“Você acha que acrescentou alguma coisa às teorias psicanalíticas que já existem?”
Francisco Daudt: Creio que sim. Espero ser refutado, que alguém venha me mostrar artigos em que minha hipótese já tenha sido descrita. Mas, como em 45 anos de psicanálise clínica nunca li ou ouvi nada de parecido, tenho a impressão de que, sim, é algo novo. Não apenas novo, mas crucial no jeito de se entenderem as doenças psíquicas e na maneira de se criar uma estratégia de tratamento delas.
Trata-se de uma nova maneira de ver o Superego. Há uma crença antiga, seja no senso comum, seja na psicanálise, de que o Superego é necessário para a ética, para os processos civilizatórios do indivíduo, para ele ser correto, para eliminação de suas doenças psíquicas e de seus vícios. “Quem não tem Superego é psicopata, é serial killer, é preciso sentir culpa para se andar na linha!”, seria o resumo desse pensamento, dessa crença.
Para questioná-lo, é preciso entender o que ele é e como funciona. O Superego é um software cultural construído em cima de um natural, que vem pela genética. O natural é um programa de sobrevivência que se liga a partir dos dois anos de idade: medos. Medos herdados que vêm nos salvando a vida nos últimos 70 mil anos: escuro, altura, confinamento, cobra, grandes répteis, grandes insetos voadores, e um último – o mais importante deles – que será base para a construção dos medos culturais embutidos no Superego, o medo do desamparo.
A criança de dois anos tem medo de sair de perto dos pais, se está em lugar estranho. Mas já está pronta a sofisticar esse medo: que coisas ela não pode fazer, pois seus pais não gostam e ela corre o risco de ser desamparada por eles? Quais desejos seus a põem em conflito com a autoridade que a ampara? “Ah, mas ela pode ter medo de apanhar, e não de ser desamparada”. O medo do castigo físico não é tão grave quanto o medo que vem junto: “eles não gostam mais de mim”.
Freud enunciou esses medos como “ameaça de castração”, mas se isso fazia sentido na época dele – eu sou tão velho que fui ameaçado de castração na infância, por um tio sádico –, hoje não faz mais. Já a ameaça de desamparo…
Mais tarde, a ameaça de desamparo “passa pra dentro”: não se sente mais aquela coisa de alguém falando de fora. Não, a criança se antecipa e passa a se vigiar: se, motivada por seus desejos, faz algo de impróprio ou inaceitável pela cultura, sente-se culpada, envergonhada, angustiada, atormentada. As vozes da cultura/pais já passaram para dentro. Já é o Superego em ação.
Essa guerra se estenderá pela vida afora. Há dois grupos de desejos “feios”, proibidos, inaceitáveis pela cultura/Superego: os derivados do sexo e os derivados da raiva. Da briga entre esses desejos e o Superego surgirão os sintomas de neuroses e de vícios, frisando que foi a briga que distorceu esses desejos e os tornou mais inaceitáveis ainda.
São essas as doenças o objeto de investigação e tratamento pela psicanálise.
Uma segunda face do Superego é a construção imaginada de um Ideal a que devemos nos modelar. Essa, curiosamente, não tem a ver com a sobrevivência do indivíduo, mas sim com a sobrevivência da espécie, o impulso sexual.
Ela parte de uma lógica inconsciente: se formos/parecermos perfeitos, não apenas escaparemos da crítica, seremos amados. A crítica do Superego nos faz sentir uns merdas; parecer/ser Ideal nos faz sentir fodões. E o fodão parece ter mais chances de acasalamento, parece aumentar nosso cacife sexual.
E aqui estamos nós: aprisionados entre dois fogos de uma guerra interna. Nosso Eu (Ego) tendo que atender medos e ambições, ambos impossíveis de solucionar, em permanente aluguel mental, sem paz para reflexão, condenado a reagir, tendo que achar um meio de realizar nossos desejos. O meio mais costumeiro é a transgressão, quando dizemos “foda-se” ao Superego, e com a consequente ressaca moral, culpa e angústia por tê-lo desafiado.
O que entendi é que nossa relação com o Superego é de crueldade, vingança, submissão, obediência e rebeldia, ressentimento e glorificação. Ou seja, uma relação viciosa de sadomasoquismo e de domínio/submissão.
Nossa relação com o Superego é o pai e a mãe de nossos vícios e neuroses.
Freud uma vez disse: “onde esteve o Id, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos trazer para nosso entendimento (para nós, para o nosso Eu, para o Ego) os processos e desejos inconscientes que nos manipulam a partir desse “Algo em nós” (o Id).
Pois eu digo – e esta é a novidade que proponho –, “onde esteve o Superego, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos entender como as leis de nosso Superego foram construídas. As problemáticas, tolas ou injustas (“a masturbação é pecado e vai te mandar para o inferno”) serão canceladas, pois o Ego discorda delas. As interessantes e apreciadas (“você tem que ser honesto”) serão trazidas para mim, para meu Eu, para o Ego, e por ele apropriadas: eu não “tenho” que ser honesto; eu acho bom ser honesto, eu “quero” ser honesto. A honestidade será um valor meu, nunca uma tarefa imposta por uma instância “acima de mim” (“das Über-ich”, o Superego).
A meta da psicanálise será, portanto, me tornar sujeito de meus verbos, dono de meus valores, gerente dos meus desejos. Ela investigará como o complexo de Édipo (como fui enrolado pelos problemas de meus pais, que não tinham nada a ver comigo) me levou a ter minha cabeça tumultuada por essa guerra interna.
Através dessa investigação, saberei como meus desejos foram distorcidos pela guerra, como eles podem ser (expurgada a distorção), como meu Superego foi formado, como ele me manipula e me leva a exteriorizar a relação que tenho com ele (trazendo a guerra fodão/merda para minha relação com o mundo). Da consciência virá o desejo de justiça – esta é a maior força da psicanálise – e dele, o desmonte da manipulação, para que eu – o Ego – esteja na gerência da minha vida.
Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam: eis aí a função da psicanálise.