domingo, 2 de janeiro de 2022

IDENTIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 




“Como nos tornamos o que somos? Ou melhor, a pessoa que acreditamos ser?”

Francisco Daudt: Através de processos de identificação. O curioso é que “identificação” é “tornar-se idêntico, tornar-se igual”, um caminho que começa com imitação e termina (termina?) num ser único, singular. O falar português, que é parte da minha identidade, começou comigo imitando o que ouvia, mesmo que eu já não me lembre mais disso.

“Quando eu crescer, quero ser igual a você” é uma linda frase por causa do verbo “querer”. É ele que distingue a identificação por gosto da identificação por imposição. O que caracteriza esta última é o “ter que”: “você tem que ser macho, tem que ser isso ou aquilo!”

A identidade construída pelos modelos de identificação por gosto é a que mais dá paz interna. Mas é preciso que a pessoa esteja acostumada a se consultar: “eu quero isso?; ou “eu tenho que querer isso”? Esse respeito consigo mesmo forma uma pessoa com autoestima e serenidade: é o que queremos para nossos filhos, é o que queremos para nós. Ela é fruto de escolha, ela é a cara da democracia mental. Os fragmentos dessa colcha de retalhos de coisas que nos caem bem formarão um tecido único, não mais idêntico a nada nem a ninguém: um indivíduo.

No caso oposto, a identificação por imposição causa perturbação incessante, causa guerra interna e externa. A pessoa briga consigo mesma sem saber porquê, briga com os outros para forçá-los a se tornarem o que ela pensa ser o certo (ela passa adiante o processo que sofreu).

Ela não experimentou ser levada em consideração, por isso tenta repetir como tirana o domínio de que foi vítima. É a cara da tirania, não importa se política, familiar ou religiosa: seja igual a nós, e morte aos infiéis.

Como visto, essa tirania pode ser exercida pelos pais, mas não só. Sua turma de adolescentes pode bem operá-la para você se tornar homogêneo.

Atualmente, as mídias sociais se tornaram o principal instrumento de construção identitária por imposição: pressionam, patrulhando ideologias e comportamentos, regulando pensamentos e maneiras de falar através do sentimento de culpa de te igualar a antimodelos: “ou você é como nós, ou você é… (e aí vem uma série de adjetivos monstruosos)”.

Sim, é a eterna luta da espécie: a democracia é uma possibilidade construída; a tirania é nossa tendência natural enraizada. Para que lado tenderemos? Para o indivíduo, que começou imitando e se tornou autor? Ou para a massa homogênea, que se submete à imposição por medo?







VÍCIOS SADOMASOQUISTAS - O AMIGO PERGUNTA

 



Marcelo Albiero de Faria: “De onde vem o amor de certas pessoas pelo 'barraco' (no sentido de briga, escândalo)?”

Francisco Daudt: Se você está falando daqueles que entram compulsivamente em brigas, bate-bocas, tretas, confrontos com variados graus de violência verbal – deixemos a física de lado, por enquanto – em que os adjetivos humilhantes imperam sobre os substantivos argumentativos, bem, a principal causa é o vício sadomasoquista do tipo fodão-merda.

Novamente, é preciso separar hábito de vício. Nem toda altercação implica vício. O vício é o ato compulsivo, repetitivo, alugante das ideias, que dá satisfação imediata mas causa dano tardio aos interesses principais da pessoa, ou dos outros, ou de ambos.

Faço um reparo ao termo “amor”, usado na pergunta. No caso, seria preferível “atração”, ou “compulsão”. Amor é sentimento complexo, construído, consciente; a atração e a compulsão, mais simplórios, primitivos, imediatistas.

O vício fodão-merda espelha para o mundo a relação sadomasoquista que temos com nosso Superego: ele, poderoso, idealizado, fodão, está sempre a nos cobrar e criticar, dizendo que, se não estamos à sua altura, então somos uns merdas. Isso é tão doloroso que tendemos a terceirizar essa briga para nossos contatos externos, a posar de fodão para os outros, fazendo com que se sintam uns merdas. Nessa hora, vivemos um alívio momentâneo de nos parecer com o Superego, de nos identificar com ele, de nos ver como ideais.

Mas já que você falou de amor, devo constatar com tristeza o quão comum é que as relações de casais se baseiem nesse vício. O maltrato fodão-merda é um laço, muitas vezes mais poderoso que o amor, para manter longos casamentos.

Com a agravante (ou seria a atenuante?) de poder funcionar como artifício fetichista para despertar tesão. Ouvi certa vez de um cliente: “Ela me humilha o quanto pode, mas isso me dá tesão, eu me vingo depois, fazendo ela gemer debaixo de mim. E ela gosta!”

Ih, esse casamento tem tudo para durar…







O SUPEREGO COMO PARTE DO PROBLEMA 2: CONSEQUÊNCIAS CLÍNICAS - O AMIGO PERGUNTA




“Se você diz que o Superego faz parte das doenças, como então deve agir o psicanalista em sua prática clínica?”

Francisco Daudt: É curioso, eu poderia fazer uma lista de atitudes que decorrem dessa percepção do Superego como parte do problema, mas… se eu o fizesse, estaria estabelecendo ideais grandiosos, juízos de valor sobre o analista, e sutilmente ou não, impondo regras para sua prática.

Ou seja, estaria eu mesmo sendo superegóico, fazendo o jogo do Superego.

Em vez disso, prefiro lembrar do valor da análise em que o analista é cliente (melhor ainda se for autoanálise), para sua boa formação.

Se ele entender bem seu próprio Superego, se ele for capaz de diminuir a relação sadomasoquista que tem com seu Superego, se disso resultar uma postura clínica de humildade científica que o tire do pedestal, se ele passar a ver sua prática clínica como uma prestação de serviços de saúde mental a seus clientes, com isso virá sua progressiva mudança de atitude frente a seus clientes.

É o que basta para começar a desinvestir do vício fodão-merda (em que o analista se sente fodão e o cliente, merda) para investir na virtude de se buscar a cura – a de seus clientes… 







 

AUTOESTIMA - O AMIGO PERGUNTA




Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

Francisco Daudt: É uma relação fortemente... negativa. Quanto mais cruel o Superego, mais a gente briga com ele, e isso quer dizer ora se submeter às suas críticas (e se achar um merda), ora se identificar com ele e criticar os outros (e posar de fodão, dizendo que merda são os outros).

Só que a doença, o vício fodão-merda passa ao largo, passa longe da autoestima. Quando a pessoa se sente um merda, claro que a autoestima está arruinada. Mas quando ela posa de fodona, também!

Um fodão é um inseguro; ele precisa de afirmação constante para não se sentir um merda. Isso não é autoestima elevada.

O que nos leva a perguntar: afinal, o que é autoestima?

Estimar-se é estar em paz consigo mesmo; é estar “na sua”. Tem a ver com serenidade, não com briga. Não é vaidade nem orgulho, é sim um estado de desimportância que se importa, consigo e com os outros. Uma autoavaliação de que você “é bom o bastante”, um sentimento que não ocupa a sua mente, muito menos a aluga; ao contrário, deixa-a livre para outros assuntos que te interessem.

A autoestima é como a saúde do seu pé: você confia nele, e ele nem está te chamando a atenção, só pensou nele agora porque eu falei.

É claro que isso não funciona assim o tempo todo, isso é um retrato do ótimo; na verdade, é mais uma meta a se ambicionar que uma situação a que se chegue.

E para se chegar nela, é preciso sim questionar o poder do Superego; entender que ele é um juiz tirano, um caga-regras que tem você como primeira vítima, mas não a única, pois você pode se defender dele criticando os outros.

Infelizmente, isso só faz fortalecê-lo.







 

SCHADENFREUDE

 



Palavra alemã que, em bom português, significa “alegria de ver o outro se fodendo”. Ela traduz o sentimento universal da inveja, principalmente das pessoas que usam seu sucesso para posar de metidas.

Quando traduzida em qualquer outra língua, não produz estranheza. A reação costuma ser, “ah, eles têm uma palavra pra isso? Legal!”








DRAMA: COMBUSTÍVEL DO SUPEREGO

 



Dez metros separam a casa da minha irmã da janela do meu consultório. Ela veio me perguntar: “Eu ouço você às gargalhadas com os clientes. Eles te pagam pra isso?” Respondi: “Pagam, e pagam bem. Você sabe, puta que goza ganha mais…”

Acho que minha aversão ao drama na psicanálise veio das histórias de amigos que diziam, “Hoje a análise foi fundo, cara! Saí aos prantos, saí de rastos…” Como uma Scarlet O’Hara, jurei para mim mesmo que nenhum cliente meu sairia da sessão pior do que entrou.

Passei a olhar o drama com desconfiança, não apenas na prática clínica, mas na vida em geral. O senso de humor sempre me pareceu mais atraente. Quando entendi em mim o sadomasoquismo fodão-merda, também fui deixando de lado o sarcasmo, a ironia e o deboche, pois os efeitos humilhantes de se rir de alguém também são dramáticos. Prefiro rir junto.

Finalmente entendi que o drama é o grande combustível do Superego. Essa mistura de “Juiz Cruel” com “Ideal de Perfeição” que mora em nossa cabeça precisa do drama para se fazer crível. O drama produz um clima de urgência, de ameaça, para nos chantagear com a angústia de desamparo. Quer algo mais dramático do que a ideia de que “ninguém mais vai gostar de mim”?

O Superego quer que você se leve a sério, e que leve tudo a sério, caso contrário ele não impera. Sorry, mas esse drama aí não sou eu…







DEMOCRACIA E ANTIBIÓTICOS – REMÉDIOS ANTINATURAIS

 



A cliente perguntou ao médico se, em vez do antibiótico receitado, ele não poderia prescrever-lhe alguma coisa mais natural.

Ele respondeu: “Minha senhora, natural é o micróbio. Não existe nada mais antinatural que o antibiótico, que significa ‘contra a vida’. Mas é contra a vida da bactéria, e a favor da sua”.

De fato, grande parte da luta humana consiste em defender-se contra a natureza. Antinaturais são a geladeira e o ar-condicionado, por exemplo.

Nesse processo, é preciso conhecer bem a natureza para saber quando ela nos é favorável e quando opera contra nós.

Quem admira a democracia precisa saber que ela é tão antinatural quanto o antibiótico. Natural mesmo é a tirania. A democracia é uma construção trabalhosa e complexa, sempre em ameaça. A tirania é simplória e imediatista, vive ao alcance das mãos; como qualquer vício, traz satisfação imediata e danos tardios.

O desejo de domínio está tão arraigado em nossa natureza que, mesmo quando alguém é submisso no trabalho, busca ser tirano em casa. Ou um grupo/povo que foi historicamente oprimido, quando se revolta, produz uma reviravolta: torna-se de oprimido em opressor. A essa reviravolta dá-se o nome de “revolução”.

Isso aconteceu, por exemplo, nas revoluções francesa e bolchevique. Os oprimidos, na última, buscavam declaradamente uma nova tirania: a ditadura do proletariado (sempre dirigida por um ex-proletário, na melhor das hipóteses).

Isso acontece dentro de nossas casas, quando nossos filhos, tornados poderosos pela nossa culpa de opressores, transformam-se em tiranos domésticos.

Isso acontece dentro de nossas cabeças, quando nós (o Ego), de um lado, oprimidos pelo Superego e sua moral impositiva e tirânica do senso comum; e do outro, seduzidos pela promessa do Id de ter prazeres infindáveis, nos rebelamos na transgressão… e passamos a ser dominados pelo vício e pelo imediatismo. É o Superego nos comandando pelo avesso.

Quem quiser sair desse binarismo, quem quiser um regime interno de respeito e construção (dentro da cabeça, do trabalho, da sociedade, da política), quem prezar a democracia, precisa saber de nossa “natural” tentação tirânica.