As férias escolares de verão duravam três inacreditáveis meses, e começavam com a família embarcando no Chevrolet 1953 branco, estofamento de casimira azul marinho, em direção à rodovia Washington Luiz. As janelas iam abertas, naquela era pré ar-condicionado, ventoinhas viradas para dentro, o assento inteiriço dianteiro tinha seu espaço do meio ambicionado pelos filhos como o lugar de mais prestígio no carro. Sim, era também o lugar mais perigoso de se viajar, mas naqueles tempos em que ninguém pensava em perigos automobilísticos, nem se sabia o que eram cintos de segurança, ver o panorama pelo vidro da frente e estar entre os pais era o que importava.
Túnel Rebouças e Santa Bárbara? Nem sonhávamos com eles, alcançava-se a Av. Francisco Bicalho pelo túnel da Rua Alice, o mais antigo da cidade. Passando, já no canal do Mangue, sob o lindo viaduto ferroviário, nosso pai engenheiro explicava que seu construtor havia temido tanto que ele desabasse que tinha se suicidado no dia da sua inauguração, sem ter visto que ele passara no teste, e que continuava resistindo cinqüenta anos depois.
Mas aí começava a paleta de odores – nem todos agradáveis – que marcava a viagem: o primeiro era de café torrado, acre, do café Palheta, bem no início da Avenida do Mangue. Depois, passando pelas barcaças de carvão de pedra inglês que abastecia a companhia de gás, e que era tirado delas por grandes guindastes, nem tínhamos chance de sentir seu cheiro, pois o curtume Carioca nos derrubava com o horror de sua catinga. Os altos silos da fábrica de biscoitos Marilu nos deixavam frustrados: seria um agradável contraste sentir o cheirinho de seus assados. Mas não havia tempo, logo o fedor de sebo da fábrica de sabão Português (da União Fabril Exportadora – UFE) já se apresentava. Para ser logo substituído pelo da refinaria de Manguinhos, também ruim: mercaptanas, segundo nosso professor de química.
Daí para frente era só encantamento, magia mesmo: a serra era um passeio pela floresta frondosa e florida, a estrada cercada por tapetes de marias-sem-vergonha, a mata salpicada de quaresmeiras roxas, de fedegosos amarelos e de embaúbas prateadas. Ao longe, nosso pai nos apontava, ficava o monte Dente de Cão (acho que ele era o “inventor” do nome, tirado da aparência do morro de granito). Passávamos pelo Bar das Onças, onde se dizia haver uma jaula com o bicho (mas nunca paramos para conferir), pelos vendedores de banana-ouro e banana-nanica, cachos e cachos amarelos sob tendas de lona à beira da estrada. Agora sim, o cheiro de mato, de capim-melado, de flores nos inebriava (nos anos 50 havia coisas que inebriavam!).
A passagem sinistra sob o teto de pedra escavada anunciava que estávamos quase no alto. Era a hora de lembrar o acidente com o carro do Getulio Vargas: uma pedra desabara ali, justo quando o carro passava, esmagando o ajudante de ordens que se sentava à frente do Getulio, que escapou incólume.
A viagem a Petrópolis, para mim que sempre adorei carros, era a ocasião de descobrir os novos lançamentos dos automóveis americanos. Sim, era dezembro, mas os modelos do ano seguinte já estavam nas ruas. Nos anos 50, eles mudavam radicalmente de desenho de um ano para o outro. Nunca vou me esquece do deslumbramento que foi ver o primeiro Chevrolet Belair 1957, quatro portas sem coluna, azul piscina de teto creme. Ele é lindo até hoje, tornou-se um clássico de design.
A majestade do hotel Quitandinha anunciava que havíamos chegado a Petrópolis. Não fazia muito que D. Santinha havia provocado a ruína de seu proprietário, o mesmo Rolas que seria sinônimo de smoking alugado, ao induzir seu marido, o presidente Eurico Gaspar Dutra (“How do you do, Dutra?”, “Rau tu iu tu Trumman?”) a proibir os cassinos. Agora era a Coronel Veiga com suas casinhas charmosas, cujo acesso se fazia por pontezinhas sobre o Piabanha. O conceito de ter casas dando a frente para o rio vinha do planejador de Petrópolis, o alemão Julio Koeler, que não queria o rio servindo de fundos (e de recolhedor de dejetos) para as casas. Anos mais tarde ficamos sabendo que ele era conterrâneo dos Daudt (Mainz, Alemanha) e que tinha vindo para o Brasil dois anos depois que nosso trisavô, em 1828.
Em seguida, quase na Av. Quinze (de novembro, homenageando a proclamação da República, que hoje se chama “do Imperador”, homenageando o Império), a Fábrica de Tecidos São Pedro de Alcântara, a Revolução Industrial inglesa transportada para a serra, seus leões a derramar pela boca água colorida de seus tingimentos, o que deixava o Piabanha ora azul, ora verde, ora vermelho (e nós achávamos essa poluição muito divertida).
Sim, hoje eu sei que eram os rios Quitandinha e Palatino, os do centro de Petrópolis, e que eles fazem confluência no obelisco horroroso que lá puseram nos anos 60. Mas nos anos 50, chamávamos todos os rios de Petrópolis de Piabanha.
Logo, pela Avenida Quinze, com um vislumbre da Casa D’Ângelo, do restaurante Falconi (parecia cenário do “Poderoso Chefão”), da Duriez e seus amanteigados, da Itararé (um armazém onde havia tudo), das casas de armas, das que vendiam toda a espécie de bichos e passarinhos, da Casa Galo de fantasias de carnaval onde comprávamos o lança-perfume Rodouro metálico sem nenhuma restrição, passávamos pela estação ferroviária, pelo internato do Colégio Sion, e chegávamos à Rua Buenos Aires, 231, casa de veraneio modesta que pertencera a nosso avô Edmundo da Veiga, que, apesar de haver sido Secretário da Presidência (equivalente hoje a Ministro-Chefe da Casa Civil) de Afonso Pena e de Arthur Bernardes, não havia enriquecido: os tempos eram outros.
Os aromas de Petrópolis, durante o verão, eram deliciosos: a varanda da casa era coberta por um jasmineiro de flores delicadas: uma nuvem de pontos brancos perfumados que tinham o bônus, para nós crianças, de trazer um néctar doce em seu caule. Assim, visão, olfato e paladar eram premiados.
Depois vinham as árvores de magnólias: altas, de copas largas, suas flores cor de damasco eram o perfume do verão, a marca registrada de Petrópolis. Como se não bastasse, seus frutos em forma de cacho de uvas verdes eram ótimos petardos para atiradeira. As hortênsias forravam as calçadas ao ponto de Petrópolis ser conhecida como “cidade das hortênsias”, mas não tinham perfume, eram “só” lindas...
Na cozinha, a gorda Celina, cozinheira de minha avó, produzia uma constante sinfonia de aromas deliciosos: refogados, sopas, empadinhas, pasteis, quitutes de forno; doces (ambrosia – também chamada de leite crespo – e fatias douradas, pudins e bolos, tarecos e mentirinhas, compota de figo verde, colhido na figueira em frente – mas ele precisava ficar protegido dos passarinhos com pequenos sacos de pano –, e a de maçã), tudo isso envolto pelo perfume do fogão de lenha. No guarda-comida repousavam os potes brancos de coalhada, o leite gordo era posto de noite, e de manhã estavam prontas para o café. Também ficava a goiabada de tacho, que a Mila trazia da fazenda, e que comíamos com toneladas de creme fresco, sem pensar em colesterol.
No batente da janela da cozinha morava o pilão de socar alho (um cacófato que só viemos a entender mais tarde, e que repetíamos com um sorriso sacana para ver se era percebido). Celina o socava com sal, e o tempero pronto nos tentava a dar uma roubadinha furtiva com o dedo, para depois lambê-lo. A janela era... uma janela, não uma basculante. De madeira com venezianas, ela se abria inteira para o jardim de rosas da tia Carmen, e aquele céu de azul esmaltado iluminava o ladrilho hidráulico. Na copa, separada da cozinha por uma porta, morava a geladeira que meu avô havia comprado nos anos 20. Era uma General Eletric de compressor e serpentina montados numa grande bola em cima dela, a porta pesada com maçaneta de botequim e isolamento de madeira. Durou uma eternidade, e é capaz de estar funcionando até hoje, pois seu fabricante dava “life-long guaranty” (na época, vendia-se o conceito de ter em casa uma máquina de fazer gelo, em vez de comprá-lo nos caminhões de entrega). Na copa também morava o grande filtro Salus, de barro, e sua água deliciosa.
Ao longe, a estação de trens enviava sua mensagem de apitos e cheiro de carvão de pedra (vindo de Manchester) sendo queimado pelas locomotivas. E havia o ruço, assim se chamava o nevoeiro de Petrópolis: era o momento de inverno em pleno verão. Ele descia pela ladeira da Rua Buenos Aires, em pouco tempo as luminárias de ágata frisada, margaridas de lata verde iluminadas, dos postes de iluminação pública se tornavam imprecisas. O jasmineiro da varanda onde eu passava parte do verão lendo se tornava uma nuvem verde ponteada de branco. Acredite: o ruço de Petrópolis tinha cheiro próprio, e era bom, um cheiro úmido de friagem e de sereno... misturado ao do jasmim. Cada florzinha dele tinha uma atração especial: chupávamos sua haste para beber o docinho do néctar ali contido, antes que algum beija-flor o fizesse.
Os temporais de fim de tarde assustavam pela força, os trovões ribombando, as crianças rezando para Santa Bárbara e São Jerônimo, pedindo para a chuva passar, e em último caso apelando para o ritual de queimar uma palha do Domingo de Ramos, guardada atrás da peanha do santo, na parede. Os santos eram ingênuos, realistas, de gesso colorido. Peanha é algo que ninguém mais conhece: uma pequena base barroca de madeira que lhes servia de pedestal pendurada à parede. Muitas vezes fazia-lhes companhia a folhinha do Coração de Jesus, que ia emagrecendo ao longo do ano, pois cada dia era uma folha, cheia de informações úteis, como as fases da lua e a hora do nascente e do poente, meio de se acertar relógios nas fazendas, antes da Rádio-Relógio Federal.
Quando o dia raiava, um friozinho molhado da chuva de véspera, o cheiro do pão de minuto se evolava da cozinha, mas ainda não era hora do café, e sim da vaca leiteira: um pequeno caminhão carregando um tonel de aço cheio de leite que passava entregando seu produto nas casas. Celina ia com as panelas abastecer a casa. Eu ficava fascinado com o medidor de litro, sua válvula que, torcida para cima, enchia o vidro do medidor, e torcida para baixo, esvaziava o litro nas panelas. O leite era extremamente perecível, precisava ser fervido, sua nata separada para fazer manteiga, era gordo e forte: não se tomava antes da fervura sem se ter uma pequena diarréia.
Nesse departamento não havia o conforto dos dias de hoje: o único banheiro da casa tinha uma descarga de caixa alta, acionada por uma correntinha que se prendia à válvula. A louça era inglesa, Twifords, e a pia era decorada com desenhos em vermelho com motivos florais, sustentada por mãos-francesas de ferro fundido, a torneira de latão com um topo de porcelana branca, onde estava escrito “fria”. Suítes? Nem pensar. Quando, já nos anos 1970, meu pai fez uma grande reforma na casa, perguntou às tias se queriam um banheiro para elas. Beatriz, nascida em 1903, recusou: “dá cheiro no quarto” (!). Sim, elas também usavam urinóis de ágata branca debaixo da cama! Pensando bem, até fazia sentido não ter que atravessar a casa no meio da noite, no frio da madrugada...
Foi um alívio quando meu pai inaugurou, em 1955, uma edícula construída para nós junto à casa: totalmente anos 50, ela era decorada com móveis de pau-marfim de pés de palito e luminárias cônicas de metal colorido furadinho. E tinha um outro banheiro completo, só para nós...
Três anos depois comemoramos com uma procissão o centenário da primeira aparição de Nossa Senhora de Lourdes (11.02.1858), para entronizar numa pequena gruta de seixos rolados construída por meu irmão debaixo da edícula a imagem da Imaculada Conceição. Mais anos 50 do que isso, não conheço.
Não havia armários embutidos, e sim grandes e espelhados armários de madeira trabalhada. Uma excêntrica conhecida nossa, D. Lucília, era muito prática e não fazia malas para o veraneio. Simplesmente mandava embarcar seu armário num caminhão de mudanças e enviava-o para Petrópolis.
Mas a manhã petropolitana estava apenas começando. Depois da vaca leiteira, era hora de ver o marido de D. Noêmia sair de carro, da casa em frente: seu bizarro Ford 1939, preto de duas portas e teto caído atrás fazia um ruído de motor peculiar, seco e metralhado, enquanto ele o tirava da garagem e descia a Buenos Aires, parece que o ouço ainda agora.
Agora sim, era a hora do café. O pão de forma de Petrópolis, louro e envernizado de marrom na parte de cima, era cortado em grossas fatias, postas para torrar na velha torradeira de tampas de metal que se fechavam como mãos postas, e que exigia que se virassem as torradas, para expor ambos os lados. Depois elas seriam rebocadas de manteiga e de geléia de morango. Havia quem acrescentasse creme de leite à bomba calórica, quem se preocupava com isso, então? E não havia gente gorda nos anos 50! O café com leite, o pão de minuto com manteiga se derretendo nele, era abrir, passar e olhar. O queijo de Minas fresco, o Catupiry, a goiabada de tacho. Não havia frutas, não havia chocolate. Nosso primo Luiz Paulo gostava de comer melado de cana (de um pequeno pote de barro de gargalo estreito) com farinha de mandioca, ele era mais velho, tinha direito a essas regalias.
Saíamos de casa sem avisar, pequenos e desacompanhados, andando até a estação para subir na passagem Paulo Barbosa e ver os trens que transitavam por baixo dela, levando baforadas de vapor e fumaça no rosto, e adorando tudo! As locomotivas eram clássicas marias-fumaça feitas em Glasgow, saídas da Revolução Industrial. Havia um momento em que o trânsito era interrompido para que cruzassem a rua: cancelas baixavam ao som de sinetas ritmadas, den-den-den-den, e lá ia o trem em direção a Belo Horizonte, enveredando-se pela fenda estreita dos prédios, e por um túnel que só descobrimos depois que a via férrea virou rua de automóveis: maravilhosa arquitetura ferroviária do século XIX.
Descendo do lado da estação, íamos até o cinema. O cine Esperanto homenageava a utópica língua universal com uma pretensão comovedora: era um galpão coberto de folhas de zinco que faziam uma barulheira infernal quando chovia, mal conseguíamos ouvir o filme. Nas laterais da tela, poemas pintados na parede cantavam loas à paz e ao entendimento mundial que o esperanto traria, santa ingenuidade!
Ele foi o cinema mais barato que já fui: Cr$ 2,00 (dois cruzeiros, a moeda inaugurada por Getulio no pós-guerra, repare no cê, érre, cifrão) a meia-entrada, o equivalente a duas passagens de bonde. Com tudo isso, nós nos deliciávamos com os filmes lá projetados: “Sete noivas para sete irmãos”; “Cantando na chuva”; “Gigi”, e tantos outros musicais maravilhosos dos anos 50... Era um tempo em que, se alguém fazia manha ou fingia um drama, dizia-se que estava “fazendo fita”, encenando como se atuasse num filme, numa fita de cinema.
No fim da rua da estação ficava a Casa Itararé, esquina de Avenida 15 (homenageava o 15 de novembro, proclamação da República, só depois de décadas, quando o governo se sentiu seguro com o novo regime, voltou a ser chamada de Avenida do Imperador). Ela era um armazém chique, precursora das delicatessem, tinha de tudo do bom e do melhor.
Do outro lado do rio, a casa Galo cheia de fantasias de carnaval, máscaras de demônios negros de boca vermelha, colares de havaiana, e muitas, muitas latas cilíndricas douradas do lança-perfume Rodouro Metálico (a Rhodia francesa, presente no Brasil desde 1919, era a fabricante) metálico. Aplicar-lhe a válvula não era operação simples, perdia-se muito cloreto de etila perfumado até que a borrachinha vermelha no fim da haste cromada vedasse o furo. O encanto do lança-perfume estava na rápida vaporização do cloreto de etila, que dava um geladinho na pele de quem o recebia. Estávamos longe de saber seus efeitos entorpecentes, a criançada não o cheirava em lenços então, só jogava nas costas nuas das meninas (ou anestesiava formigões vermelhos, cor de Coca-Cola, típicos de Petrópolis). Mais tarde, proibidos os lança-perfumes, os cheiradores recorriam ao Kelene, cloreto de etila de uso medicinal em ampolas de vidro, para combate da larva migrans (Ancilostoma canis), doença de pele que coçava horrores, pega em terra contaminada por fezes de cães, muito comum nos anos 50 e que nunca mais vi ninguém ter (entre as doenças que sumiram, os furúnculos, as apendicites, as operações de amígdalas e os joelhos ralados das crianças estavam incluídos). A aplicação de Kelene fazia surgir cristais de gelo na pele, o verme era morto por congelamento.
Mais adiante ficava um estabelecimento mágico: a barbearia Salão Paris. Se você puser no Google “Salão Paris Petrópolis século XIX” vai ver a aparência original desse lugar suntuoso, construído para atender os nobres veranistas da época, decorado em estilo mourisco, mas já com as cadeiras de barbeiro americanas (feitas na Filadélfia) estofadas de couro. Claro, nos anos 50 a decoração mourisca já havia mudado, mas o salão continuava esplêndido. Não que eu o freqüentasse, ele era para os muito ricos, mas o visitei com um amigo e fiquei de queixo caído: os amplos espelhos, a iluminação elegante amarelada, e o que mais me impressionou, o aquecedor-umidificador de toalhas cromado (sim, havia fregueses com o rosto coberto e a cadeira reclinada, amaciando a barba que iria ser feita com navalhas Solingen), com um topo em cúpula que se parecia com aquelas coberturas de prato em restaurante chique. Remetia a uma era de glamour que era a cara dos anos 50: coisas bem feitas, capricho nos acabamentos, esmero no serviço, barbeiros grisalhos com aventais imaculados.
Não íamos a restaurantes em Petrópolis, e mesmo no Rio só me lembro do nosso programa de domingo de filme no Cineac Trianon e lanche na leiteria Mineira, na Galeria Cruzeiro do Hotel Avenida, mas não sei como acabei jantando uma vez no restaurante Falconi, na Avenida 15. Tomei uma sopa minestroni, o que mais? A memória é fascinante: uma decoração meio soturna com iluminação âmbar fraca, garçons com a tradicional combinação de paletó branco e gravata borboleta preta se movendo em silêncio. Nos anos 50 não se falava alto em público e crianças não gritavam ou choravam nos restaurantes, os imbecis, nas palavras imortais de Nelson Rodrigues, ainda não haviam perdido a modéstia. Se você viu “O Poderoso Chefão”, na cena em que Michael Corleone mata Solozzo e o chefe de policia McCluskey, então você tem bem a ideia de como era o Falconi. Sempre que a revejo sou remetido ao restaurante petropolitano.
Pela Av. 15 ainda víamos a Casa Duriez, com seus potes de creme fresco, os biscoitos amanteigados e decoração em tons de creme (hoje “off-white”) e azul; a loja de ferragens “Ao Regador” (ainda está lá), que era o sonho de qualquer menino; a papelaria onde se vendiam livros – não havia livrarias – e onde comprei os primeiros livros de Monteiro Lobato, “Reinações de Narizinho” foi o inaugural, e depois nunca mais parei; havia os cinemas chiques, Petrópolis e Capitólio, onde reinavam as chanchadas da Atlântida. O D. Pedro era considerado “poeira”, não sei porquê, já que nunca chamamos o Esperanto de poeira e ele era muito mais modesto...
O magazine Casa Gelli era uma loja impressionante para uma criança: tinha “de um tudo” (expressão bem da época), de móveis a geladeiras, além de ter uma entrada imponente, de alto pé direito, com grande lustre de madeira.
Nas Lojas Americanas havia brinquedos, sim, mas o grande sucesso era sua lanchonete ao estilo... bem, ao estilo americano, com banquinhos no balcão e sundae de morango, além do primeiro Milk-Shake de chocolate que tomei. A “vaca preta” era uma mistura espumante de sorvete de creme com Coca-Cola, nós adorávamos...
Ao lado ficava o Colégio Werneck, grande e vazio, pois estava no meio das férias, como nós.
Saindo da Avenida 15 a atração principal era a Praça D. Afonso (era o primogênito de D Pedro II que morreu precocemente), hoje “da Liberdade”. Nela, passeávamos de carro de bodinho, fascinados pela “obra” dos bodes (como obravam!) em formato de caroços de azeitona. Lá também um amigo de minha irmã tirou uma foto mágica, com uma máquina que revelava na hora, a primeira Polaroid, super novidade, só precisava passar sobre a foto uma barra de fixador cor de rosa depois de “revelada”.
Nada superava, no entanto, o Rinque Marowil: um modesto cimentado em frente à casa de Othon Bezerra de Mello que nos parecia imenso, onde nossos patins de rodas de aço (o meu, da marca Estrela) riscavam o chão com um barulho que nos parecia completamente natural. Quem não trazia patins podia alugá-los: havia centenas deles empilhados na estante, de numerações variadas. Ficávamos horas a dar voltas e voltas, às vezes de mãos dadas em fileira, o último da fila voava na velocidade angular, a invejar aqueles que sabiam andar de costas.
Em 1958 fui passar meu primeiro inverno petropolitano fora do bairro da Estação, na casa do primo Paulo, no Valparaíso. Fazia um frio do capeta, mas a casa tinha lareira e relógio cuco. Ficava espreitando as horas certas para ver o passarinho aparecer, e intrigado, imaginando como seria a vida dele dentro da casinha. Passeamos Petrópolis inteira de bicicleta, eu com dez anos, ele com catorze, uma atividade temerária que não permitiria jamais a meus filhos, mas... ninguém pensava nisso, na época. Foi assim que conheci Petrópolis para além do meu bairro. Da casa dele ia-se a pé por uma escadaria até a Rua Coronel Veiga, onde, atrás de um posto Gulf de gasolina (antes de virar Ipiranga) havia um paredão com escadarias íngrimes para escorrer águas pluviais. Nós, claro, nos metemos a escalá-las e, quando eu estava quase no topo, olhei para baixo e tive uma das visões mais aterrorizantes de minha vida: Paulo se desequilibrou e caiu solto no ar, uma queda de dez metros que me pareceu em câmara lenta. Estava certo de que ia encontrá-lo morto lá em baixo... Escapou ileso, vai entender!
Fomos ao cinema ver “As treze cadeiras”, filme da Atlântida com Oscarito e Zé Trindade, no Capitólio. Mas fui barrado, era “impróprio até 14 anos”. Fui obrigado a ver uma porcaria chamada “Osso, amor e papagaios”, no D. Pedro. Lá também vi, mas no ano seguinte, “Imitação da vida”, com a Lana Turner, um dramalhão tão triste, mas tão triste, que chegava a dar vontade de rir...
Num daqueles bairros de nome alemão, a Mosela (Mosel; Bingen; Ingelheim, que era para se pronunciar “Inguelráim”, mas ninguém chamava assim), descobrimos um navio atracado no meio do rio que a margeava a rua. Ele era feito de concreto! Soubemos mais tarde que era o resto de uma antiga casa noturna desativada.
No Valparaíso, passávamos por uma casa com história sinistra: Stefan Zweig, o escritor, havia se suicidado ali com sua mulher. Nós achávamos que era uma casa enorme com terreno ajardinado de ciprestes na descida para as duas pontes, e pensávamos que ela era adequadamente assustadora. Só recentemente fui saber que era a casa errada: a de Zweig era uma modesta, quase na beira do rio.
De volta à Rua Buenos Aires, recolhi-me à cadeira de balanço da varanda, lendo Seleções de Reader’s Digest dos anos 40 enquanto a noite caía, as cigarras paravam de cantar, e já tinha o apetite despertado pelo aroma das empadinhas da Celina (as de camarão tinham uma bolotinha de massa em cima, as de galinha não) e da sopa de tomate, que anunciava a chegada da quarta entre as cinco refeições que se faziam em Petrópolis dos anos 50: café; almoço; lanche; jantar e ceia.
O sereno caía, e o sino do colégio Sion tocava a hora cheia...