desse maltrato interno, buscamos alívio através de nós igualar ao Superego sádico e dizer que “merda são os outros”.

É esta a origem do sadomasoquismo f&m: terceirizamos o maltrato de que um dia fomos vítimas. Nós nos tornamos os agressores, e isso nos parece melhor do que sermos os agredidos. Como naquela brincadeira idiota do colégio, o “passa adiante senão vira elefante”: não questionamos o cascudo que o da carteira de trás nos deu, pois dar o cascudo no da frente nos trouxe alívio…



TÉCNICA PSICANALÍTICA - O AMIGO PERGUNTA

 



Alberto Maia: “Que livro de técnica psicanalítica você sugere?”

Francisco Daudt: Nenhum. Vou te contar como se desenvolveu a minha técnica, e daí tire suas próprias conclusões.

É claro que tive dois modelos principais: Freud e meu analista formador, que era freudiano. Li e olhei o que eles diziam e faziam. Deduzi que Freud construiu sua técnica de acordo com seus propósitos. A coisa do divã e da poltrona por trás vieram da hipnose, somada ao fato de ele querer escrever sem que o cliente visse, e de não gostar de ser encarado pelos clientes.

Quando defini meus propósitos psicanalíticos, construí uma técnica para servi-los. É tudo uma sequência lógica: se meus propósitos são estar a serviço do cliente para sua busca da felicidade, devo saber qual o caminho; se creio que esse caminho é o conhecimento do desejo e dos atrapalhadores à sua realização, quero o melhor meio de investigá-los; se estou convencido de que o Superego faz parte dos atrapalhadores, não posso ser um representante do Superego, não posso estar acima do cliente, não posso julgá-lo, fazê-lo sentir-se culpado, humilhado, envergonhado. Quero ser parceiro dele, olhar com ele seus problemas, conhecer com ele seus desejos.

Isso é um começo de conversa. Que se traduz numa técnica, numa postura: quero ser afável, empático, bem-humorado, não fazedor de drama, não misterioso e nem enigmático, não posso deixar o cliente esperando (pontualidade) e quero ter disponibilidade previsível (tempo certo de sessão).

O atendimento on-line, portanto, não foi nenhuma mudança drástica: já não uso o divã há anos. Além de os clientes não pegarem trânsito nem procurarem vaga.



SEXO, PARA OS HOMENS: O PONTO DE VISTA ECONÔMICO

 



Tudo começa pela natureza: homens não engravidam e são encharcados de testosterona (o hormônio sem o qual não existe desejo).

Isso implica, de saída, baixo custo e alto benefício, para a prática do sexo. Como tudo que fazemos depende de motivação, meios e oportunidades, são eles que vão pautar a quantidade de investimento que um homem fará para obter o prazer do sexo.

Grosso modo, pode-se dividir em três tipos, de investimento crescente, a atividade sexual masculina:
1. Custo zero: masturbação.
2. Custo baixo/médio: putaria.
3. Custo médio/alto: sexo pessoal relevante.

Do tipo 1: a masturbação masculina ainda está ligada à natureza. Como é vital para a procriação que os homens emitam seu sêmen, e como para isso é necessário que tenham orgasmo, a mãe natureza praticamente impôs a que todos eles se masturbassem, em algum momento da vida, ou (mais comumente) pela vida afora. O custo é zero, o benefício é máximo. Mesmo no casamento monogâmico, a masturbação é o consolo de não se ter outras pessoas envolvidas. Tive uma cliente que era enciumada das masturbações do marido; expliquei-lhe como os homens funcionam, e que ela era a maior beneficiária.

Do tipo 2: a putaria, também chamada de malandragem, orgia, pegação, sacanagem, transgressão (a sinonímia é extensa, dado o sucesso que faz), é o sexo casual sem compromisso e de baixa relevância pessoal. Requer alguma negociação, coisa inexistente na masturbação.

Desde as “nights” da garotada, à prostituição e aos aplicativos de encontro, o custo não é zero, mas é baixo - mesmo quando caro, seja em dinheiro, seja em investimento pessoal. Isso costuma ser mal compreendido pelas mulheres, que não entendem a falta de relevância que a putaria tem para um homem, e por isso podem ter dela um ciúme desproporcional.

Do tipo 3: quando a pessoalidade começa a ser envolvida, o custo de investimento dispara… e o retorno em benefícios fica mais crítico. Vai desde o pobre coitado, prisioneiro do senso comum, que entra na linha de montagem social “já se formou, já tem um emprego, tem que entrar para o rol dos homens sérios, se casar e fazer família”…

…até o extremo de complexidade, daquele que é capaz de saber sobre seu desejo, e encontrar parceria que com ele encaixe em vários níveis de interseção, e com isso construir um amor companheiro, uma situação de investimento máximo, custo mínimo (pela parceria recíproca) e retorno/benefício inigualável.





ANTIDEPRESSIVOS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Como qualifica sua experiência com os antidepressivos?”

Francisco Daudt: Como ótima. Eles são uma ferramenta preciosa para a psicanálise, pois retiram o sofrimento e assim liberam a inteligência do cliente para que possamos tratar do software, que é o objetivo dela.

Andei vendo que há antidepressivos específicos para modalidades diferentes de depressão. Dois em especial me chamam a atenção: o Bromidrato de Citalopran (nome comercial: Cipramil, e outros) e o Oxalato de Escitalopran (nome comercial: Lexapro, e outros).

O Citalopran brilha em depressões típicas (falta de graça na vida e pensamentos catastróficos), mas é um espetáculo naquelas com uma característica pouco conhecida: a irritabilidade e os ataques de fúria. Já preveni que muitos clientes fossem parar na delegacia, por causa da lei Maria da Penha, porque eles estavam usando Citalopran, e nunca mais tiveram ataques de fúria.

O Escitalopran é ótimo na depressões que se acompanham de fobias, síndrome do pânico e ideias obsessivas invasivas.

Lembro-me sempre de Freud dizendo que, no futuro, ele esperava que houvesse fármacos a produzir nos clientes melhoras que a psicanálise não conseguia.

Querido professor, esse tempo chegou!





PRECONCEITOS

 



Aposto que, quando você leu o título desta postagem, pensou que eu ia falar contra os preconceitos, certo? Pois isso foi um preconceito seu.

É impossível viver sem preconceitos. O simples fato de você achar que está entendendo o escrito aqui, já é um preconceito: você está transferindo seus conceitos do significado das palavras ao texto que escrevo… e eu poderia estar chamando urubu de “meu louro”.

O preconceito mais comum da espécie, aquele que tem salvado a vida de milhões ao longo do tempo, é o que diz “se é estranho, é inimigo”. Você abriria mão desse preconceito ao andar por uma rua deserta à noite, ouvindo passos em sua direção?

Se o estranho começa a aparecer com sinais familiares, o preconceito muda de direção: passa a ser preconceito a favor. Mas continua preconceito.

Qualquer aparição pública minha é cuidadosamente pensada para que eu desperte preconceito a meu favor: maneira de falar, de vestir, de cortar o cabelo e aparar a barba. Ou aqui, meu jeito de escrever, a ilustração que escolho para a postagem etc.

Meu filho trouxe um colega de jiu-jítsu para almoçar. Foi quando me dei conta de que um negro entrava em minha casa como convidado social. Durante o almoço, esqueci que ele era negro, pois virou Samuel.

A criminalização do racismo é necessária, porém não suficiente. A culpabilização do preconceito racial é má estratégia, por conter injustiça (estranho/inimigo). O problema não é ter preconceitos, o problema é tê-los pétreos: quanto mais negros virarem Samuel, mais preconceitos a favor competirão com os outros em nossa cabeça, mais flexíveis nossos preconceitos serão, diante das evidências.

P.S. : Tenho consciência de que meu texto pode despertar uma chuva de preconceitos contra mim, tão delicado é o tema.

Mas corro o risco. Tenho um preconceito sobre a inteligência dos meus leitores: é a favor…

(Na imagem do post: Sidney Poitier, em “Advinhe quem vem para jantar”, 1967. Poucas pessoas fizeram mais para diminuir o preconceito racial do que Sidney Poitier: ele era o Samuel em pessoa!)





DESEJO E PRAZER - O AMIGO PERGUNTA

 



De Bony Schachter: “Qual a diferença entre desejo e prazer?”

Francisco Daudt: Grosso modo, é a mesma que entre tensão e alívio. Mas… estamos falando da espécie humana e seu cérebro, a maior complexidade que existe, portanto é melhor ir somando as simplicidades, ir afinando o “grosso modo”.

Fome é necessidade; causa tensão, desconforto, incômodo, desprazer. Apetite é desejo; pode ser prazeroso sentir apetite… por um tempo. Se sua provocação se prolonga, a coisa começa a incomodar levemente, a funcionar como tensão a buscar ação que o satisfaça, mas ainda continua gostosa.

Mas o prazer só virá quando o objeto desse apetite estiver na boca. Dificilmente alguém chamará esse momento de alívio, tão gostoso ele é.

O ponto central está na ligação entre desejo e seu objeto. Se a fome/necessidade pode passar com mingau de aveia, o apetite/desejo quer sorvete de pitanga. Se um é simplório, o outro é complexo, específico.

O mesmo se passa com o tesão. A própria palavra é derivada de tensão, da busca de alívio. Como no binômio fome/apetite, ele vai do simplório desconfortável ao complexo, específico, gostoso. Do “eu tô na secura, qualquer buraco serve” ao “eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida”.

O que nos leva a Santo Agostinho: “É necessário um mínimo de bem-estar material, para a prática das virtudes”. Para se conhecer o desejo e a complexidade, é preciso sair da fome e da necessidade.