domingo, 7 de novembro de 2021

ZONAS ERÓGENAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Freud descreveu as fases oral, anal e fálica como origem das zonas erógenas que ficam pela vida?”

Francisco Daudt: Sim, mas elas não se restringem a esses lugares do corpo (boca, ânus e genitais). O que observo é que, com a possível exceção dos cotovelos, o corpo inteiro tem potencial erógeno (“erógeno” significa “gerador de prazer/excitação”).

A ideia de Freud se casa perfeitamente com a armadilha biológica que a natureza produziu para que replicássemos nossos genes: ao buscar mais e mais prazer – começando pela boca/beijo –, a excitação cresce e nos faz querer a explosão final que leva à gravidez: o orgasmo… masculino (sim, a natureza é machista e só se interessa pela ejaculação. O orgasmo feminino é um luxo; o masculino, uma necessidade: dele depende a sobrevivência da espécie).

Mas Freud também apontou que, se algumas zonas de prazer se mantêm, outras podem ser reprimidas. O ânus é ícone das que são alvo de repressão. “Vai tomar no cu!” tornou-se um insulto comum a várias línguas, indicando que o prazer anal não é visto com bons olhos (no pun intended), e sim como algo repugnante, humilhante e passível de violação dolorosa.

Não é só ele que se varre para debaixo do tapete; é triste a constatação de que poucas pessoas se dedicam a pesquisar as zonas erógenas de seus parceiros, causando assim um tremendo desperdício de prazer em potencial.

É como se, no sexo, todos entrassem numa linha de montagem finalista, se esquecendo da verdade uma vez dita por um cliente: “Esse negócio de foder é pra proletário, que tem de produzir prole. A cama é um playground, feita pra brincar!”




LUTO DA IMORTALIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Eu completei 70 anos e ando obcecado com a minha morte, com o pouco tempo que me resta. O que é isto?”

Francisco Daudt: É um tipo de luto. Você se deu conta de que não é imortal, e a perda dessa ilusão é dolorida.

Uma vez, meio brincando, chamei isso de “crise de meia idade”. Certo, ninguém vive 140 anos, mas é que a coisa se reporta às diversas crises evolutivas por que passamos pela vida, todas elas implicam algum luto.

Primeiramente, é preciso dizer que luto não é doença, é uma metabolização das perdas, faz parte da vida. Há um momento de vazio e de tristeza que, se tudo funcionar bem, evolui para o enriquecimento de nossas boas memórias.

Foi assim que deixamos a infância para trás (muitos não deixam a infantilidade para trás, mas isso é outro assunto) e entramos inseguros na adolescência. Depois, a vida nos cobra ser adultos, autossustentáveis, profissionais, pais de família, negociar amores e paixões. Lá pelos 50, a tal crise de meia idade, a juventude perdida, a aposentadoria e a velhice à vista.

E chegamos ao ponto em que você está: sim, vamos morrer, e isso nunca ficou tão evidente quanto aos 70. A nossa espécie é muito perturbada por essa consciência da morte; por causa dela – ou da negação dela – pirâmides foram construídas, deuses inventados, afirmações fodonas de todo tipo reiteradas.

Se você puder deixar a morte – ou a negação dela – de lado, vai poder se concentrar naquilo que tem: sua vida.

Ou, adaptando a oração dos AA: “que eu possa ter a coragem de mudar o que pode ser mudado; a serenidade de aceitar o que não pode; e a sabedoria para distinguir uma coisa da outra.




domingo, 10 de outubro de 2021

MODELOS DE IDENTIFICAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


“Você disse que nos formamos na infância através de copiar modelos?”

Francisco Daudt: Não só por copiar modelos, também por nos horrorizar com antimodelos; não só na infância, mas pela vida afora.

Todo o nosso aprendizado se dá inicialmente por imitação. Pense em você aprendendo uma língua estrangeira e terá a caricatura de qualquer aprendizado.

O mesmo se dá com aquilo que nós somos: “Ah, quando eu crescer quero ser igual a ele!”, no caso de nossos modelos de identificação. Ou também: “Tudo, menos ser igual a essa pessoa!”, e você começará uma imitação ao reverso, a fazer o extremo oposto daquilo que seu antimodelo faz… e assim ser comandado por ele, como na música do Chico Buarque, “te adorando pelo avesso”.

Um modelo de identificação pode ser imposto, usando o antimodelo como espantalho: o pai de Donald Trump o avisou desde cedo que não aceitava filho loser (em bom português, filho merda), que ele tinha que ser winner (em tradução livre, filho fodão). 

Mas o bom modelo de identificação se dá por gosto. Quando eu tinha 14 anos, li um livro que mudou minha vida: “To kill a mockingbird” (“O sol e para todos”, Harper Lee, 1961). Lá encontrei o pai que queria ser, quando crescesse. Atticus Finch foi meu modelo de identificação, o pai que fui, o pai que sou, o psicanalista que sou, já que grande parte do trabalho do psicanalista pode ser definida como uma função de pai.

Nossa relação com o modelo de identificação começa como cópia, mas se torna gradualmente autoral, já nem sabemos mais de onde veio a matriz de nosso comportamento.

Mas eu sei…



PSICANÁLISE LACANIANA - O AMIGO PERGUNTA

 


Marcio Fagundes: “O que você acha da contribuição de Lacan à psicanálise?”

Francisco Daudt:  Sérgio Augusto disse uma vez que o livro mais superestimado que conhecia era “Mil Platos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari: “absolutamente ininteligível, logo, uma fraude”.

“Se é ininteligível, tende a fraude”, eis um preconceito para se levar em conta, principalmente em ciências humanas. A física quântica me é ininteligível, mas humildemente reconheço que seus textos pressupõem uma enorme construção de base que me falta, de modo que minha suspeita não vai para ela, e sim para minha insuficiência.

Quando o assunto é psicanálise, o pressuposto é de que ela veio para esclarecer, não para obscurecer. Se o texto psicanalítico é ininteligível, eu suspeito que haja uma proposta perversa em curso: “se você não entendeu, é porque você é burro”. 

Imagino quantos alunos de psicanálise, inseguros de suas capacidades intelectuais, reverentes diante daquilo que iria se tornar seu ganha-pão prometido, temerosos de não fazer clientela amanhã, não sucumbiram a essa chantagem e passaram a fingir que compreendiam, mesmo sem má intenção, mesmo se autoiludindo, posando de sábios para colegas ainda mais inseguros do que eles. E com isso passaram a fraude adiante…

Dei muita sorte na vida: quando quis ser psicanalista, escapei da armadilha então em curso de que a única alternativa para o kleinianismo (um pesadelo teórico) era Lacan. Fui orientado por um freudiano formado na Argentina por Angel Garma, por sua vez formado por Theodor Reik, discípulo direto de Freud.

Como eu entendia tudo o que lia de Freud, e nada do que Lacan escrevia, minha adesão ao primeiro foi proporcional à minha repulsa ao segundo. E, devo confessar, nunca tive muitas dúvidas sobre minha inteligência, de modo que aquela chantagem de que o problema não estava no texto, mas em mim, não colou.

Mais tarde fui informado de que aquilo que se conhece de Lacan já é uma transcrição esforçada de seu genro, Jacques-Alain Miller, em busca de clareza (!). Que quem teve acesso aos “textos selvagens” originais de Lacan, esses sim, sabem de fato o que é ser ininteligível.

De modo que sou hesitante em responder qual foi a contribuição de Lacan à psicanálise. A contribuição teórica, não sei mesmo. 

A contribuição à fama da psicanálise, essa infelizmente eu sei: o desprezo maciço que as ciências e a epistemologia têm por ela.



O OUTRO POSSÍVEL - O AMIGO PERGUNTA

 



“Qual seria o oposto do fetichismo, que anula o outro? A interação total com ele?”

Francisco Daudt: Tal coisa não existe, exceto como ideal do Superego, o que costuma gerar, claro, cobranças internas. Toda a nossa base de prazer é autoerótica, masturbatória mesmo; o outro participará dela em graus variados, que vão do zero a algum percentual, mas sem nunca atingir cem… e que flutua, ora para mais, ora para menos, mesmo durante uma relação sexual com a pessoa que mais amamos.

Pense na nossa história com o prazer: um bebê que mama e cai desmaiado depois, ele estava se “relacionando com o outro”? Ou viajando no seu prazer solitário? Lembre-se, ele acabou de sair do útero, não tem noção de nada do mundo, não tem referências para configurar a existência de ninguém mais.

Nós somos um pouco (um pouco?) como ele: mesmo no devaneio apaixonado que orienta uma masturbação desvairada, onde está o outro, senão em nossa cabeça, fruto de nossa imaginação?

“Ah, mas se for no sexo, o outro está completamente presente”.

Completamente? Olhe para si, pense bem se não há flutuações entre o seu barato solitário e a interação ali ocorrendo. Se não há uma constante verificação dos encaixes e desencaixes dos desejos mútuos. Se a imaginação não voa, mesmo naquele momento.

“Ah, tá certo, a paixão é fruto da imaginação, mas o amor é fruto do conhecimento; e no sexo com amor?” Por certo haverá mais interação. Muita negociação já foi feita para ver onde os desejos se encontram, onde se desencontram.

Mesmo assim, se você se lembrar da teoria dos conjuntos, a zona de interseção dos dois círculos nunca será completa, e estará variando sempre. Espero que você (e o outro) tenha na mão os botões de regulagem dessa variação, ou o prazer fatalmente decairá.



quarta-feira, 29 de setembro de 2021

TRATANDO VÍCIO


Diagnosticar vícios e tratar deles não é coisa fácil. Você pode achar que se o vício é de substâncias o diagnóstico seria moleza. Não é. “Ah, eu só bebo socialmente”, “A maconha me ajuda a pensar”, “Eu juro que passo fome, mas só engordo, droga!” Pois é…

Quando o assunto é vício comportamental, a coisa fica mais difícil ainda. Uma historinha para ilustrar: o cliente andava pisando na jaca de seu vício contracultural de postergação, procrastinação, bosta n’água, o nome que você quiser dar para a arte de não fazer nada e ficar culpado por isso, mas dizer que vai fazer, sim, só que amanhã…

Começou a perder sessão, a ter ato falho de se esquecer, de trocar horário. Ao investigar o que havia, me ocorreu que eu estivesse ocupando o papel de Superego cobrador, por mais que fizesse de tudo para não ocupá-lo.

Aí me veio uma cena na cabeça, e perguntei a ele: “Tenho a impressão de que estou que nem aquele cara que se faz de amiguinho da moça, mas a moça fica pensando, “Ah, ele é legal assim, mas no fundo só quer me comer!”

Ele teve o maior ataque de riso! “É isso mesmo! Eu fico esperando a hora em que você vai me cobrar de começar a trabalhar!”

Foi através da comédia que ele se convenceu de que: 1. sim, ele tinha um vício;  2. realmente eu queria que fosse ele o administrador de seu vício.

Às vezes me parece que o psicanalista tem que ser uma espécie de artista… de comédia.




 

“SENTIR-SE OFENDIDO” DÁ STATUS

 



Existe uma corrida consumista atrás de um produto inédito (há até bem pouco tempo): “sentir-se ofendido”. Ele é o mais novo Rolex, o must de Cartier, o super SUV, o Dolce & Gabbana capaz de impressionar os outros e de causar inveja, pela superioridade social que ostenta.

Como todos os símbolos de status que entram em moda, ele atrai pela promessa de te dar um lugar de destaque, fazer que você se exiba como um pavão. Mesmo que não te torne sexualmente atraente, a sedução do prazer sádico de, com sua “grandeza moral”, humilhar os possíveis ofensores é muito sedutora.

Com a vantagem de, ao contrário dos outros símbolos de status, não custar quase nada: está ao alcance de qualquer mídia social em que você possa exibir sua treta amarga: é a democratização do Rolex…

Mas… como o Rolex - e como qualquer coisa que entre na moda - ele só impressiona enquanto serve a poucos. Se rapidamente você pode encontrar uma imitação barata na rua da Alfândega, se todo mundo começa a encher o seu saco com o mesmo carão ofendido por, sei lá, por tudo e por raros pelinhos encontrados em ovo, a moda se populariza… e se vulgariza. Vira vulgar. Deixa de funcionar.

A mão invisível do mercado opera também em produtos subjetivos: o Esperanto, o Anauê Integralista, o politicamente correto, a superioridade moral dos ofendidos… eles passaram e passarão; nós, Mário Quintana.