domingo, 30 de janeiro de 2022

DESEJOS REPRIMIDOS - O AMIGO PERGUNTA

 


“Você diz que o caminho para a felicidade consiste em conhecer os próprios desejos e realizá-los. Mas, e quanto aos desejos reprimidos? Isso se aplica?”

Francisco Daudt: Não… em parte. Acontece que alguns desejos são reprimidos porque são olhados pelo Superego de maneira rudimentar e distorcida, e aí sim, parecem monstruosos e qualificados para a repressão.

Por exemplo: você descobriu em análise que “no fundo, queria matar seu pai”. Daí concluiu que existe um monstro dentro de você, ele tem que ser mantido sobre repressão. Faz todo o sentido, não?

Mas suponha que você arranjou um psicanalista capaz de entender que o desejo em pauta não tem nada de assassino, que há sim um desejo digno e legitimamente seu envolvido na coisa: o desejo de justiça. Você sofreu com as injustiças vindas de seu pai e, por falta de instrumentos, ficou com a reação infantil de vingança, a forma mais primitiva de justiça.

“Ah, se você quer mal a essa pessoa sagrada que te deu tudo na vida, então você é um monstro”, diz o Superego. Pronto: repressão nele!

A partir daí, a questão principal está obscurecida pelo medo do monstro, e os efeitos da repressão vão se construindo (o menino bonzinho que não sabe dizer não, p.ex.).

Quando se descobre o desejo de justiça envolvido, a pessoa pode aprender instrumentos civilizados de corrigir as injustiças: negociação, mediada ou direta, acerto de ponteiros, ou se não der, tomar distância e cuidar da própria vida.

Nessa hora, o desejo reprimido mostra sua face legítima, a de desejo de justiça, e deste modo pode ser realizado.

Resumo da ópera: o desejo reprimido dos neuróticos obsessivos é, afinal, o desejo de justiça.


NARCISISMO

 



Sim, claro, existe a pessoa narcisista que só se interessa por si mesma, se acha o máximo, é um poço de vaidade, não tem um pingo de empatia nem de interesse por ninguém. Essa não vê nenhum problema em si: é perfeita.

Mas também há a tomada por tal tumulto mental, que não lhe sobra espaço para a contemplação de mais nada. Esse narcisismo tem cura.







PSICOLOGIA COGNITIVA E PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Já ouvi você falar bem da psicologia cognitiva. Ela tem alguma relação com a psicanálise?”

Francisco Daudt: Primeiramente, eu vou ressaltar que se trata de psicologia cognitiva, e não daquilo de que se costuma falar, da TCC (terapia cognitivo-comportamental). Cognitiva, sem a comportamental, portanto.

Depois, sim, existe um conceito da psicologia cognitiva que se parece muito com o que é pesquisado em psicanálise: o erro cognitivo que leva à crença disfuncional. Por exemplo, “a masturbação é pecado mortal (erro) e te levará ao inferno pela eternidade (crença)”, um jeito de associar a sexualidade ao sentimento de culpa.

O objetivo, tanto da psicologia cognitiva quanto da psicanálise, é entender como a crença disfuncional foi absorvida, para que a pessoa se livre dela.

A diferença está na complexidade: a psicanálise não afirma que são erros, mas maneiras de ver a vida nas quais você foi envolvido quando criança, e das quais pode discordar, se tiver um olhar crítico sobre elas.

P.ex., suponha que você cresceu num ambiente familiar que dividia o mundo em fodões e merdas, e absorveu essa crença altamente disfuncional, com grande prejuízo para a sua saúde mental e a dos que te cercam. Se você se torna consciente desse conceito, e pode discordar dele por achá-lo injusto, começa aí o seu caminho de cura da doença sadomasoquista mais comum da humanidade.







domingo, 2 de janeiro de 2022

MEDO DO RIDÍCULO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Em que categoria de angústia mora o medo do ridículo?”

Francisco Daudt: Na da angústia de desamparo. É uma forma sutil, mas está lá. 

Antes de mais nada, vamos defini-lo. O ridículo é o sentimento que o desmascaramento da pretensão descabida desperta. Ele é diferente do patético, que é a pretensão descabida escancarada. O ridículo é um momento; o patético é uma constante.

Para haver o ridículo é preciso que a pessoa exiba algo – ou algum comportamento – pretensioso, com intenção de assim se engrandecer. Mas o tiro sai pela culatra, pois a coisa se mostra nada engrandecedora, muito pelo contrário, e a pretensão sem base fica patente.

Aí vem a parte do desamparo: o mau julgamento, o repúdio, o riso que escarnece, a má fama que daí se segue, o abandono da plateia.

Para haver ridículo, portanto, é preciso que o desejo exibicionista esteja presente, somado à soberba e aos meios de ter-se o que exibir, bem como a um público-alvo especialmente crítico. 

Disso resulta uma coisa curiosa: o medo do ridículo é comum nas camadas sociais mais altas e/ou mais educadas; quanto mais tempo de dinheiro e educação, mais riscos de ridículo haverá. Arrivistas e novos-ricos não temem o ridículo, pois ainda não formaram Superego para isso.

Sim, o ridículo pode bem ser uma arma do sadomasoquismo sutil, mas também é causador de um peculiar sintoma de neurose obsessiva: a lembrança constrangedora. Além da ressaca do mico da véspera, ela se dá por flashes de memória, provocados por associações de ideias, em que acontecimentos antigos (alguns, de décadas) fazem a pessoa querer cavar um buraco no chão para ali sumir, de tanta vergonha.

Como todo sintoma neurótico, esse também é muito esquisito…







A COMPLEXIDADE DO CHORO


“Para quem quer se soltar / invento um cais”

A conversa entre ninho e voo; chegada e partida; âncora e viagem; porto e mar; simples, complexo e simples de novo, é uma constante nesse especial dos 50 anos do Clube da Esquina: Milton, nascimento e morte…

Milton se soltando das amarras de seu Parkinson, a conversar com o menino Zé Ibarra, reencarnação de sua voz cristalina de criança, aquela que me deslumbrou em 1967, quando ouvi “Travessia” pela primeira vez.

De quantas camadas é feito um pranto? Da beleza da música, e do impartilhável que ela contém, por certo… mas também da tristeza, da pena, que contempla o tempo que passou para ele e para mim, o efêmero da vida, sua irrelevância e riqueza. 

Se pudesse escolher um momento máximo desse choro, seria o da dimensão sinfônica que a Orquestra de Ouro Preto deu àquela que considero a melhor frase instrumental de Milton, os acordes decrescentes com modulação que iluminam o “Cais”.

Sei que não poderia ter um presente de natal melhor, uma viagem pela delicadeza que me fez esquecer por um momento o ano torpe.

Invento um cais, e la nave va.


 





RECUSA NÃO É INSULTO

 




Um dos maiores problemas na negociação sexual é levar bem a recusa. Há algo em nós que sempre a traduz como juízo de valor (é bem verdade que, às vezes, a outra parte a apresenta como tal).


Mas de fato ela não é. É apenas manifestação de desencontro de desejo: o do outro não se encaixa com o seu. Por exemplo, dois desejos iguais não se encaixam, eles precisam ser complementares.


“A vida é arte do encontro, apesar de haver tanto desencontro pela vida…”

(Vinícius de Moraes)







SUICÍDIO - O AMIGO PERGUNTA




“Como o psicanalista lida com o risco de suicídio de seu cliente?”

Francisco Daudt: Tratando da dor. É preciso ter isso claro: ninguém tem vontade de morrer, o que se tem é vontade de se ver livre de uma dor para qual não se vê outra saída senão a morte.

Isto posto, vamos adiante. Há vários tipos de suicídio; eles vão do mais benigno e aceitável, a eutanásia, ao mais maligno e irritante, o suicídio de vingança (quando se quer matar alguém pelo sentimento de culpa).

Um australiano de 104 anos foi para a Basiléia, Suíça, para pôr fim à sua exaustão de viver, através de um instrumento legal e extremamente civilizado que lá existe, o suicídio assistido. Eutanásia se traduz do grego como “boa morte”.

O adolescente rebelde, ou o apaixonado sem perspectivas, se seduzem pela ideia de que sua morte será sua vingança contra o outro que ele ama/odeia, a quem se sente aprisionado. É também uma busca de libertação da dor, mas de difícil compaixão. No samba-diálogo “Amigo é pra essas coisas” (Aldir Blanc), um diz, “Que bom se eu morresse / talvez Rosa sofresse”, e o outro dá a resposta definitiva: “vá atrás…”

Entre esses extremos, existem as tentativas de suicídio – que são na maioria das vezes pedidos de socorro. Num estágio mais brando/precoce estão as lesões que os “cutters” se fazem, adolescentes que se cortam, pois não têm outros meios de exprimir suas dores.

Por isso volto ao início: o foco do psicanalista deve ser sempre a dor. Avaliá-la, diagnosticá-la, aliviá-la, resolvê-la. Muitas dores são – em parte – fruto da imaginação do cliente: é preciso olhar o monstro, para saber seu tamanho real. Crianças imaginam um bicho-papão debaixo da cama, mas não se atrevem a dar uma espiada, e aí… não há nada mais maravilhoso nem nada tão terrível quanto o imaginado: é onde mora o Superego, vale dizer, o Ideal e o Mortal.

A posição do psicanalista pode ser crítica: quando alguém está para pular da ponte, não tem conversa: primeiro é preciso segurar, senão não haverá o que conversar. Já pedi seis meses ao cliente: “Já que você vai morrer mesmo, que diferença faz? Me dê esse tempo, para eu ver se há saídas possíveis”. E havia.

Mas é preciso ter em mente que há doenças psíquicas tão terminais quanto um câncer. Há dores incontornáveis. E há fim da vida: vivemos um tempo em que a morte foi medicalizada, ninguém mais morre em casa, quase toda morte é escondida num CTI, num hospital, como se morrer fosse uma obscenidade.

Num belo movimento contrário a essa tendência estão os atuais cuidados paliativos. Diante da falta de perspectivas, eles visam à boa morte, a morte sem dor e com dignidade. Às vezes, é o que resta para um psicanalista fazer…