domingo, 2 de janeiro de 2022

MEDO DO RIDÍCULO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Em que categoria de angústia mora o medo do ridículo?”

Francisco Daudt: Na da angústia de desamparo. É uma forma sutil, mas está lá. 

Antes de mais nada, vamos defini-lo. O ridículo é o sentimento que o desmascaramento da pretensão descabida desperta. Ele é diferente do patético, que é a pretensão descabida escancarada. O ridículo é um momento; o patético é uma constante.

Para haver o ridículo é preciso que a pessoa exiba algo – ou algum comportamento – pretensioso, com intenção de assim se engrandecer. Mas o tiro sai pela culatra, pois a coisa se mostra nada engrandecedora, muito pelo contrário, e a pretensão sem base fica patente.

Aí vem a parte do desamparo: o mau julgamento, o repúdio, o riso que escarnece, a má fama que daí se segue, o abandono da plateia.

Para haver ridículo, portanto, é preciso que o desejo exibicionista esteja presente, somado à soberba e aos meios de ter-se o que exibir, bem como a um público-alvo especialmente crítico. 

Disso resulta uma coisa curiosa: o medo do ridículo é comum nas camadas sociais mais altas e/ou mais educadas; quanto mais tempo de dinheiro e educação, mais riscos de ridículo haverá. Arrivistas e novos-ricos não temem o ridículo, pois ainda não formaram Superego para isso.

Sim, o ridículo pode bem ser uma arma do sadomasoquismo sutil, mas também é causador de um peculiar sintoma de neurose obsessiva: a lembrança constrangedora. Além da ressaca do mico da véspera, ela se dá por flashes de memória, provocados por associações de ideias, em que acontecimentos antigos (alguns, de décadas) fazem a pessoa querer cavar um buraco no chão para ali sumir, de tanta vergonha.

Como todo sintoma neurótico, esse também é muito esquisito…







A COMPLEXIDADE DO CHORO


“Para quem quer se soltar / invento um cais”

A conversa entre ninho e voo; chegada e partida; âncora e viagem; porto e mar; simples, complexo e simples de novo, é uma constante nesse especial dos 50 anos do Clube da Esquina: Milton, nascimento e morte…

Milton se soltando das amarras de seu Parkinson, a conversar com o menino Zé Ibarra, reencarnação de sua voz cristalina de criança, aquela que me deslumbrou em 1967, quando ouvi “Travessia” pela primeira vez.

De quantas camadas é feito um pranto? Da beleza da música, e do impartilhável que ela contém, por certo… mas também da tristeza, da pena, que contempla o tempo que passou para ele e para mim, o efêmero da vida, sua irrelevância e riqueza. 

Se pudesse escolher um momento máximo desse choro, seria o da dimensão sinfônica que a Orquestra de Ouro Preto deu àquela que considero a melhor frase instrumental de Milton, os acordes decrescentes com modulação que iluminam o “Cais”.

Sei que não poderia ter um presente de natal melhor, uma viagem pela delicadeza que me fez esquecer por um momento o ano torpe.

Invento um cais, e la nave va.


 





RECUSA NÃO É INSULTO

 




Um dos maiores problemas na negociação sexual é levar bem a recusa. Há algo em nós que sempre a traduz como juízo de valor (é bem verdade que, às vezes, a outra parte a apresenta como tal).


Mas de fato ela não é. É apenas manifestação de desencontro de desejo: o do outro não se encaixa com o seu. Por exemplo, dois desejos iguais não se encaixam, eles precisam ser complementares.


“A vida é arte do encontro, apesar de haver tanto desencontro pela vida…”

(Vinícius de Moraes)







SUICÍDIO - O AMIGO PERGUNTA




“Como o psicanalista lida com o risco de suicídio de seu cliente?”

Francisco Daudt: Tratando da dor. É preciso ter isso claro: ninguém tem vontade de morrer, o que se tem é vontade de se ver livre de uma dor para qual não se vê outra saída senão a morte.

Isto posto, vamos adiante. Há vários tipos de suicídio; eles vão do mais benigno e aceitável, a eutanásia, ao mais maligno e irritante, o suicídio de vingança (quando se quer matar alguém pelo sentimento de culpa).

Um australiano de 104 anos foi para a Basiléia, Suíça, para pôr fim à sua exaustão de viver, através de um instrumento legal e extremamente civilizado que lá existe, o suicídio assistido. Eutanásia se traduz do grego como “boa morte”.

O adolescente rebelde, ou o apaixonado sem perspectivas, se seduzem pela ideia de que sua morte será sua vingança contra o outro que ele ama/odeia, a quem se sente aprisionado. É também uma busca de libertação da dor, mas de difícil compaixão. No samba-diálogo “Amigo é pra essas coisas” (Aldir Blanc), um diz, “Que bom se eu morresse / talvez Rosa sofresse”, e o outro dá a resposta definitiva: “vá atrás…”

Entre esses extremos, existem as tentativas de suicídio – que são na maioria das vezes pedidos de socorro. Num estágio mais brando/precoce estão as lesões que os “cutters” se fazem, adolescentes que se cortam, pois não têm outros meios de exprimir suas dores.

Por isso volto ao início: o foco do psicanalista deve ser sempre a dor. Avaliá-la, diagnosticá-la, aliviá-la, resolvê-la. Muitas dores são – em parte – fruto da imaginação do cliente: é preciso olhar o monstro, para saber seu tamanho real. Crianças imaginam um bicho-papão debaixo da cama, mas não se atrevem a dar uma espiada, e aí… não há nada mais maravilhoso nem nada tão terrível quanto o imaginado: é onde mora o Superego, vale dizer, o Ideal e o Mortal.

A posição do psicanalista pode ser crítica: quando alguém está para pular da ponte, não tem conversa: primeiro é preciso segurar, senão não haverá o que conversar. Já pedi seis meses ao cliente: “Já que você vai morrer mesmo, que diferença faz? Me dê esse tempo, para eu ver se há saídas possíveis”. E havia.

Mas é preciso ter em mente que há doenças psíquicas tão terminais quanto um câncer. Há dores incontornáveis. E há fim da vida: vivemos um tempo em que a morte foi medicalizada, ninguém mais morre em casa, quase toda morte é escondida num CTI, num hospital, como se morrer fosse uma obscenidade.

Num belo movimento contrário a essa tendência estão os atuais cuidados paliativos. Diante da falta de perspectivas, eles visam à boa morte, a morte sem dor e com dignidade. Às vezes, é o que resta para um psicanalista fazer… 


 





IDENTIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 




“Como nos tornamos o que somos? Ou melhor, a pessoa que acreditamos ser?”

Francisco Daudt: Através de processos de identificação. O curioso é que “identificação” é “tornar-se idêntico, tornar-se igual”, um caminho que começa com imitação e termina (termina?) num ser único, singular. O falar português, que é parte da minha identidade, começou comigo imitando o que ouvia, mesmo que eu já não me lembre mais disso.

“Quando eu crescer, quero ser igual a você” é uma linda frase por causa do verbo “querer”. É ele que distingue a identificação por gosto da identificação por imposição. O que caracteriza esta última é o “ter que”: “você tem que ser macho, tem que ser isso ou aquilo!”

A identidade construída pelos modelos de identificação por gosto é a que mais dá paz interna. Mas é preciso que a pessoa esteja acostumada a se consultar: “eu quero isso?; ou “eu tenho que querer isso”? Esse respeito consigo mesmo forma uma pessoa com autoestima e serenidade: é o que queremos para nossos filhos, é o que queremos para nós. Ela é fruto de escolha, ela é a cara da democracia mental. Os fragmentos dessa colcha de retalhos de coisas que nos caem bem formarão um tecido único, não mais idêntico a nada nem a ninguém: um indivíduo.

No caso oposto, a identificação por imposição causa perturbação incessante, causa guerra interna e externa. A pessoa briga consigo mesma sem saber porquê, briga com os outros para forçá-los a se tornarem o que ela pensa ser o certo (ela passa adiante o processo que sofreu).

Ela não experimentou ser levada em consideração, por isso tenta repetir como tirana o domínio de que foi vítima. É a cara da tirania, não importa se política, familiar ou religiosa: seja igual a nós, e morte aos infiéis.

Como visto, essa tirania pode ser exercida pelos pais, mas não só. Sua turma de adolescentes pode bem operá-la para você se tornar homogêneo.

Atualmente, as mídias sociais se tornaram o principal instrumento de construção identitária por imposição: pressionam, patrulhando ideologias e comportamentos, regulando pensamentos e maneiras de falar através do sentimento de culpa de te igualar a antimodelos: “ou você é como nós, ou você é… (e aí vem uma série de adjetivos monstruosos)”.

Sim, é a eterna luta da espécie: a democracia é uma possibilidade construída; a tirania é nossa tendência natural enraizada. Para que lado tenderemos? Para o indivíduo, que começou imitando e se tornou autor? Ou para a massa homogênea, que se submete à imposição por medo?







VÍCIOS SADOMASOQUISTAS - O AMIGO PERGUNTA

 



Marcelo Albiero de Faria: “De onde vem o amor de certas pessoas pelo 'barraco' (no sentido de briga, escândalo)?”

Francisco Daudt: Se você está falando daqueles que entram compulsivamente em brigas, bate-bocas, tretas, confrontos com variados graus de violência verbal – deixemos a física de lado, por enquanto – em que os adjetivos humilhantes imperam sobre os substantivos argumentativos, bem, a principal causa é o vício sadomasoquista do tipo fodão-merda.

Novamente, é preciso separar hábito de vício. Nem toda altercação implica vício. O vício é o ato compulsivo, repetitivo, alugante das ideias, que dá satisfação imediata mas causa dano tardio aos interesses principais da pessoa, ou dos outros, ou de ambos.

Faço um reparo ao termo “amor”, usado na pergunta. No caso, seria preferível “atração”, ou “compulsão”. Amor é sentimento complexo, construído, consciente; a atração e a compulsão, mais simplórios, primitivos, imediatistas.

O vício fodão-merda espelha para o mundo a relação sadomasoquista que temos com nosso Superego: ele, poderoso, idealizado, fodão, está sempre a nos cobrar e criticar, dizendo que, se não estamos à sua altura, então somos uns merdas. Isso é tão doloroso que tendemos a terceirizar essa briga para nossos contatos externos, a posar de fodão para os outros, fazendo com que se sintam uns merdas. Nessa hora, vivemos um alívio momentâneo de nos parecer com o Superego, de nos identificar com ele, de nos ver como ideais.

Mas já que você falou de amor, devo constatar com tristeza o quão comum é que as relações de casais se baseiem nesse vício. O maltrato fodão-merda é um laço, muitas vezes mais poderoso que o amor, para manter longos casamentos.

Com a agravante (ou seria a atenuante?) de poder funcionar como artifício fetichista para despertar tesão. Ouvi certa vez de um cliente: “Ela me humilha o quanto pode, mas isso me dá tesão, eu me vingo depois, fazendo ela gemer debaixo de mim. E ela gosta!”

Ih, esse casamento tem tudo para durar…







O SUPEREGO COMO PARTE DO PROBLEMA 2: CONSEQUÊNCIAS CLÍNICAS - O AMIGO PERGUNTA




“Se você diz que o Superego faz parte das doenças, como então deve agir o psicanalista em sua prática clínica?”

Francisco Daudt: É curioso, eu poderia fazer uma lista de atitudes que decorrem dessa percepção do Superego como parte do problema, mas… se eu o fizesse, estaria estabelecendo ideais grandiosos, juízos de valor sobre o analista, e sutilmente ou não, impondo regras para sua prática.

Ou seja, estaria eu mesmo sendo superegóico, fazendo o jogo do Superego.

Em vez disso, prefiro lembrar do valor da análise em que o analista é cliente (melhor ainda se for autoanálise), para sua boa formação.

Se ele entender bem seu próprio Superego, se ele for capaz de diminuir a relação sadomasoquista que tem com seu Superego, se disso resultar uma postura clínica de humildade científica que o tire do pedestal, se ele passar a ver sua prática clínica como uma prestação de serviços de saúde mental a seus clientes, com isso virá sua progressiva mudança de atitude frente a seus clientes.

É o que basta para começar a desinvestir do vício fodão-merda (em que o analista se sente fodão e o cliente, merda) para investir na virtude de se buscar a cura – a de seus clientes…