domingo, 2 de janeiro de 2022

O SUPEREGO COMO PARTE DO PROBLEMA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Você acha que acrescentou alguma coisa às teorias psicanalíticas que já existem?”

Francisco Daudt: Creio que sim. Espero ser refutado, que alguém venha me mostrar artigos em que minha hipótese já tenha sido descrita. Mas, como em 45 anos de psicanálise clínica nunca li ou ouvi nada de parecido, tenho a impressão de que, sim, é algo novo. Não apenas novo, mas crucial no jeito de se entenderem as doenças psíquicas e na maneira de se criar uma estratégia de tratamento delas.

Trata-se de uma nova maneira de ver o Superego. Há uma crença antiga, seja no senso comum, seja na psicanálise, de que o Superego é necessário para a ética, para os processos civilizatórios do indivíduo, para ele ser correto, para eliminação de suas doenças psíquicas e de seus vícios. “Quem não tem Superego é psicopata, é serial killer, é preciso sentir culpa para se andar na linha!”, seria o resumo desse pensamento, dessa crença.

Para questioná-lo, é preciso entender o que ele é e como funciona. O Superego é um software cultural construído em cima de um natural, que vem pela genética. O natural é um programa de sobrevivência que se liga a partir dos dois anos de idade: medos. Medos herdados que vêm nos salvando a vida nos últimos 70 mil anos: escuro, altura, confinamento, cobra, grandes répteis, grandes insetos voadores, e um último – o mais importante deles – que será base para a construção dos medos culturais embutidos no Superego, o medo do desamparo.

A criança de dois anos tem medo de sair de perto dos pais, se está em lugar estranho. Mas já está pronta a sofisticar esse medo: que coisas ela não pode fazer, pois seus pais não gostam e ela corre o risco de ser desamparada por eles? Quais desejos seus a põem em conflito com a autoridade que a ampara? “Ah, mas ela pode ter medo de apanhar, e não de ser desamparada”. O medo do castigo físico não é tão grave quanto o medo que vem junto: “eles não gostam mais de mim”.

Freud enunciou esses medos como “ameaça de castração”, mas se isso fazia sentido na época dele – eu sou tão velho que fui ameaçado de castração na infância, por um tio sádico –, hoje não faz mais. Já a ameaça de desamparo…

Mais tarde, a ameaça de desamparo “passa pra dentro”: não se sente mais aquela coisa de alguém falando de fora. Não, a criança se antecipa e passa a se vigiar: se, motivada por seus desejos, faz algo de impróprio ou inaceitável pela cultura, sente-se culpada, envergonhada, angustiada, atormentada. As vozes da cultura/pais já passaram para dentro. Já é o Superego em ação.

Essa guerra se estenderá pela vida afora. Há dois grupos de desejos “feios”, proibidos, inaceitáveis pela cultura/Superego: os derivados do sexo e os derivados da raiva. Da briga entre esses desejos e o Superego surgirão os sintomas de neuroses e de vícios, frisando que foi a briga que distorceu esses desejos e os tornou mais inaceitáveis ainda.

São essas as doenças o objeto de investigação e tratamento pela psicanálise.

Uma segunda face do Superego é a construção imaginada de um Ideal a que devemos nos modelar. Essa, curiosamente, não tem a ver com a sobrevivência do indivíduo, mas sim com a sobrevivência da espécie, o impulso sexual.

Ela parte de uma lógica inconsciente: se formos/parecermos perfeitos, não apenas escaparemos da crítica, seremos amados. A crítica do Superego nos faz sentir uns merdas; parecer/ser Ideal nos faz sentir fodões. E o fodão parece ter mais chances de acasalamento, parece aumentar nosso cacife sexual.

E aqui estamos nós: aprisionados entre dois fogos de uma guerra interna. Nosso Eu (Ego) tendo que atender medos e ambições, ambos impossíveis de solucionar, em permanente aluguel mental, sem paz para reflexão, condenado a reagir, tendo que achar um meio de realizar nossos desejos. O meio mais costumeiro é a transgressão, quando dizemos “foda-se” ao Superego, e com a consequente ressaca moral, culpa e angústia por tê-lo desafiado.

O que entendi é que nossa relação com o Superego é de crueldade, vingança, submissão, obediência e rebeldia, ressentimento e glorificação. Ou seja, uma relação viciosa de sadomasoquismo e de domínio/submissão.

Nossa relação com o Superego é o pai e a mãe de nossos vícios e neuroses.

Freud uma vez disse: “onde esteve o Id, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos trazer para nosso entendimento (para nós, para o nosso Eu, para o Ego) os processos e desejos inconscientes que nos manipulam a partir desse “Algo em nós” (o Id).

Pois eu digo – e esta é a novidade que proponho –, “onde esteve o Superego, que esteja o Ego”. Traduzindo: vamos entender como as leis de nosso Superego foram construídas. As problemáticas, tolas ou injustas (“a masturbação é pecado e vai te mandar para o inferno”) serão canceladas, pois o Ego discorda delas. As interessantes e apreciadas (“você tem que ser honesto”) serão trazidas para mim, para meu Eu, para o Ego, e por ele apropriadas: eu não “tenho” que ser honesto; eu acho bom ser honesto, eu “quero” ser honesto. A honestidade será um valor meu, nunca uma tarefa imposta por uma instância “acima de mim” (“das Über-ich”, o Superego).

A meta da psicanálise será, portanto, me tornar sujeito de meus verbos, dono de meus valores, gerente dos meus desejos. Ela investigará como o complexo de Édipo (como fui enrolado pelos problemas de meus pais, que não tinham nada a ver comigo) me levou a ter minha cabeça tumultuada por essa guerra interna.

Através dessa investigação, saberei como meus desejos foram distorcidos pela guerra, como eles podem ser (expurgada a distorção), como meu Superego foi formado, como ele me manipula e me leva a exteriorizar a relação que tenho com ele (trazendo a guerra fodão/merda para minha relação com o mundo). Da consciência virá o desejo de justiça – esta é a maior força da psicanálise – e dele, o desmonte da manipulação, para que eu – o Ego – esteja na gerência da minha vida.

Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam: eis aí a função da psicanálise.








PSICANÁLISE É CIÊNCIA? - O AMIGO PERGUNTA

 



“Você diz que a psicanálise não é ciência. O que é, então?”

Francisco Daudt: É um tipo de conhecimento empírico (baseado na experiência e na observação), muito parecido com a investigação criminal sofisticada: a partir da “cena do crime” (os sintomas diagnosticados), deduzem-se hipóteses e novas pesquisas são feitas. O problema é que elas não podem ser testadas em laboratório, há poucas pistas materiais, pois tudo se dá em cima do relato do cliente.

O curioso é que Arthur Conan Doyle foi contemporâneo de Freud, e seu Sherlock Holmes fazia o mesmo tipo de investigação dedutiva, sem poder contar muito com laboratórios. Hoje em dia, quem conhece a série CSI (“investigação da cena de crime”) fica assombrado com o apoio que os laboratórios dão às investigações. Ainda assim, o trabalho dos detetives continua não sendo ciência, só está bem apoiado por ela.

Mas será que a psicanálise não seria então uma proto-ciência, algo como a alquimia, da qual surgiu a ciência química? Humm, não creio. Nossa mente é o que há de mais complexo no mundo, sobretudo do ponto de vista de seus softwares em constante mutação, que é onde a psicanálise trabalha. Há milhares de componentes operando em cada ação humana, desejos, medos, influências culturais e animais, motivações, meios e oportunidades, circunstâncias históricas e pessoais… Não vejo uma ciência dando conta disso tudo.

No entanto, o método científico e sua busca do conhecimento verdadeiro (episteme) precisam estar presentes na prática psicanalítica, para que conversem e questionem a opinião (doxa) do analista, seja uma que ele creia certa (ortodoxa = opinião certa), seja uma diferente (heterodoxa = opinião diferente).

O filósofo da ciência que é meu farol-guia na psicanálise é Karl Popper. Sua proposta, em resumo, é: faça hipóteses vulneráveis à refutação (claras, transparentes e diretas); faça predições que possam ser conferidas. Se elas passarem nesses testes, terão chances de ser verdadeiras.

Estou lendo o livro de David Buss, “Evolutionary psychology - the new science of the mind”, ainda sem publicação em português. Devo confessar que com uma certa inveja: ele segue o método científico passo a passo… e conta com uma base de dados infinita para transformar aquele conhecimento em ciência.







ERRO MÉDICO & ERRO PSICANALÍTICO

 



“Iatropatogenia” é um bom exemplo de como os médicos gostam de falar difícil. “Parece que estão falando grego”. Não, isso é grego mesmo, significa “doença (páthos) causada (gênese) pelo médico (iatros)”.

Para reduzir as chances de causar doença, uma grande rede médico-hospitalar adotou o código de barras nos medicamentos administrados aos pacientes, de modo que a enfermeira tenha que conferir se o código da pulseira do internado bate com o do remédio. Como eles dão remédios, em todo o país, 117 mil vezes por dia, as probabilidades de isso dar merda passou de imensa para aceitável.

A psicanálise tem também alta probabilidade de iatropatogenia (ou, em português claro, dar merda em sua prática). Pelo fato de eu ter sido médico clínico, isso sempre foi uma preocupação e um cuidado na minha carreira de psicanalista.

Como previnir o erro psicanalítico, sem poder contar com um código de barras para conferência? Concluí que seria pelo mesmo princípio de conferir o acerto ou erro de nossas intervenções.

Se minhas hipóteses são vagas, faladas em linguagem misteriosa ou poética (quando múltiplas interpretações são possíveis, e a maioria será errada), as chances de conferência – e de o cliente me dizer que eu estou errado – são minúsculas. Mas é tão chato ouvir do cliente que você está errado, não? É tão tentador parecer um sábio onipotente, um oráculo de Delfos inquestionável, não é mesmo?

De modo que a decisão de falar claro que um psicanalista toma, sim, requer a humildade de correr risco de ser refutado.

Mas reduz imensamente o risco de iatropatogenia.







domingo, 7 de novembro de 2021

ORIENTAÇÕES SEXUAIS - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que é ser bissexual?”

Francisco Daudt: É como ser bilíngue: uma língua é nativa, a outra é aprendida. Mas há aptidão/motivação - maior ou menor - para a segunda.









O PERIGO DO UPGRADE

 



Um homem tinha uma galinha que botava um ovo de ouro por semana. Ele estava ficando rico, mas… a ganância o fez imaginar que dentro da galinha haveria uma mina de ouro. Ele a matou e abriu, apenas para descobrir tripas e fezes.

Qualquer relacionamento rico desperta a ganância de se ter mais: a amizade pede namoro, o namoro pede casamento. Só que, enquanto a relação não rotulada dá espaço para os indivíduos envolvidos, os rótulos e as formalizações abrem lugar para a invasão do senso comum: vários “tem que” (ligar todos os dias, andar colado, apresentar à família etc.).

O risco de a individualidade se perder é grande… e com ela, os ovos de ouro. 






FINADO

 


Ok, é morto, defunto. Mas também é “findo”, “acabado”, “terminado”…

Exceto em nossas memórias, até que elas também se acabem.

João Ternura é um personagem de Aníbal Machado. Ele viveu, morreu, mas continuou vivendo na memória de quem o conheceu. Até que a última pessoa que se lembrava dele também morreu.

Nesse dia, João Ternura se finou







O VALOR DO TIJOLO - O AMIGO PERGUNTA

 



“Eu nasci para ser diretor de cinema, e nunca me sujeitarei a aceitar nada menor que isso. Você não acha que a gente tem que pensar grande?”

Francisco Daudt: Acho lindo, pensar grande. A Notre Dame de Paris foi feita por quem pensou grande, mas… ela só apareceu porque muitos tijolos foram assentados, um por um. A Notre Dame é feita de tijolos. E mais, ela nunca termina de ser construída: está em permanente manutenção/melhoria/incêndio/reconstrução.

Quando vejo minha trajetória como psicanalista, acho lindo o produto atual, mas… eu sei bem quantos tijolos assentados contém essa trajetória. Eu vivi um tempo em que, para se chegar ao Cristo do Corcovado, subiam-se trezentos degraus; não tinha essa de elevador.

Quando eu quis ser psicanalista, e a formação custava muito caro, pedi que meu pai a pagasse. Mas ele era mineiro, portanto me disse: “Eu? Pagar para você seguir uma profissão que torna as pessoas egoístas e que põe a culpa de tudo nos pais? Nunca!” Bem, então que ele me concedesse um crédito educativo a ser pago pelo rendimento da caderneta de poupança? “Ah, isso, sem problema”.

Foi a melhor saída, para mim também. Arranjar um emprego de médico do trabalho no parque gráfico da revista Manchete, em Parada de Lucas (a 40 km de casa), me virar para quitar aquela dívida até o último centavo, foram meios de valorizar cada tijolo da minha construção. Além, claro, do que aquele trabalho, junto com o de médico clínico, me ensinou.

Não vejo nenhum mal nos elevadores, nos pais que ajudam seus filhos a lutar por seus sonhos… mas sem mimá-los. É o mimo que lhes faz perder de vista o valor dos degraus, das atividades-meio, da construção, dos tijolos.