domingo, 30 de janeiro de 2022

FREUD E DARWIN CONVERSAM - O INDIVÍDUO CONVERSA COM A ESPÉCIE

 



Todos os seres vivos são como a galinha: uma máquina inventada pelo ovo para fabricar outro ovo.

A pena do pavão serve ao ovo através da atração que ele exerce sobre a fêmea; o voo do pavão serve ao ovo através da sobrevivência, para fugir dos predadores enquanto ele não se reproduz. Nós somos comandados pelo gene e seus interesses egoistas, a nossa própria sobrevivência só tem sentido para sustentar a multiplicação dos genes.

Nós somos totalmente descartáveis, do ponto de vista do gene. O esquisito é sermos conscientes, o que inaugura o conceito de indivíduo: os interesses dos indivíduos podem ser diferentes dos interesses dos genes, posso querer ter prazer e não passar meus genes adiante. Essa é a fascinante conversa a que vou me dedicar no próximo livro: indivíduo (psicanálise; Freud) conversa com a espécie (psicologia evolucionista; Darwin). 



ORGASMOS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Existe mesmo essa coisa de diferentes orgasmos nas mulheres? De que o orgasmo vaginal é ‘mais maduro’ que orgasmo clitoriano?”

Francisco Daudt: Existem diferentes orgasmos, tanto para mulheres quanto para homens. Só essa história de “orgasmos maduros” é que é conversa fiada e idealização superegoica.

O orgasmo, como quase tudo na espécie humana, é também resultado da interação “nature-nurture”, natureza e criação, hardware e software, nascença e cultura. O pênis e o clitoris têm a mesma estrutura e origem anatômica. Nosso embrião tem genitais em forma original feminina. No caso dos meninos, ainda durante a gestação, os hormônios vão fechar a vagina e fazer crescer o clitoris, os ‘ovários’ descem e se transformam em testículos.

É assim que os meninos terão um clitoris/pênis exposto e sensível, impossível de escapar à estimulação: todos os meninos (só os meninos?) se masturbam, a masturbação é a principal vida sexual dos homens. Com isso, os circuitos cerebrais que permitem o orgasmo ficam muito bem treinados, e como consequência, não há homens que nunca tenham experimentado o orgasmo. A mãe natureza agradece, pois a existência da humanidade depende do orgasmo masculino. Além disso há a cultura, que os impele ao sexo, por gosto e afirmação de masculinidade.

Com as mulheres, é diferente. Sua estrutura genital é escondida. Uma vez, em sala de aula, pedi que os alunos situassem anatomicamente 1.ânus, 2.meato urinário, 3.canal vaginal e 4.clitoris, no sentido ventre-dorso. Eles deveriam escrever os números sequenciados num papel e me entregar. O índice de erros foi muito alto. (A propósito, a sequência certa é 4;2;3;1).

Com isso, a masturbação feminina já é menos comum. A inibição cultural sobre a sexualidade da mulheres costuma reprimi-la ainda mais: enquanto os homens temem se parecer com mulheres/gays, as mulheres temem se parecer com promíscuas/putas, isso contribui muito para que haja mulheres que nunca se masturbaram. Uma cliente me contou que, dentro do box da privada, em seu colégio interno, havia uma pintura na porta representando o olho de Deus num triângulo, com a legenda “Deus te vê!”

Não é de se espantar, portanto, que haja muitas mulheres que nunca experimentaram orgasmo, já que seus circuitos cerebrais para ele dependem do treino masturbatório.

As diferenças de orgasmo (intensidade de prazer), tanto dos homens quanto das mulheres, correm por conta da equação controle/entrega: quanto mais controle, menos prazer; quanto mais entrega, mais prazer. Um homem pode querer um orgasmo que é quase apenas um alívio: uma rapidinha, uma mera ejaculação. A propósito, o excesso de controle leva a um problema masculino: a ejaculação precoce.

O abandono dos controles é capaz de levar a orgasmos espetaculares. A entrega, em graus maiores, leva a orgasmo que toma o corpo inteiro, deixa a pessoa exausta, e em dois casos produz até miniconvulsões: os orgasmos vaginais e anais, estes últimos em mulheres e em homens. O orgasmo anal é tão diferente do orgasmo por estímulo genital, que os homens o experimentam sem ereção e sem ejaculação.

De novo, isso não tem nada a ver com graus de maturidade ou qualquer outro juízo de valor. É apenas fruto de capacidade orgânica (zona erógena) somada ao desejo de intensidade, que leva a um treino dedicado.


PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA MAL COMPREENDIDA

 


Fiquei feliz de ver um psicanalista contemplando a psicologia evolucionista, mas… ele a entendeu mal. Não há essa separação tão forte entre bons e maus. A capacidade predadora mora em todos nós, a capacidade de altruísmo recíproco também.

A boa sociedade civilizada incentiva a segunda e diminui as chances para a primeira, pois sabe que “a ocasião faz o ladrão”. A boa justiça pune a predação com penas dosadas, e dá ao transgressor a oportunidade de se regenerar. O temor da justiça é um dos fatores que inibem nossas capacidades de predação. Mas o principal é o objetivo democrático de igualdade de oportunidades.

Existe sim o predador irrecuperável, a quem chamamos de psicopata/sociopata. Estes precisam ser afastados, em prisão perpétua, mas são minoria. 


DESEJOS REPRIMIDOS - O AMIGO PERGUNTA

 


“Você diz que o caminho para a felicidade consiste em conhecer os próprios desejos e realizá-los. Mas, e quanto aos desejos reprimidos? Isso se aplica?”

Francisco Daudt: Não… em parte. Acontece que alguns desejos são reprimidos porque são olhados pelo Superego de maneira rudimentar e distorcida, e aí sim, parecem monstruosos e qualificados para a repressão.

Por exemplo: você descobriu em análise que “no fundo, queria matar seu pai”. Daí concluiu que existe um monstro dentro de você, ele tem que ser mantido sobre repressão. Faz todo o sentido, não?

Mas suponha que você arranjou um psicanalista capaz de entender que o desejo em pauta não tem nada de assassino, que há sim um desejo digno e legitimamente seu envolvido na coisa: o desejo de justiça. Você sofreu com as injustiças vindas de seu pai e, por falta de instrumentos, ficou com a reação infantil de vingança, a forma mais primitiva de justiça.

“Ah, se você quer mal a essa pessoa sagrada que te deu tudo na vida, então você é um monstro”, diz o Superego. Pronto: repressão nele!

A partir daí, a questão principal está obscurecida pelo medo do monstro, e os efeitos da repressão vão se construindo (o menino bonzinho que não sabe dizer não, p.ex.).

Quando se descobre o desejo de justiça envolvido, a pessoa pode aprender instrumentos civilizados de corrigir as injustiças: negociação, mediada ou direta, acerto de ponteiros, ou se não der, tomar distância e cuidar da própria vida.

Nessa hora, o desejo reprimido mostra sua face legítima, a de desejo de justiça, e deste modo pode ser realizado.

Resumo da ópera: o desejo reprimido dos neuróticos obsessivos é, afinal, o desejo de justiça.


NARCISISMO

 



Sim, claro, existe a pessoa narcisista que só se interessa por si mesma, se acha o máximo, é um poço de vaidade, não tem um pingo de empatia nem de interesse por ninguém. Essa não vê nenhum problema em si: é perfeita.

Mas também há a tomada por tal tumulto mental, que não lhe sobra espaço para a contemplação de mais nada. Esse narcisismo tem cura.







PSICOLOGIA COGNITIVA E PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Já ouvi você falar bem da psicologia cognitiva. Ela tem alguma relação com a psicanálise?”

Francisco Daudt: Primeiramente, eu vou ressaltar que se trata de psicologia cognitiva, e não daquilo de que se costuma falar, da TCC (terapia cognitivo-comportamental). Cognitiva, sem a comportamental, portanto.

Depois, sim, existe um conceito da psicologia cognitiva que se parece muito com o que é pesquisado em psicanálise: o erro cognitivo que leva à crença disfuncional. Por exemplo, “a masturbação é pecado mortal (erro) e te levará ao inferno pela eternidade (crença)”, um jeito de associar a sexualidade ao sentimento de culpa.

O objetivo, tanto da psicologia cognitiva quanto da psicanálise, é entender como a crença disfuncional foi absorvida, para que a pessoa se livre dela.

A diferença está na complexidade: a psicanálise não afirma que são erros, mas maneiras de ver a vida nas quais você foi envolvido quando criança, e das quais pode discordar, se tiver um olhar crítico sobre elas.

P.ex., suponha que você cresceu num ambiente familiar que dividia o mundo em fodões e merdas, e absorveu essa crença altamente disfuncional, com grande prejuízo para a sua saúde mental e a dos que te cercam. Se você se torna consciente desse conceito, e pode discordar dele por achá-lo injusto, começa aí o seu caminho de cura da doença sadomasoquista mais comum da humanidade.







domingo, 2 de janeiro de 2022

MEDO DO RIDÍCULO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Em que categoria de angústia mora o medo do ridículo?”

Francisco Daudt: Na da angústia de desamparo. É uma forma sutil, mas está lá. 

Antes de mais nada, vamos defini-lo. O ridículo é o sentimento que o desmascaramento da pretensão descabida desperta. Ele é diferente do patético, que é a pretensão descabida escancarada. O ridículo é um momento; o patético é uma constante.

Para haver o ridículo é preciso que a pessoa exiba algo – ou algum comportamento – pretensioso, com intenção de assim se engrandecer. Mas o tiro sai pela culatra, pois a coisa se mostra nada engrandecedora, muito pelo contrário, e a pretensão sem base fica patente.

Aí vem a parte do desamparo: o mau julgamento, o repúdio, o riso que escarnece, a má fama que daí se segue, o abandono da plateia.

Para haver ridículo, portanto, é preciso que o desejo exibicionista esteja presente, somado à soberba e aos meios de ter-se o que exibir, bem como a um público-alvo especialmente crítico. 

Disso resulta uma coisa curiosa: o medo do ridículo é comum nas camadas sociais mais altas e/ou mais educadas; quanto mais tempo de dinheiro e educação, mais riscos de ridículo haverá. Arrivistas e novos-ricos não temem o ridículo, pois ainda não formaram Superego para isso.

Sim, o ridículo pode bem ser uma arma do sadomasoquismo sutil, mas também é causador de um peculiar sintoma de neurose obsessiva: a lembrança constrangedora. Além da ressaca do mico da véspera, ela se dá por flashes de memória, provocados por associações de ideias, em que acontecimentos antigos (alguns, de décadas) fazem a pessoa querer cavar um buraco no chão para ali sumir, de tanta vergonha.

Como todo sintoma neurótico, esse também é muito esquisito…