domingo, 7 de novembro de 2021

O PERIGO DO UPGRADE

 



Um homem tinha uma galinha que botava um ovo de ouro por semana. Ele estava ficando rico, mas… a ganância o fez imaginar que dentro da galinha haveria uma mina de ouro. Ele a matou e abriu, apenas para descobrir tripas e fezes.

Qualquer relacionamento rico desperta a ganância de se ter mais: a amizade pede namoro, o namoro pede casamento. Só que, enquanto a relação não rotulada dá espaço para os indivíduos envolvidos, os rótulos e as formalizações abrem lugar para a invasão do senso comum: vários “tem que” (ligar todos os dias, andar colado, apresentar à família etc.).

O risco de a individualidade se perder é grande… e com ela, os ovos de ouro. 






FINADO

 


Ok, é morto, defunto. Mas também é “findo”, “acabado”, “terminado”…

Exceto em nossas memórias, até que elas também se acabem.

João Ternura é um personagem de Aníbal Machado. Ele viveu, morreu, mas continuou vivendo na memória de quem o conheceu. Até que a última pessoa que se lembrava dele também morreu.

Nesse dia, João Ternura se finou







O VALOR DO TIJOLO - O AMIGO PERGUNTA

 



“Eu nasci para ser diretor de cinema, e nunca me sujeitarei a aceitar nada menor que isso. Você não acha que a gente tem que pensar grande?”

Francisco Daudt: Acho lindo, pensar grande. A Notre Dame de Paris foi feita por quem pensou grande, mas… ela só apareceu porque muitos tijolos foram assentados, um por um. A Notre Dame é feita de tijolos. E mais, ela nunca termina de ser construída: está em permanente manutenção/melhoria/incêndio/reconstrução.

Quando vejo minha trajetória como psicanalista, acho lindo o produto atual, mas… eu sei bem quantos tijolos assentados contém essa trajetória. Eu vivi um tempo em que, para se chegar ao Cristo do Corcovado, subiam-se trezentos degraus; não tinha essa de elevador.

Quando eu quis ser psicanalista, e a formação custava muito caro, pedi que meu pai a pagasse. Mas ele era mineiro, portanto me disse: “Eu? Pagar para você seguir uma profissão que torna as pessoas egoístas e que põe a culpa de tudo nos pais? Nunca!” Bem, então que ele me concedesse um crédito educativo a ser pago pelo rendimento da caderneta de poupança? “Ah, isso, sem problema”.

Foi a melhor saída, para mim também. Arranjar um emprego de médico do trabalho no parque gráfico da revista Manchete, em Parada de Lucas (a 40 km de casa), me virar para quitar aquela dívida até o último centavo, foram meios de valorizar cada tijolo da minha construção. Além, claro, do que aquele trabalho, junto com o de médico clínico, me ensinou.

Não vejo nenhum mal nos elevadores, nos pais que ajudam seus filhos a lutar por seus sonhos… mas sem mimá-los. É o mimo que lhes faz perder de vista o valor dos degraus, das atividades-meio, da construção, dos tijolos.



SÍNDROME DE HOWARD HUGHES - O AMIGO PERGUNTA

 



“Minha mãe faz tudo que meu irmão quer. Ele vive numa bolha, completamente incapaz de transitar no mundo, pois não tolera ser contrariado em nada. Isso é um tipo de maluquice?”

Francisco Daudt: Não… por enquanto. Ninguém sabe o que produzirá o inevitável choque com o mundo, quando sua mãe não puder mais sustentar a bolha.

Ele vive uma espécie de “síndrome de Howard Hughes”. Hughes (Leonardo DiCaprio, em “O aviador”) foi um milionário americano, extremamente criativo que, a partir de seu imenso poder acumulado, passou a dominar seus subalternos, a fazê-los viver segundo suas excentricidades. Ele tinha fobia de germes, e obrigava a todos em volta a viver sob padrões amalucados de assepsia. Como um menino mimado numa bolha. Como seu irmão.

Isso é um vício comportamental de domínio e controle – em inglês, se diz “control freakness”, maluquice de controle – que, como todo vício, é compulsivo, alugador das ideias, repetitivo, causa grande angústia se não atendido (síndrome de abstinência) e é danoso para os interesses principais da pessoa.

Na verdade, é uma caricatura de qualquer mimo: causa uma ilusão de poder, de falta de necessidade de negociação com o mundo. O mimo que os pais dão costuma, nos adolescentes, ser simultâneo/sucedido pelas drogas, a maconha em especial: ela anestesia, idiotiza e alheia o jovem de uma possível independência autossustentável. Ela é o mimo químico.

O mimo, como qualquer vício, é uma prisão.




ZONAS ERÓGENAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Freud descreveu as fases oral, anal e fálica como origem das zonas erógenas que ficam pela vida?”

Francisco Daudt: Sim, mas elas não se restringem a esses lugares do corpo (boca, ânus e genitais). O que observo é que, com a possível exceção dos cotovelos, o corpo inteiro tem potencial erógeno (“erógeno” significa “gerador de prazer/excitação”).

A ideia de Freud se casa perfeitamente com a armadilha biológica que a natureza produziu para que replicássemos nossos genes: ao buscar mais e mais prazer – começando pela boca/beijo –, a excitação cresce e nos faz querer a explosão final que leva à gravidez: o orgasmo… masculino (sim, a natureza é machista e só se interessa pela ejaculação. O orgasmo feminino é um luxo; o masculino, uma necessidade: dele depende a sobrevivência da espécie).

Mas Freud também apontou que, se algumas zonas de prazer se mantêm, outras podem ser reprimidas. O ânus é ícone das que são alvo de repressão. “Vai tomar no cu!” tornou-se um insulto comum a várias línguas, indicando que o prazer anal não é visto com bons olhos (no pun intended), e sim como algo repugnante, humilhante e passível de violação dolorosa.

Não é só ele que se varre para debaixo do tapete; é triste a constatação de que poucas pessoas se dedicam a pesquisar as zonas erógenas de seus parceiros, causando assim um tremendo desperdício de prazer em potencial.

É como se, no sexo, todos entrassem numa linha de montagem finalista, se esquecendo da verdade uma vez dita por um cliente: “Esse negócio de foder é pra proletário, que tem de produzir prole. A cama é um playground, feita pra brincar!”




LUTO DA IMORTALIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Eu completei 70 anos e ando obcecado com a minha morte, com o pouco tempo que me resta. O que é isto?”

Francisco Daudt: É um tipo de luto. Você se deu conta de que não é imortal, e a perda dessa ilusão é dolorida.

Uma vez, meio brincando, chamei isso de “crise de meia idade”. Certo, ninguém vive 140 anos, mas é que a coisa se reporta às diversas crises evolutivas por que passamos pela vida, todas elas implicam algum luto.

Primeiramente, é preciso dizer que luto não é doença, é uma metabolização das perdas, faz parte da vida. Há um momento de vazio e de tristeza que, se tudo funcionar bem, evolui para o enriquecimento de nossas boas memórias.

Foi assim que deixamos a infância para trás (muitos não deixam a infantilidade para trás, mas isso é outro assunto) e entramos inseguros na adolescência. Depois, a vida nos cobra ser adultos, autossustentáveis, profissionais, pais de família, negociar amores e paixões. Lá pelos 50, a tal crise de meia idade, a juventude perdida, a aposentadoria e a velhice à vista.

E chegamos ao ponto em que você está: sim, vamos morrer, e isso nunca ficou tão evidente quanto aos 70. A nossa espécie é muito perturbada por essa consciência da morte; por causa dela – ou da negação dela – pirâmides foram construídas, deuses inventados, afirmações fodonas de todo tipo reiteradas.

Se você puder deixar a morte – ou a negação dela – de lado, vai poder se concentrar naquilo que tem: sua vida.

Ou, adaptando a oração dos AA: “que eu possa ter a coragem de mudar o que pode ser mudado; a serenidade de aceitar o que não pode; e a sabedoria para distinguir uma coisa da outra.




domingo, 10 de outubro de 2021

MODELOS DE IDENTIFICAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Você disse que nos formamos na infância através de copiar modelos?”

Francisco Daudt: Não só por copiar modelos, também por nos horrorizar com antimodelos; não só na infância, mas pela vida afora.

Todo o nosso aprendizado se dá inicialmente por imitação. Pense em você aprendendo uma língua estrangeira e terá a caricatura de qualquer aprendizado.

O mesmo se dá com aquilo que nós somos: “Ah, quando eu crescer quero ser igual a ele!”, no caso de nossos modelos de identificação. Ou também: “Tudo, menos ser igual a essa pessoa!”, e você começará uma imitação ao reverso, a fazer o extremo oposto daquilo que seu antimodelo faz… e assim ser comandado por ele, como na música do Chico Buarque, “te adorando pelo avesso”.

Um modelo de identificação pode ser imposto, usando o antimodelo como espantalho: o pai de Donald Trump o avisou desde cedo que não aceitava filho loser (em bom português, filho merda), que ele tinha que ser winner (em tradução livre, filho fodão). 

Mas o bom modelo de identificação se dá por gosto. Quando eu tinha 14 anos, li um livro que mudou minha vida: “To kill a mockingbird” (“O sol e para todos”, Harper Lee, 1961). Lá encontrei o pai que queria ser, quando crescesse. Atticus Finch foi meu modelo de identificação, o pai que fui, o pai que sou, o psicanalista que sou, já que grande parte do trabalho do psicanalista pode ser definida como uma função de pai.

Nossa relação com o modelo de identificação começa como cópia, mas se torna gradualmente autoral, já nem sabemos mais de onde veio a matriz de nosso comportamento.

Mas eu sei…