domingo, 2 de janeiro de 2022

PSICANÁLISE É CIÊNCIA? - O AMIGO PERGUNTA

 



“Você diz que a psicanálise não é ciência. O que é, então?”

Francisco Daudt: É um tipo de conhecimento empírico (baseado na experiência e na observação), muito parecido com a investigação criminal sofisticada: a partir da “cena do crime” (os sintomas diagnosticados), deduzem-se hipóteses e novas pesquisas são feitas. O problema é que elas não podem ser testadas em laboratório, há poucas pistas materiais, pois tudo se dá em cima do relato do cliente.

O curioso é que Arthur Conan Doyle foi contemporâneo de Freud, e seu Sherlock Holmes fazia o mesmo tipo de investigação dedutiva, sem poder contar muito com laboratórios. Hoje em dia, quem conhece a série CSI (“investigação da cena de crime”) fica assombrado com o apoio que os laboratórios dão às investigações. Ainda assim, o trabalho dos detetives continua não sendo ciência, só está bem apoiado por ela.

Mas será que a psicanálise não seria então uma proto-ciência, algo como a alquimia, da qual surgiu a ciência química? Humm, não creio. Nossa mente é o que há de mais complexo no mundo, sobretudo do ponto de vista de seus softwares em constante mutação, que é onde a psicanálise trabalha. Há milhares de componentes operando em cada ação humana, desejos, medos, influências culturais e animais, motivações, meios e oportunidades, circunstâncias históricas e pessoais… Não vejo uma ciência dando conta disso tudo.

No entanto, o método científico e sua busca do conhecimento verdadeiro (episteme) precisam estar presentes na prática psicanalítica, para que conversem e questionem a opinião (doxa) do analista, seja uma que ele creia certa (ortodoxa = opinião certa), seja uma diferente (heterodoxa = opinião diferente).

O filósofo da ciência que é meu farol-guia na psicanálise é Karl Popper. Sua proposta, em resumo, é: faça hipóteses vulneráveis à refutação (claras, transparentes e diretas); faça predições que possam ser conferidas. Se elas passarem nesses testes, terão chances de ser verdadeiras.

Estou lendo o livro de David Buss, “Evolutionary psychology - the new science of the mind”, ainda sem publicação em português. Devo confessar que com uma certa inveja: ele segue o método científico passo a passo… e conta com uma base de dados infinita para transformar aquele conhecimento em ciência.







ERRO MÉDICO & ERRO PSICANALÍTICO

 



“Iatropatogenia” é um bom exemplo de como os médicos gostam de falar difícil. “Parece que estão falando grego”. Não, isso é grego mesmo, significa “doença (páthos) causada (gênese) pelo médico (iatros)”.

Para reduzir as chances de causar doença, uma grande rede médico-hospitalar adotou o código de barras nos medicamentos administrados aos pacientes, de modo que a enfermeira tenha que conferir se o código da pulseira do internado bate com o do remédio. Como eles dão remédios, em todo o país, 117 mil vezes por dia, as probabilidades de isso dar merda passou de imensa para aceitável.

A psicanálise tem também alta probabilidade de iatropatogenia (ou, em português claro, dar merda em sua prática). Pelo fato de eu ter sido médico clínico, isso sempre foi uma preocupação e um cuidado na minha carreira de psicanalista.

Como previnir o erro psicanalítico, sem poder contar com um código de barras para conferência? Concluí que seria pelo mesmo princípio de conferir o acerto ou erro de nossas intervenções.

Se minhas hipóteses são vagas, faladas em linguagem misteriosa ou poética (quando múltiplas interpretações são possíveis, e a maioria será errada), as chances de conferência – e de o cliente me dizer que eu estou errado – são minúsculas. Mas é tão chato ouvir do cliente que você está errado, não? É tão tentador parecer um sábio onipotente, um oráculo de Delfos inquestionável, não é mesmo?

De modo que a decisão de falar claro que um psicanalista toma, sim, requer a humildade de correr risco de ser refutado.

Mas reduz imensamente o risco de iatropatogenia.







domingo, 7 de novembro de 2021

ORIENTAÇÕES SEXUAIS - O AMIGO PERGUNTA

 




“O que é ser bissexual?”

Francisco Daudt: É como ser bilíngue: uma língua é nativa, a outra é aprendida. Mas há aptidão/motivação - maior ou menor - para a segunda.









O PERIGO DO UPGRADE

 



Um homem tinha uma galinha que botava um ovo de ouro por semana. Ele estava ficando rico, mas… a ganância o fez imaginar que dentro da galinha haveria uma mina de ouro. Ele a matou e abriu, apenas para descobrir tripas e fezes.

Qualquer relacionamento rico desperta a ganância de se ter mais: a amizade pede namoro, o namoro pede casamento. Só que, enquanto a relação não rotulada dá espaço para os indivíduos envolvidos, os rótulos e as formalizações abrem lugar para a invasão do senso comum: vários “tem que” (ligar todos os dias, andar colado, apresentar à família etc.).

O risco de a individualidade se perder é grande… e com ela, os ovos de ouro. 






FINADO

 


Ok, é morto, defunto. Mas também é “findo”, “acabado”, “terminado”…

Exceto em nossas memórias, até que elas também se acabem.

João Ternura é um personagem de Aníbal Machado. Ele viveu, morreu, mas continuou vivendo na memória de quem o conheceu. Até que a última pessoa que se lembrava dele também morreu.

Nesse dia, João Ternura se finou







O VALOR DO TIJOLO - O AMIGO PERGUNTA

 



“Eu nasci para ser diretor de cinema, e nunca me sujeitarei a aceitar nada menor que isso. Você não acha que a gente tem que pensar grande?”

Francisco Daudt: Acho lindo, pensar grande. A Notre Dame de Paris foi feita por quem pensou grande, mas… ela só apareceu porque muitos tijolos foram assentados, um por um. A Notre Dame é feita de tijolos. E mais, ela nunca termina de ser construída: está em permanente manutenção/melhoria/incêndio/reconstrução.

Quando vejo minha trajetória como psicanalista, acho lindo o produto atual, mas… eu sei bem quantos tijolos assentados contém essa trajetória. Eu vivi um tempo em que, para se chegar ao Cristo do Corcovado, subiam-se trezentos degraus; não tinha essa de elevador.

Quando eu quis ser psicanalista, e a formação custava muito caro, pedi que meu pai a pagasse. Mas ele era mineiro, portanto me disse: “Eu? Pagar para você seguir uma profissão que torna as pessoas egoístas e que põe a culpa de tudo nos pais? Nunca!” Bem, então que ele me concedesse um crédito educativo a ser pago pelo rendimento da caderneta de poupança? “Ah, isso, sem problema”.

Foi a melhor saída, para mim também. Arranjar um emprego de médico do trabalho no parque gráfico da revista Manchete, em Parada de Lucas (a 40 km de casa), me virar para quitar aquela dívida até o último centavo, foram meios de valorizar cada tijolo da minha construção. Além, claro, do que aquele trabalho, junto com o de médico clínico, me ensinou.

Não vejo nenhum mal nos elevadores, nos pais que ajudam seus filhos a lutar por seus sonhos… mas sem mimá-los. É o mimo que lhes faz perder de vista o valor dos degraus, das atividades-meio, da construção, dos tijolos.



SÍNDROME DE HOWARD HUGHES - O AMIGO PERGUNTA

 



“Minha mãe faz tudo que meu irmão quer. Ele vive numa bolha, completamente incapaz de transitar no mundo, pois não tolera ser contrariado em nada. Isso é um tipo de maluquice?”

Francisco Daudt: Não… por enquanto. Ninguém sabe o que produzirá o inevitável choque com o mundo, quando sua mãe não puder mais sustentar a bolha.

Ele vive uma espécie de “síndrome de Howard Hughes”. Hughes (Leonardo DiCaprio, em “O aviador”) foi um milionário americano, extremamente criativo que, a partir de seu imenso poder acumulado, passou a dominar seus subalternos, a fazê-los viver segundo suas excentricidades. Ele tinha fobia de germes, e obrigava a todos em volta a viver sob padrões amalucados de assepsia. Como um menino mimado numa bolha. Como seu irmão.

Isso é um vício comportamental de domínio e controle – em inglês, se diz “control freakness”, maluquice de controle – que, como todo vício, é compulsivo, alugador das ideias, repetitivo, causa grande angústia se não atendido (síndrome de abstinência) e é danoso para os interesses principais da pessoa.

Na verdade, é uma caricatura de qualquer mimo: causa uma ilusão de poder, de falta de necessidade de negociação com o mundo. O mimo que os pais dão costuma, nos adolescentes, ser simultâneo/sucedido pelas drogas, a maconha em especial: ela anestesia, idiotiza e alheia o jovem de uma possível independência autossustentável. Ela é o mimo químico.

O mimo, como qualquer vício, é uma prisão.