domingo, 2 de janeiro de 2022

AUTOESTIMA - O AMIGO PERGUNTA




Clô Franklin: “Qual é a relação entre autoestima e o Superego? É possível ter autoestima quando se tem um Superego cruel?

Francisco Daudt: É uma relação fortemente... negativa. Quanto mais cruel o Superego, mais a gente briga com ele, e isso quer dizer ora se submeter às suas críticas (e se achar um merda), ora se identificar com ele e criticar os outros (e posar de fodão, dizendo que merda são os outros).

Só que a doença, o vício fodão-merda passa ao largo, passa longe da autoestima. Quando a pessoa se sente um merda, claro que a autoestima está arruinada. Mas quando ela posa de fodona, também!

Um fodão é um inseguro; ele precisa de afirmação constante para não se sentir um merda. Isso não é autoestima elevada.

O que nos leva a perguntar: afinal, o que é autoestima?

Estimar-se é estar em paz consigo mesmo; é estar “na sua”. Tem a ver com serenidade, não com briga. Não é vaidade nem orgulho, é sim um estado de desimportância que se importa, consigo e com os outros. Uma autoavaliação de que você “é bom o bastante”, um sentimento que não ocupa a sua mente, muito menos a aluga; ao contrário, deixa-a livre para outros assuntos que te interessem.

A autoestima é como a saúde do seu pé: você confia nele, e ele nem está te chamando a atenção, só pensou nele agora porque eu falei.

É claro que isso não funciona assim o tempo todo, isso é um retrato do ótimo; na verdade, é mais uma meta a se ambicionar que uma situação a que se chegue.

E para se chegar nela, é preciso sim questionar o poder do Superego; entender que ele é um juiz tirano, um caga-regras que tem você como primeira vítima, mas não a única, pois você pode se defender dele criticando os outros.

Infelizmente, isso só faz fortalecê-lo.







 

SCHADENFREUDE

 



Palavra alemã que, em bom português, significa “alegria de ver o outro se fodendo”. Ela traduz o sentimento universal da inveja, principalmente das pessoas que usam seu sucesso para posar de metidas.

Quando traduzida em qualquer outra língua, não produz estranheza. A reação costuma ser, “ah, eles têm uma palavra pra isso? Legal!”








DRAMA: COMBUSTÍVEL DO SUPEREGO

 



Dez metros separam a casa da minha irmã da janela do meu consultório. Ela veio me perguntar: “Eu ouço você às gargalhadas com os clientes. Eles te pagam pra isso?” Respondi: “Pagam, e pagam bem. Você sabe, puta que goza ganha mais…”

Acho que minha aversão ao drama na psicanálise veio das histórias de amigos que diziam, “Hoje a análise foi fundo, cara! Saí aos prantos, saí de rastos…” Como uma Scarlet O’Hara, jurei para mim mesmo que nenhum cliente meu sairia da sessão pior do que entrou.

Passei a olhar o drama com desconfiança, não apenas na prática clínica, mas na vida em geral. O senso de humor sempre me pareceu mais atraente. Quando entendi em mim o sadomasoquismo fodão-merda, também fui deixando de lado o sarcasmo, a ironia e o deboche, pois os efeitos humilhantes de se rir de alguém também são dramáticos. Prefiro rir junto.

Finalmente entendi que o drama é o grande combustível do Superego. Essa mistura de “Juiz Cruel” com “Ideal de Perfeição” que mora em nossa cabeça precisa do drama para se fazer crível. O drama produz um clima de urgência, de ameaça, para nos chantagear com a angústia de desamparo. Quer algo mais dramático do que a ideia de que “ninguém mais vai gostar de mim”?

O Superego quer que você se leve a sério, e que leve tudo a sério, caso contrário ele não impera. Sorry, mas esse drama aí não sou eu…







DEMOCRACIA E ANTIBIÓTICOS – REMÉDIOS ANTINATURAIS

 



A cliente perguntou ao médico se, em vez do antibiótico receitado, ele não poderia prescrever-lhe alguma coisa mais natural.

Ele respondeu: “Minha senhora, natural é o micróbio. Não existe nada mais antinatural que o antibiótico, que significa ‘contra a vida’. Mas é contra a vida da bactéria, e a favor da sua”.

De fato, grande parte da luta humana consiste em defender-se contra a natureza. Antinaturais são a geladeira e o ar-condicionado, por exemplo.

Nesse processo, é preciso conhecer bem a natureza para saber quando ela nos é favorável e quando opera contra nós.

Quem admira a democracia precisa saber que ela é tão antinatural quanto o antibiótico. Natural mesmo é a tirania. A democracia é uma construção trabalhosa e complexa, sempre em ameaça. A tirania é simplória e imediatista, vive ao alcance das mãos; como qualquer vício, traz satisfação imediata e danos tardios.

O desejo de domínio está tão arraigado em nossa natureza que, mesmo quando alguém é submisso no trabalho, busca ser tirano em casa. Ou um grupo/povo que foi historicamente oprimido, quando se revolta, produz uma reviravolta: torna-se de oprimido em opressor. A essa reviravolta dá-se o nome de “revolução”.

Isso aconteceu, por exemplo, nas revoluções francesa e bolchevique. Os oprimidos, na última, buscavam declaradamente uma nova tirania: a ditadura do proletariado (sempre dirigida por um ex-proletário, na melhor das hipóteses).

Isso acontece dentro de nossas casas, quando nossos filhos, tornados poderosos pela nossa culpa de opressores, transformam-se em tiranos domésticos.

Isso acontece dentro de nossas cabeças, quando nós (o Ego), de um lado, oprimidos pelo Superego e sua moral impositiva e tirânica do senso comum; e do outro, seduzidos pela promessa do Id de ter prazeres infindáveis, nos rebelamos na transgressão… e passamos a ser dominados pelo vício e pelo imediatismo. É o Superego nos comandando pelo avesso.

Quem quiser sair desse binarismo, quem quiser um regime interno de respeito e construção (dentro da cabeça, do trabalho, da sociedade, da política), quem prezar a democracia, precisa saber de nossa “natural” tentação tirânica. 







O SUPEREGO COMO PARTE DO PROBLEMA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Você acha que acrescentou alguma coisa às teorias psicanalíticas que já existem?”

Francisco Daudt: Creio que sim. Espero ser refutado, que alguém venha me mostrar artigos em que minha hipótese já tenha sido descrita. Mas, como em 45 anos de psicanálise clínica nunca li ou ouvi nada de parecido, tenho a impressão de que, sim, é algo novo. Não apenas novo, mas crucial no jeito de se entenderem as doenças psíquicas e na maneira de se criar uma estratégia de tratamento delas.

Trata-se de uma nova maneira de ver o Superego. Há uma crença antiga, seja no senso comum, seja na psicanálise, de que o Superego é necessário para a ética, para os processos civilizatórios do indivíduo, para ele ser correto, para eliminação de suas doenças psíquicas e de seus vícios. “Quem não tem Superego é psicopata, é serial killer, é preciso sentir culpa para se andar na linha!”, seria o resumo desse pensamento, dessa crença.

Para questioná-lo, é preciso entender o que ele é e como funciona. O Superego é um software cultural construído em cima de um natural, que vem pela genética. O natural é um programa de sobrevivência que se liga a partir dos dois anos de idade: medos. Medos herdados que vêm nos salvando a vida nos últimos 70 mil anos: escuro, altura, confinamento, cobra, grandes répteis, grandes insetos voadores, e um último – o mais importante deles – que será base para a construção dos medos culturais embutidos no Superego, o medo do desamparo.

A criança de dois anos tem medo de sair de perto dos pais, se está em lugar estranho. Mas já está pronta a sofisticar esse medo: que coisas ela não pode fazer, pois seus pais não gostam e ela corre o risco de ser desamparada por eles? Quais desejos seus a põem em conflito com a autoridade que a ampara? “Ah, mas ela pode ter medo de apanhar, e não de ser desamparada”. O medo do castigo físico não é tão grave quanto o medo que vem junto: “eles não gostam mais de mim”.

Freud enunciou esses medos como “ameaça de castração”, mas se isso fazia sentido na época dele – eu sou tão velho que fui ameaçado de castração na infância, por um tio sádico –, hoje não faz mais. Já a ameaça de desamparo…

Mais tarde, a ameaça de desamparo “passa pra dentro”: não se sente mais aquela coisa de alguém falando de fora. Não, a criança se antecipa e passa a se vigiar: se, motivada por seus desejos, faz algo de impróprio ou inaceitável pela cultura, sente-se culpada, envergonhada, angustiada, atormentada. As vozes da cultura/pais já passaram para dentro. Já é o Superego em ação.

Essa guerra se estenderá pela vida afora. Há dois grupos de desejos “feios”, proibidos, inaceitáveis pela cultura/Superego: os derivados do sexo e os derivados da raiva. Da briga entre esses desejos e o Superego surgirão os sintomas de neuroses e de vícios, frisando que foi a briga que distorceu esses desejos e os tornou mais inaceitáveis ainda.

São essas as doenças o objeto de investigação e tratamento pela psicanálise.

Uma segunda face do Superego é a construção imaginada de um Ideal a que devemos nos modelar. Essa, curiosamente, não tem a ver com a sobrevivência do indivíduo, mas sim com a sobrevivência da espécie, o impulso sexual.

Ela parte de uma lógica inconsciente: se formos/parecermos perfeitos, não apenas escaparemos da crítica, seremos amados. A crítica do Superego nos faz sentir uns merdas; parecer/ser Ideal nos faz sentir fodões. E o fodão parece ter mais chances de acasalamento, parece aumentar nosso cacife sexual.

E aqui estamos nós: aprisionados entre dois fogos de uma guerra interna. Nosso Eu (Ego) tendo que atender medos e ambições, ambos impossíveis de solucionar, em permanente aluguel mental, sem paz para reflexão, condenado a reagir, tendo que achar um meio de realizar nossos desejos. O meio mais costumeiro é a transgressão, quando dizemos “foda-se” ao Superego, e com a consequente ressaca moral, culpa e angústia por tê-lo desafiado.

O que entendi é que nossa relação com o Superego é de crueldade, vingança, submissão, obediência e rebeldia, ressentimento e glorificação. Ou seja, uma relação viciosa de sadomasoquismo e de domínio/submissão.

Nossa relação com o Superego é o pai e a mãe de nossos vícios e neuroses.

Freud uma vez disse: “onde esteve o Id, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos trazer para nosso entendimento (para nós, para o nosso Eu, para o Ego) os processos e desejos inconscientes que nos manipulam a partir desse “Algo em nós” (o Id).

Pois eu digo – e esta é a novidade que proponho –, “onde esteve o Superego, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos entender como as leis de nosso Superego foram construídas. As problemáticas, tolas ou injustas (“a masturbação é pecado e vai te mandar para o inferno”) serão canceladas, pois o Ego discorda delas. As interessantes e apreciadas (“você tem que ser honesto”) serão trazidas para mim, para meu Eu, para o Ego, e por ele apropriadas: eu não “tenho” que ser honesto; eu acho bom ser honesto, eu “quero” ser honesto. A honestidade será um valor meu, nunca uma tarefa imposta por uma instância “acima de mim” (“das Über-ich”, o Superego).

A meta da psicanálise será, portanto, me tornar sujeito de meus verbos, dono de meus valores, gerente dos meus desejos. Ela investigará como o complexo de Édipo (como fui enrolado pelos problemas de meus pais, que não tinham nada a ver comigo) me levou a ter minha cabeça tumultuada por essa guerra interna.

Através dessa investigação, saberei como meus desejos foram distorcidos pela guerra, como eles podem ser (expurgada a distorção), como meu Superego foi formado, como ele me manipula e me leva a exteriorizar a relação que tenho com ele (trazendo a guerra fodão/merda para minha relação com o mundo). Da consciência virá o desejo de justiça – esta é a maior força da psicanálise – e dele, o desmonte da manipulação, para que eu – o Ego – esteja na gerência da minha vida.

Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam: eis aí a função da psicanálise.








PSICANÁLISE É CIÊNCIA? - O AMIGO PERGUNTA

 



“Você diz que a psicanálise não é ciência. O que é, então?”

Francisco Daudt: É um tipo de conhecimento empírico (baseado na experiência e na observação), muito parecido com a investigação criminal sofisticada: a partir da “cena do crime” (os sintomas diagnosticados), deduzem-se hipóteses e novas pesquisas são feitas. O problema é que elas não podem ser testadas em laboratório, há poucas pistas materiais, pois tudo se dá em cima do relato do cliente.

O curioso é que Arthur Conan Doyle foi contemporâneo de Freud, e seu Sherlock Holmes fazia o mesmo tipo de investigação dedutiva, sem poder contar muito com laboratórios. Hoje em dia, quem conhece a série CSI (“investigação da cena de crime”) fica assombrado com o apoio que os laboratórios dão às investigações. Ainda assim, o trabalho dos detetives continua não sendo ciência, só está bem apoiado por ela.

Mas será que a psicanálise não seria então uma proto-ciência, algo como a alquimia, da qual surgiu a ciência química? Humm, não creio. Nossa mente é o que há de mais complexo no mundo, sobretudo do ponto de vista de seus softwares em constante mutação, que é onde a psicanálise trabalha. Há milhares de componentes operando em cada ação humana, desejos, medos, influências culturais e animais, motivações, meios e oportunidades, circunstâncias históricas e pessoais… Não vejo uma ciência dando conta disso tudo.

No entanto, o método científico e sua busca do conhecimento verdadeiro (episteme) precisam estar presentes na prática psicanalítica, para que conversem e questionem a opinião (doxa) do analista, seja uma que ele creia certa (ortodoxa = opinião certa), seja uma diferente (heterodoxa = opinião diferente).

O filósofo da ciência que é meu farol-guia na psicanálise é Karl Popper. Sua proposta, em resumo, é: faça hipóteses vulneráveis à refutação (claras, transparentes e diretas); faça predições que possam ser conferidas. Se elas passarem nesses testes, terão chances de ser verdadeiras.

Estou lendo o livro de David Buss, “Evolutionary psychology - the new science of the mind”, ainda sem publicação em português. Devo confessar que com uma certa inveja: ele segue o método científico passo a passo… e conta com uma base de dados infinita para transformar aquele conhecimento em ciência.







ERRO MÉDICO & ERRO PSICANALÍTICO

 



“Iatropatogenia” é um bom exemplo de como os médicos gostam de falar difícil. “Parece que estão falando grego”. Não, isso é grego mesmo, significa “doença (páthos) causada (gênese) pelo médico (iatros)”.

Para reduzir as chances de causar doença, uma grande rede médico-hospitalar adotou o código de barras nos medicamentos administrados aos pacientes, de modo que a enfermeira tenha que conferir se o código da pulseira do internado bate com o do remédio. Como eles dão remédios, em todo o país, 117 mil vezes por dia, as probabilidades de isso dar merda passou de imensa para aceitável.

A psicanálise tem também alta probabilidade de iatropatogenia (ou, em português claro, dar merda em sua prática). Pelo fato de eu ter sido médico clínico, isso sempre foi uma preocupação e um cuidado na minha carreira de psicanalista.

Como previnir o erro psicanalítico, sem poder contar com um código de barras para conferência? Concluí que seria pelo mesmo princípio de conferir o acerto ou erro de nossas intervenções.

Se minhas hipóteses são vagas, faladas em linguagem misteriosa ou poética (quando múltiplas interpretações são possíveis, e a maioria será errada), as chances de conferência – e de o cliente me dizer que eu estou errado – são minúsculas. Mas é tão chato ouvir do cliente que você está errado, não? É tão tentador parecer um sábio onipotente, um oráculo de Delfos inquestionável, não é mesmo?

De modo que a decisão de falar claro que um psicanalista toma, sim, requer a humildade de correr risco de ser refutado.

Mas reduz imensamente o risco de iatropatogenia.