quarta-feira, 29 de setembro de 2021

PSICANÁLISE E FELICIDADE - O AMIGO PERGUNTA

 


“A psicanálise é um meio de se ter felicidade?”

Francisco Daudt: Um dos momentos mais belos da história da humanidade é, a meu ver, aquele em que Benjamin Franklin (1776), ao notar que o fecho da declaração de independência americana afirmava o direito à propriedade privada, considerou-o muito mesquinho. Num gesto de grandeza de espírito, ele o substituiu por “direito à busca da felicidade”.

A psicanálise vê a felicidade como um caminho. Como no célebre clichê, “a felicidade não é um porto a que se chegue; é um farol-guia e um jeito de viajar”.

Seu norte, sua bússola, seu farol-guia são o aprendizado sobre o próprio desejo e sobre os meios de satisfazê-lo, mais o desenvolvimento da consciência dos seus desvios.

Isso conquista terreno para o Ego: trago para meu Eu (o Ego) valores prezados que moravam no Superego (“Eu não ‘tenho’ que ser honesto; Eu gosto e quero ser honesto”). Tiro do meu inconsciente (do Id) perturbações que me (de meu Eu) afastavam de ser sujeito dos meus verbos, dono da minha história, envolvido que estava nos assuntos e problemas dos meus pais (complexo de Édipo).

É esse Ego (esse Eu) cada vez mais liberto que assumirá o leme da minha vida, que rumará até o fim na trilha de aprendiz do meu desejo.

E ele será necessariamente virtuoso, porque expurgado da ganância e da predação (doenças viciosas) e guiado pelo amor à sabedoria (soma da inteligência com a autoconsciência), aquilo que os gregos chamavam de… filosofia.



VÍCIOS SEXUAIS - O AMIGO PERGUNTA



“Como a psicanálise vê os vícios sexuais?”

Francisco Daudt: Começando pela definição: para que sejam vícios, as práticas sexuais precisam ser compulsivas, alugantes, repetitivas, monotemáticas, e causar dano aos principais interesses da pessoa. Não há vício sem dano.

Isto posto, vamos ao que eles têm em comum, que eu não vou nem tentar fazer uma lista aqui, pois seria infindável.

Todos os vícios sexuais derivam do fetichismo. O fetiche é um truque (vem do francês “fetiche”, que veio do português “feitiço”) para eliminar a necessidade de negociação com o outro e as diferenças que ele representa. É uma espécie de masturbação sofisticada (pois inclui mais alguém), que arranja um meio de anular a existência do mais alguém para continuar masturbatória. O viciado não se relaciona com uma pessoa, mas com o fetiche: com a fantasia de babá, com a crueldade sadomasoquista, com… bem, como disse, a lista é infindável.

Todos os vícios sexuais são transgressores: eles contrariam os mandamentos do Superego, grande parte do prazer que causam é a vingança contra a cultura que impôs esses mandamentos. Todos eles dizem “É errado? Foda-se, vou fazer!” É claro que a primeira transgressão é “foda-se você (o outro em cena), eu te anulei, você é apenas meu instrumento de gozo, otário!”

Assim, os vícios sexuais têm um apelo múltiplo: o prazer físico, por certo; o prazer de vingança contra a cultura e o Superego; a atração que nossa espécie tem pelo “hübris”, a desmesura, o excesso, a intensidade, a dopamina instantânea; o prazer de alívio (“Deu duro? Toma um Dreher!”).

Qualquer viciado é prisioneiro do prazer imediatista, o que vai tirando dele a capacidade de conhecer o prazer de construção (o sexo amoroso é fruto de necessária construção).

Isso o empurra cada vez mais para o vício, num círculo… vicioso.

PS. O vício em masturbação é muito raro. É preciso considerar que toda atividade sexual começa no autoerotismo: é a partir dele que aprendemos o prazer negociado.

PS2. O prazer de transgressão sexual não implica vício, necessariamente. Toda vida sexual começa transgressora, a cultura não acolhe bem a sexualidade infantil.


domingo, 26 de setembro de 2021

Petrópolis – Anos 50

 



As férias escolares de verão duravam três inacreditáveis meses, e começavam com a família embarcando no Chevrolet 1953 branco, estofamento de casimira azul marinho, em direção à rodovia Washington Luiz. As janelas iam abertas, naquela era pré ar-condicionado, ventoinhas viradas para dentro, o assento inteiriço dianteiro tinha seu espaço do meio ambicionado pelos filhos como o lugar de mais prestígio no carro. Sim, era também o lugar mais perigoso de se viajar, mas naqueles tempos em que ninguém pensava em perigos automobilísticos, nem se sabia o que eram cintos de segurança, ver o panorama pelo vidro da frente e estar entre os pais era o que importava.

Túnel Rebouças e Santa Bárbara? Nem sonhávamos com eles, alcançava-se a Av. Francisco Bicalho pelo túnel da Rua Alice, o mais antigo da cidade. Passando, já no canal do Mangue, sob o lindo viaduto ferroviário, nosso pai engenheiro explicava que seu construtor havia temido tanto que ele desabasse que tinha se suicidado no dia da sua inauguração, sem ter visto que ele passara no teste, e que continuava resistindo cinqüenta anos depois. 

Mas aí começava a paleta de odores – nem todos agradáveis – que marcava a viagem: o primeiro era de café torrado, acre, do café Palheta, bem no início da Avenida do Mangue. Depois, passando pelas barcaças de carvão de pedra inglês que abastecia a companhia de gás, e que era tirado delas por grandes guindastes, nem tínhamos chance de sentir seu cheiro, pois o curtume Carioca nos derrubava com o horror de sua catinga. Os altos silos da fábrica de biscoitos Marilu nos deixavam frustrados: seria um agradável contraste sentir o cheirinho de seus assados. Mas não havia tempo, logo o fedor de sebo da fábrica de sabão Português (da União Fabril Exportadora – UFE) já se apresentava. Para ser logo substituído pelo da refinaria de Manguinhos, também ruim: mercaptanas, segundo nosso professor de química.

Daí para frente era só encantamento, magia mesmo: a serra era um passeio pela floresta frondosa e florida, a estrada cercada por tapetes de marias-sem-vergonha, a mata salpicada de quaresmeiras roxas, de fedegosos amarelos e de embaúbas prateadas. Ao longe, nosso pai nos apontava, ficava o monte Dente de Cão (acho que ele era o “inventor” do nome, tirado da aparência do morro de granito). Passávamos pelo Bar das Onças, onde se dizia haver uma jaula com o bicho (mas nunca paramos para conferir), pelos vendedores de banana-ouro e banana-nanica, cachos e cachos amarelos sob tendas de lona à beira da estrada. Agora sim, o cheiro de mato, de capim-melado, de flores nos inebriava (nos anos 50 havia coisas que inebriavam!).

A passagem sinistra sob o teto de pedra escavada anunciava que estávamos quase no alto. Era a hora de lembrar o acidente com o carro do Getulio Vargas: uma pedra desabara ali, justo quando o carro passava, esmagando o ajudante de ordens que se sentava à frente do Getulio, que escapou incólume.

A viagem a Petrópolis, para mim que sempre adorei carros, era a ocasião de descobrir os novos lançamentos dos automóveis americanos. Sim, era dezembro, mas os modelos do ano seguinte já estavam nas ruas. Nos anos 50, eles mudavam radicalmente de desenho de um ano para o outro. Nunca vou me esquece do deslumbramento que foi ver o primeiro Chevrolet Belair 1957, quatro portas sem coluna, azul piscina de teto creme. Ele é lindo até hoje, tornou-se um clássico de design.

A majestade do hotel Quitandinha anunciava que havíamos chegado a Petrópolis. Não fazia muito que D. Santinha havia provocado a ruína de seu proprietário, o mesmo Rolas que seria sinônimo de smoking alugado, ao induzir seu marido, o presidente Eurico Gaspar Dutra (“How do you do, Dutra?”, “Rau tu iu tu Trumman?”) a proibir os cassinos. Agora era a Coronel Veiga com suas casinhas charmosas, cujo acesso se fazia por pontezinhas sobre o Piabanha. O conceito de ter casas dando a frente para o rio vinha do planejador de Petrópolis, o alemão Julio Koeler, que não queria o rio servindo de fundos (e de recolhedor de dejetos) para as casas. Anos mais tarde ficamos sabendo que ele era conterrâneo dos Daudt (Mainz, Alemanha) e que tinha vindo para o Brasil dois anos depois que nosso trisavô, em 1828. 

Em seguida, quase na Av. Quinze (de novembro, homenageando a proclamação da República, que hoje se chama “do Imperador”, homenageando o Império), a Fábrica de Tecidos São Pedro de Alcântara, a Revolução Industrial inglesa transportada para a serra, seus leões a derramar pela boca água colorida de seus tingimentos, o que deixava o Piabanha ora azul, ora verde, ora vermelho (e nós achávamos essa poluição muito divertida). 

Sim, hoje eu sei que eram os rios Quitandinha e Palatino, os do centro de Petrópolis, e que eles fazem confluência no obelisco horroroso que lá puseram nos anos 60. Mas nos anos 50, chamávamos todos os rios de Petrópolis de Piabanha.

Logo, pela Avenida Quinze, com um vislumbre da Casa D’Ângelo, do restaurante Falconi (parecia cenário do “Poderoso Chefão”), da Duriez e seus amanteigados, da Itararé (um armazém onde havia tudo), das casas de armas, das que vendiam toda a espécie de bichos e passarinhos, da Casa Galo de fantasias de carnaval onde comprávamos o lança-perfume Rodouro metálico sem nenhuma restrição, passávamos pela estação ferroviária, pelo internato do Colégio Sion, e chegávamos à Rua Buenos Aires, 231, casa de veraneio modesta que pertencera a nosso avô Edmundo da Veiga, que, apesar de haver sido Secretário da Presidência (equivalente hoje a Ministro-Chefe da Casa Civil) de Afonso Pena e de Arthur Bernardes, não havia enriquecido: os tempos eram outros. 

Os aromas de Petrópolis, durante o verão, eram deliciosos: a varanda da casa era coberta por um jasmineiro de flores delicadas: uma nuvem de pontos brancos perfumados que tinham o bônus, para nós crianças, de trazer um néctar doce em seu caule. Assim, visão, olfato e paladar eram premiados.

Depois vinham as árvores de magnólias: altas, de copas largas, suas flores cor de damasco eram o perfume do verão, a marca registrada de Petrópolis. Como se não bastasse, seus frutos em forma de cacho de uvas verdes eram ótimos petardos para atiradeira. As hortênsias forravam as calçadas ao ponto de Petrópolis ser conhecida como “cidade das hortênsias”, mas não tinham perfume, eram “só” lindas...

Na cozinha, a gorda Celina, cozinheira de minha avó, produzia uma constante sinfonia de aromas deliciosos: refogados, sopas, empadinhas, pasteis, quitutes de forno; doces (ambrosia – também chamada de leite crespo – e fatias douradas, pudins e bolos, tarecos e mentirinhas, compota de figo verde, colhido na figueira em frente – mas ele precisava ficar protegido dos passarinhos com pequenos sacos de pano –, e a de maçã), tudo isso envolto pelo perfume do fogão de lenha. No guarda-comida repousavam os potes brancos de coalhada, o leite gordo era posto de noite, e de manhã estavam prontas para o café. Também ficava a goiabada de tacho, que a Mila trazia da fazenda, e que comíamos com toneladas de creme fresco, sem pensar em colesterol.

No batente da janela da cozinha morava o pilão de socar alho (um cacófato que só viemos a entender mais tarde, e que repetíamos com um sorriso sacana para ver se era percebido). Celina o socava com sal, e o tempero pronto nos tentava a dar uma roubadinha furtiva com o dedo, para depois lambê-lo. A janela era... uma janela, não uma basculante. De madeira com venezianas, ela se abria inteira para o jardim de rosas da tia Carmen, e aquele céu de azul esmaltado iluminava o ladrilho hidráulico. Na copa, separada da cozinha por uma porta, morava a geladeira que meu avô havia comprado nos anos 20. Era uma General Eletric de compressor e serpentina montados numa grande bola em cima dela, a porta pesada com maçaneta de botequim e isolamento de madeira. Durou uma eternidade, e é capaz de estar funcionando até hoje, pois seu fabricante dava “life-long guaranty” (na época, vendia-se o conceito de ter em casa uma máquina de fazer gelo, em vez de comprá-lo nos caminhões de entrega). Na copa também morava o grande filtro Salus, de barro, e sua água deliciosa.

Ao longe, a estação de trens enviava sua mensagem de apitos e cheiro de carvão de pedra (vindo de Manchester) sendo queimado pelas locomotivas. E havia o ruço, assim se chamava o nevoeiro de Petrópolis: era o momento de inverno em pleno verão. Ele descia pela ladeira da Rua Buenos Aires, em pouco tempo as luminárias de ágata frisada, margaridas de lata verde iluminadas, dos postes de iluminação pública se tornavam imprecisas. O jasmineiro da varanda onde eu passava parte do verão lendo se tornava uma nuvem verde ponteada de branco. Acredite: o ruço de Petrópolis tinha cheiro próprio, e era bom, um cheiro úmido de friagem e de sereno... misturado ao do jasmim. Cada florzinha dele tinha uma atração especial: chupávamos sua haste para beber o docinho do néctar ali contido, antes que algum beija-flor o fizesse.

Os temporais de fim de tarde assustavam pela força, os trovões ribombando, as crianças rezando para Santa Bárbara e São Jerônimo, pedindo para a chuva passar, e em último caso apelando para o ritual de queimar uma palha do Domingo de Ramos, guardada atrás da peanha do santo, na parede. Os santos eram ingênuos, realistas, de gesso colorido. Peanha é algo que ninguém mais conhece: uma pequena base barroca de madeira que lhes servia de pedestal pendurada à parede. Muitas vezes fazia-lhes companhia a folhinha do Coração de Jesus, que ia emagrecendo ao longo do ano, pois cada dia era uma folha, cheia de informações úteis, como as fases da lua e a hora do nascente e do poente, meio de se acertar relógios nas fazendas, antes da Rádio-Relógio Federal.

Quando o dia raiava, um friozinho molhado da chuva de véspera, o cheiro do pão de minuto se evolava da cozinha, mas ainda não era hora do café, e sim da vaca leiteira: um pequeno caminhão carregando um tonel de aço cheio de leite que passava entregando seu produto nas casas. Celina ia com as panelas abastecer a casa. Eu ficava fascinado com o medidor de litro, sua válvula que, torcida para cima, enchia o vidro do medidor, e torcida para baixo, esvaziava o litro nas panelas. O leite era extremamente perecível, precisava ser fervido, sua nata separada para fazer manteiga, era gordo e forte: não se tomava antes da fervura sem se ter uma pequena diarréia. 

Nesse departamento não havia o conforto dos dias de hoje: o único banheiro da casa tinha uma descarga de caixa alta, acionada por uma correntinha que se prendia à válvula. A louça era inglesa, Twifords, e a pia era decorada com desenhos em vermelho com motivos florais, sustentada por mãos-francesas de ferro fundido, a torneira de latão com um topo de porcelana branca, onde estava escrito “fria”. Suítes? Nem pensar. Quando, já nos anos 1970, meu pai fez uma grande reforma na casa, perguntou às tias se queriam um banheiro para elas. Beatriz, nascida em 1903, recusou: “dá cheiro no quarto” (!). Sim, elas também usavam urinóis de ágata branca debaixo da cama! Pensando bem, até fazia sentido não ter que atravessar a casa no meio da noite, no frio da madrugada...

Foi um alívio quando meu pai inaugurou, em 1955, uma edícula construída para nós junto à casa: totalmente anos 50, ela era decorada com móveis de pau-marfim de pés de palito e luminárias cônicas de metal colorido furadinho. E tinha um outro banheiro completo, só para nós...

Três anos depois comemoramos com uma procissão o centenário da primeira aparição de Nossa Senhora de Lourdes (11.02.1858), para entronizar numa pequena gruta de seixos rolados construída por meu irmão debaixo da edícula a imagem da Imaculada Conceição. Mais anos 50 do que isso, não conheço.

Não havia armários embutidos, e sim grandes e espelhados armários de madeira trabalhada. Uma excêntrica conhecida nossa, D. Lucília, era muito prática e não fazia malas para o veraneio. Simplesmente mandava embarcar seu armário num caminhão de mudanças e enviava-o para Petrópolis.

Mas a manhã petropolitana estava apenas começando. Depois da vaca leiteira, era hora de ver o marido de D. Noêmia sair de carro, da casa em frente: seu bizarro Ford 1939, preto de duas portas e teto caído atrás fazia um ruído de motor peculiar, seco e metralhado, enquanto ele o tirava da garagem e descia a Buenos Aires, parece que o ouço ainda agora.

Agora sim, era a hora do café. O pão de forma de Petrópolis, louro e envernizado de marrom na parte de cima, era cortado em grossas fatias, postas para torrar na velha torradeira de tampas de metal que se fechavam como mãos postas, e que exigia que se virassem as torradas, para expor ambos os lados. Depois elas seriam rebocadas de manteiga e de geléia de morango. Havia quem acrescentasse creme de leite à bomba calórica, quem se preocupava com isso, então? E não havia gente gorda nos anos 50! O café com leite, o pão de minuto com manteiga se derretendo nele, era abrir, passar e olhar. O queijo de Minas fresco, o Catupiry, a goiabada de tacho. Não havia frutas, não havia chocolate. Nosso primo Luiz Paulo gostava de comer melado de cana (de um pequeno pote de barro de gargalo estreito) com farinha de mandioca, ele era mais velho, tinha direito a essas regalias.

Saíamos de casa sem avisar, pequenos e desacompanhados, andando até a estação para subir na passagem Paulo Barbosa e ver os trens que transitavam por baixo dela, levando baforadas de vapor e fumaça no rosto, e adorando tudo! As locomotivas eram clássicas marias-fumaça feitas em Glasgow, saídas da Revolução Industrial. Havia um momento em que o trânsito era interrompido para que cruzassem a rua: cancelas baixavam ao som de sinetas ritmadas, den-den-den-den, e lá ia o trem em direção a Belo Horizonte, enveredando-se pela fenda estreita dos prédios, e por um túnel que só descobrimos depois que a via férrea virou rua de automóveis: maravilhosa arquitetura ferroviária do século XIX. 

Descendo do lado da estação, íamos até o cinema. O cine Esperanto homenageava a utópica língua universal com uma pretensão comovedora: era um galpão coberto de folhas de zinco que faziam uma barulheira infernal quando chovia, mal conseguíamos ouvir o filme. Nas laterais da tela, poemas pintados na parede cantavam loas à paz e ao entendimento mundial que o esperanto traria, santa ingenuidade! 

Ele foi o cinema mais barato que já fui: Cr$ 2,00 (dois cruzeiros, a moeda inaugurada por Getulio no pós-guerra, repare no cê, érre, cifrão) a meia-entrada, o equivalente a duas passagens de bonde. Com tudo isso, nós nos deliciávamos com os filmes lá projetados: “Sete noivas para sete irmãos”; “Cantando na chuva”; “Gigi”, e tantos outros musicais maravilhosos dos anos 50... Era um tempo em que, se alguém fazia manha ou fingia um drama, dizia-se que estava “fazendo fita”, encenando como se atuasse num filme, numa fita de cinema.

No fim da rua da estação ficava a Casa Itararé, esquina de Avenida 15 (homenageava o 15 de novembro, proclamação da República, só depois de décadas, quando o governo se sentiu seguro com o novo regime, voltou a ser chamada de Avenida do Imperador). Ela era um armazém chique, precursora das delicatessem, tinha de tudo do bom e do melhor.

Do outro lado do rio, a casa Galo cheia de fantasias de carnaval, máscaras de demônios negros de boca vermelha, colares de havaiana, e muitas, muitas latas cilíndricas douradas do lança-perfume Rodouro Metálico (a Rhodia francesa, presente no Brasil desde 1919, era a fabricante) metálico. Aplicar-lhe a válvula não era operação simples, perdia-se muito cloreto de etila perfumado até que a borrachinha vermelha no fim da haste cromada vedasse o furo. O encanto do lança-perfume estava na rápida vaporização do cloreto de etila, que dava um geladinho na pele de quem o recebia. Estávamos longe de saber seus efeitos entorpecentes, a criançada não o cheirava em lenços então, só jogava nas costas nuas das meninas (ou anestesiava formigões vermelhos, cor de Coca-Cola, típicos de Petrópolis). Mais tarde, proibidos os lança-perfumes, os cheiradores recorriam ao Kelene, cloreto de etila de uso medicinal em ampolas de vidro, para combate da larva migrans (Ancilostoma canis), doença de pele que coçava horrores, pega em terra contaminada por fezes de cães, muito comum nos anos 50 e que nunca mais vi ninguém ter (entre as doenças que sumiram, os furúnculos, as apendicites, as operações de amígdalas e os joelhos ralados das crianças estavam incluídos). A aplicação de Kelene fazia surgir cristais de gelo na pele, o verme era morto por congelamento.

Mais adiante ficava um estabelecimento mágico: a barbearia Salão Paris. Se você puser no Google “Salão Paris Petrópolis século XIX” vai ver a aparência original desse lugar suntuoso, construído para atender os nobres veranistas da época, decorado em estilo mourisco, mas já com as cadeiras de barbeiro americanas (feitas na Filadélfia) estofadas de couro. Claro, nos anos 50 a decoração mourisca já havia mudado, mas o salão continuava esplêndido. Não que eu o freqüentasse, ele era para os muito ricos, mas o visitei com um amigo e fiquei de queixo caído: os amplos espelhos, a iluminação elegante amarelada, e o que mais me impressionou, o aquecedor-umidificador de toalhas cromado (sim, havia fregueses com o rosto coberto e a cadeira reclinada, amaciando a barba que iria ser feita com navalhas Solingen), com um topo em cúpula que se parecia com aquelas coberturas de prato em restaurante chique. Remetia a uma era de glamour que era a cara dos anos 50: coisas bem feitas, capricho nos acabamentos, esmero no serviço, barbeiros grisalhos com aventais imaculados.

Não íamos a restaurantes em Petrópolis, e mesmo no Rio só me lembro do nosso programa de domingo de filme no Cineac Trianon e lanche na leiteria Mineira, na Galeria Cruzeiro do Hotel Avenida, mas não sei como acabei jantando uma vez no restaurante Falconi, na Avenida 15. Tomei uma sopa minestroni, o que mais? A memória é fascinante: uma decoração meio soturna com iluminação âmbar fraca, garçons com a tradicional combinação de paletó branco e gravata borboleta preta se movendo em silêncio. Nos anos 50 não se falava alto em público e crianças não gritavam ou choravam nos restaurantes, os imbecis, nas palavras imortais de Nelson Rodrigues, ainda não haviam perdido a modéstia. Se você viu “O Poderoso Chefão”, na cena em que Michael Corleone mata Solozzo e o chefe de policia McCluskey, então você tem bem a ideia de como era o Falconi. Sempre que a revejo sou remetido ao restaurante petropolitano.

Pela Av. 15 ainda víamos a Casa Duriez, com seus potes de creme fresco, os biscoitos amanteigados e decoração em tons de creme (hoje “off-white”) e azul; a loja de ferragens “Ao Regador” (ainda está lá), que era o sonho de qualquer menino; a papelaria onde se vendiam livros – não havia livrarias – e onde comprei os primeiros livros de Monteiro Lobato, “Reinações de Narizinho” foi o inaugural, e depois nunca mais parei; havia os cinemas chiques, Petrópolis e Capitólio, onde reinavam as chanchadas da Atlântida. O D. Pedro era considerado “poeira”, não sei porquê, já que nunca chamamos o Esperanto de poeira e ele era muito mais modesto...

O magazine Casa Gelli era uma loja impressionante para uma criança: tinha “de um tudo” (expressão bem da época), de móveis a geladeiras, além de ter uma entrada imponente, de alto pé direito, com grande lustre de madeira.

Nas Lojas Americanas havia brinquedos, sim, mas o grande sucesso era sua lanchonete ao estilo... bem, ao estilo americano, com banquinhos no balcão e sundae de morango, além do primeiro Milk-Shake de chocolate que tomei. A “vaca preta” era uma mistura espumante de sorvete de creme com Coca-Cola, nós adorávamos...

Ao lado ficava o Colégio Werneck, grande e vazio, pois estava no meio das férias, como nós.

Saindo da Avenida 15 a atração principal era a Praça D. Afonso (era o primogênito de D Pedro II que morreu precocemente), hoje “da Liberdade”. Nela, passeávamos de carro de bodinho, fascinados pela “obra” dos bodes (como obravam!) em formato de caroços de azeitona. Lá também um amigo de minha irmã tirou uma foto mágica, com uma máquina que revelava na hora, a primeira Polaroid, super novidade, só precisava passar sobre a foto uma barra de fixador cor de rosa depois de “revelada”.

Nada superava, no entanto, o Rinque Marowil: um modesto cimentado em frente à casa de Othon Bezerra de Mello que nos parecia imenso, onde nossos patins de rodas de aço (o meu, da marca Estrela) riscavam o chão com um barulho que nos parecia completamente natural. Quem não trazia patins podia alugá-los: havia centenas deles empilhados na estante, de numerações variadas. Ficávamos horas a dar voltas e voltas, às vezes de mãos dadas em fileira, o último da fila voava na velocidade angular, a invejar aqueles que sabiam andar de costas.

Em 1958 fui passar meu primeiro inverno petropolitano fora do bairro da Estação, na casa do primo Paulo, no Valparaíso. Fazia um frio do capeta, mas a casa tinha lareira e relógio cuco. Ficava espreitando as horas certas para ver o passarinho aparecer, e intrigado, imaginando como seria a vida dele dentro da casinha. Passeamos Petrópolis inteira de bicicleta, eu com dez anos, ele com catorze, uma atividade temerária que não permitiria jamais a meus filhos, mas... ninguém pensava nisso, na época. Foi assim que conheci Petrópolis para além do meu bairro. Da casa dele ia-se a pé por uma escadaria até a Rua Coronel Veiga, onde, atrás de um posto Gulf de gasolina (antes de virar Ipiranga) havia um paredão com escadarias íngrimes para escorrer águas pluviais. Nós, claro, nos metemos a escalá-las e, quando eu estava quase no topo, olhei para baixo e tive uma das visões mais aterrorizantes de minha vida: Paulo se desequilibrou e caiu solto no ar, uma queda de dez metros que me pareceu em câmara lenta. Estava certo de que ia encontrá-lo morto lá em baixo... Escapou ileso, vai entender!

Fomos ao cinema ver “As treze cadeiras”, filme da Atlântida com Oscarito e Zé Trindade, no Capitólio. Mas fui barrado, era “impróprio até 14 anos”. Fui obrigado a ver uma porcaria chamada “Osso, amor e papagaios”, no D. Pedro. Lá também vi, mas no ano seguinte, “Imitação da vida”, com a Lana Turner, um dramalhão tão triste, mas tão triste, que chegava a dar vontade de rir...

Num daqueles bairros de nome alemão, a Mosela (Mosel; Bingen; Ingelheim, que era para se pronunciar “Inguelráim”, mas ninguém chamava assim), descobrimos um navio atracado no meio do rio que a margeava a rua. Ele era feito de concreto! Soubemos mais tarde que era o resto de uma antiga casa noturna desativada.

No Valparaíso, passávamos por uma casa com história sinistra: Stefan Zweig, o escritor, havia se suicidado ali com sua mulher. Nós achávamos que era uma casa enorme com terreno ajardinado de ciprestes na descida para as duas pontes, e pensávamos que ela era adequadamente assustadora. Só recentemente fui saber que era a casa errada: a de Zweig era uma modesta, quase na beira do rio.

De volta à Rua Buenos Aires, recolhi-me à cadeira de balanço da varanda, lendo Seleções de Reader’s Digest dos anos 40 enquanto a noite caía, as cigarras paravam de cantar, e já tinha o apetite despertado pelo aroma das empadinhas da Celina (as de camarão tinham uma bolotinha de massa em cima, as de galinha não) e da sopa de tomate, que anunciava a chegada da quarta entre as cinco refeições que se faziam em Petrópolis dos anos 50: café; almoço; lanche; jantar e ceia.

O sereno caía, e o sino do colégio Sion tocava a hora cheia...

domingo, 19 de setembro de 2021

VÍCIOS COMPORTAMENTAIS - F.O.M.O. - “fear of missing out”

 


Claramente despertado pelas redes sociais e a dopamina que os “likes” liberam, o f.o.m.o. consiste em você compulsivamente ter que verificar se não está perdendo alguma coisa, alguém, algum programa, alguma mensagem que possa ser melhor do que a atividade anterior/atual.

Seja ao estar com amigos, família, colegas de trabalho, ou mesmo na cama fazendo sexo, “não custa” dar uma olhada na telinha do celular, uma conferida lá. Vai que…

A propósito de fazer sexo, ouvi relatos de a pessoa entreter cinco “conversas” simultâneas, numa espécie de orgia virtual.

Lembrando, só é vício se há compulsão, repetição, síndrome de abstinência, e prejuízo aos seus principais interesses: sim, há rompimentos e demissões causados pelo f.o.m.o.


TRATAMENTO DOS VÍCIOS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Como a psicanálise trata dos vícios? Eles têm cura?”

Francisco Daudt: Existe uma anedota que pergunta:
“Quantos psicanalistas são necessários para se trocar uma lâmpada”.
“Um só. Mas é preciso que a lâmpada queira muuuito ser trocada”.

Assim também é com os vícios. O que vou registrar aqui é como penso que a psicanálise deveria tratar dos vícios. É minha proposta, minha visão pessoal, fruto de minhas pesquisas clínicas.

Tudo começa, portanto, na consciência de que se tem um vício. É claro que os de substâncias são mais fáceis de se ter essa consciência… exceto no caso do álcool. Ele é tão incorporado como hábito social que a autoilusão de “eu só bebo socialmente” é muito tentadora.

Já os vícios de comportamento, ah, esses são mais difíceis de se reconhecer. A boa pergunta é: “isso está atrapalhando a sua vida? A vida que você gostaria de viver?” Pois todos os vícios o fazem; uma característica básica do vício, além do comportamento compulsivo, é contrariar nossos principais interesses, ainda que nos deem um pequeno barato de satisfação imediatista.

Mas vamos ao tratamento, em alguns passos:

1. Reconhecimento de que se tem um vício.

2. Tomar providências para combatê-lo (com ajuda, com autoajuda ou por conta própria).

3. Entender a mecânica do vício: sua origem genética; seu cultivo cultural; o que ele “consola”; seus gatilhos; se ele é solitário ou precisa de cúmplices (não são amigos, são cúmplices); as motivações, meios e oportunidades em que ele se fortalece.
Isso será base para decisões, como se afastar de cúmplices, avisar aos amigos sobre seu empenho em deixar o vício, não trabalhar em bares, frequentar grupos de apoio (como o AA) etc,

4. Tentar abstinência.
Quando a abstinência não for possível, tentar redução de danos: diminuir a extensão do pé na jaca, na quantidade e no tempo, lembrando que todo o conseguido é lucro, é ganho de terreno.

5. Saber que a abstinência sozinha não é suficiente; é preciso investir numa vida bacana, ter perspectivas virtuosas, cultivar as virtudes enquanto se desinveste do vício: a energia tirada de um deve ser aplicada no cultivo das outras; é preciso ter prazer de construção, para abandonar o prazer de alívio.

Esta é a parte principal do tratamento dos vícios: a busca do bom prazer. Abandonar vício não pode ser uma penitência, uma fonte de sofrimento. Precisa ser o começo de um caminho novo e mais bonito.

6. Mudar o jeito de encarar as recaídas: nao fazer drama. O vício adora um drama, pois ele pede “consolo”. Não há tratamento de vício sem recaídas. A estrada tem tropeços. A pedra de Sísifo vai rolar para baixo de vez em quando, mas… não rolará à estaca zero: sempre haverá um terreno ganho.

7. E agora, essa vai para os psicanalistas: NUNCA, eu disse NUNCA, usar o sentimento de culpa como ferramenta de cura. Qualquer vício contém um, digamos, um círculo vicioso de porre, ressaca moral e… novo porre para curar a ressaca moral: a culpa leva à recaída.

A culpa é parte do problema, não da solução.

Por fim, vícios não têm cura. Seus gatilhos sempre estarão lá: no caso dos vícios de substâncias, mesmo a abstinência prolongada não garante nada, sem a construção de uma vida bonita.

Nos de comportamento, de recaídas mais sutis, a vida bela e o cultivo das virtudes tem um papel maior ainda.


AS ARMADILHAS DA CULPA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Mas, afinal, de onde vem o sentimento de culpa? Como ele opera em nós?”

Francisco Daudt: O sentimento de culpa 12 anos, escocês legítimo, vem de dentro. Se alguém te acusar do lado de fora, ele será menor, pois você terá de quem se defender.

Você precisa ter um superego cultivado desde a infância, com leis e respectivas punições introjetadas, absorvidas pelo ouvido.

As leis são toscas, elas juntam um antimodelo e uma punição: “filho ingrato, não vou mais gostar de você”.

Os antimodelos são variados, a punição é basicamente uma só: o desamparo, o degredo, o exílio, o banimento (hoje em dia, o cancelamento). Satanás se rebelou contra Deus? Expulsão para o inferno…

A culpa tem três faces: a vergonha; o sentimento de estar em falta/dívida; e ela própria, agravada pelas duas anteriores.

Vergonha: vem de se ver igualado ao antimodelo. Se você “é igual a fulano; igual, não: pior!” Se você se vê exposto a essa ignomínia, haja vergonha…

Sentimento de dívida, de estar em falta: o “filho ingrato” é exemplar. “Eu te dei a coisa mais importante, eu te dei a vida, e é assim que você me retribui?”

As premissas do “filho ingrato” são muito interessantes; para haver ingratidão, é necessário que:

1. Você tenha sido consultado previamente se queria receber esse prêmio (você pediu pra nascer);

2. Tudo que seus pais vem fazendo por você desde então são favores, entram para o passivo da sua dívida.

3. Sua quitação de dívida se dará por subserviência e devoção, caso contrário, sua dívida aumentará.

Mas… se a criança vai crescendo e continua vivendo na aba dos pais, não conquista independência, aí sim, a armadilha se fecha: ela recebe favores sim, e a dívida cresce sim. Dessa maneira, a crença no filho ingrato vai fazendo mais e mais sentido.

Sentimento de culpa: ele é também uma espécie de chicoteamento indenizatório prévio, diante da terrível ameaça de punição que é o desamparo. Uma tentativa de quitação da dívida através do sofrimento: “Não me desampare, tenha misericórdia, olha como eu estou sofrendo! Eu já estou pagando minha pena!

Eu reconheço meu pecado, eu me arrependo dele!”

A vitimização e o coitadismo são extrapolações dessa estratégia: “eu não sou culpado, eu sou vítima! Eu não fiz nada, eles é que fizeram!”

A psicanálise traz à consciência todas as injustiças do processo; aí mora seu poder de cura: no nosso desejo de justiça.


JUSTIÇA É O VALOR MAIOR

 



Querendo ensinar valores a seu filho, Aristóteles escreveu “Ética a Nicômaco” (era este o nome do filho).

Lá ele ensina que as virtudes moram em algum lugar variável entre sua falta e seu exagero. Assim, a coragem estaria entre a covardia e a temeridade.

Daí saiu o provérbio latino “In medio virtus” (“a virtude está no meio”). Mas ele não traduz bem o conceito aristotélico. Não é “no meio”. Às vezes ela está um pouco mais para o exagero, às vezes mais para a falta, segundo as singulares circunstâncias de cada momento. Por exemplo, a Lava-jato passeou frequentemente pelo exagero, que correspondia à correção de séculos de falta.

De qualquer modo, Aristóteles ensinou a seu filho: “a principal virtude é a Justiça.”

Ela precisa estar presente até em coisas do dia-a-dia, como os acordos de lavar louça, fazer faxina e cozinhar. Eu preciso saber que dou e recebo em JUSTA medida.

Se sinto injustiça, sinto raiva. A raiva é o que me move a buscar justiça. Sem indignação não há justiça.

E, de novo, a justiça mora em algum lugar entre seu exagero (dar uma porretada na cabeça) e sua falta (entubar o dano).

É neste meio de campo que moram a civilização, a mediação, a terceirização, o chamar a polícia, o acerto amoroso de ponteiros e a diplomacia.

Mas também mora a legítima defesa...