domingo, 19 de setembro de 2021

VÍCIOS COMPORTAMENTAIS - F.O.M.O. - “fear of missing out”

 


Claramente despertado pelas redes sociais e a dopamina que os “likes” liberam, o f.o.m.o. consiste em você compulsivamente ter que verificar se não está perdendo alguma coisa, alguém, algum programa, alguma mensagem que possa ser melhor do que a atividade anterior/atual.

Seja ao estar com amigos, família, colegas de trabalho, ou mesmo na cama fazendo sexo, “não custa” dar uma olhada na telinha do celular, uma conferida lá. Vai que…

A propósito de fazer sexo, ouvi relatos de a pessoa entreter cinco “conversas” simultâneas, numa espécie de orgia virtual.

Lembrando, só é vício se há compulsão, repetição, síndrome de abstinência, e prejuízo aos seus principais interesses: sim, há rompimentos e demissões causados pelo f.o.m.o.


TRATAMENTO DOS VÍCIOS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Como a psicanálise trata dos vícios? Eles têm cura?”

Francisco Daudt: Existe uma anedota que pergunta:
“Quantos psicanalistas são necessários para se trocar uma lâmpada”.
“Um só. Mas é preciso que a lâmpada queira muuuito ser trocada”.

Assim também é com os vícios. O que vou registrar aqui é como penso que a psicanálise deveria tratar dos vícios. É minha proposta, minha visão pessoal, fruto de minhas pesquisas clínicas.

Tudo começa, portanto, na consciência de que se tem um vício. É claro que os de substâncias são mais fáceis de se ter essa consciência… exceto no caso do álcool. Ele é tão incorporado como hábito social que a autoilusão de “eu só bebo socialmente” é muito tentadora.

Já os vícios de comportamento, ah, esses são mais difíceis de se reconhecer. A boa pergunta é: “isso está atrapalhando a sua vida? A vida que você gostaria de viver?” Pois todos os vícios o fazem; uma característica básica do vício, além do comportamento compulsivo, é contrariar nossos principais interesses, ainda que nos deem um pequeno barato de satisfação imediatista.

Mas vamos ao tratamento, em alguns passos:

1. Reconhecimento de que se tem um vício.

2. Tomar providências para combatê-lo (com ajuda, com autoajuda ou por conta própria).

3. Entender a mecânica do vício: sua origem genética; seu cultivo cultural; o que ele “consola”; seus gatilhos; se ele é solitário ou precisa de cúmplices (não são amigos, são cúmplices); as motivações, meios e oportunidades em que ele se fortalece.
Isso será base para decisões, como se afastar de cúmplices, avisar aos amigos sobre seu empenho em deixar o vício, não trabalhar em bares, frequentar grupos de apoio (como o AA) etc,

4. Tentar abstinência.
Quando a abstinência não for possível, tentar redução de danos: diminuir a extensão do pé na jaca, na quantidade e no tempo, lembrando que todo o conseguido é lucro, é ganho de terreno.

5. Saber que a abstinência sozinha não é suficiente; é preciso investir numa vida bacana, ter perspectivas virtuosas, cultivar as virtudes enquanto se desinveste do vício: a energia tirada de um deve ser aplicada no cultivo das outras; é preciso ter prazer de construção, para abandonar o prazer de alívio.

Esta é a parte principal do tratamento dos vícios: a busca do bom prazer. Abandonar vício não pode ser uma penitência, uma fonte de sofrimento. Precisa ser o começo de um caminho novo e mais bonito.

6. Mudar o jeito de encarar as recaídas: nao fazer drama. O vício adora um drama, pois ele pede “consolo”. Não há tratamento de vício sem recaídas. A estrada tem tropeços. A pedra de Sísifo vai rolar para baixo de vez em quando, mas… não rolará à estaca zero: sempre haverá um terreno ganho.

7. E agora, essa vai para os psicanalistas: NUNCA, eu disse NUNCA, usar o sentimento de culpa como ferramenta de cura. Qualquer vício contém um, digamos, um círculo vicioso de porre, ressaca moral e… novo porre para curar a ressaca moral: a culpa leva à recaída.

A culpa é parte do problema, não da solução.

Por fim, vícios não têm cura. Seus gatilhos sempre estarão lá: no caso dos vícios de substâncias, mesmo a abstinência prolongada não garante nada, sem a construção de uma vida bonita.

Nos de comportamento, de recaídas mais sutis, a vida bela e o cultivo das virtudes tem um papel maior ainda.


AS ARMADILHAS DA CULPA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Mas, afinal, de onde vem o sentimento de culpa? Como ele opera em nós?”

Francisco Daudt: O sentimento de culpa 12 anos, escocês legítimo, vem de dentro. Se alguém te acusar do lado de fora, ele será menor, pois você terá de quem se defender.

Você precisa ter um superego cultivado desde a infância, com leis e respectivas punições introjetadas, absorvidas pelo ouvido.

As leis são toscas, elas juntam um antimodelo e uma punição: “filho ingrato, não vou mais gostar de você”.

Os antimodelos são variados, a punição é basicamente uma só: o desamparo, o degredo, o exílio, o banimento (hoje em dia, o cancelamento). Satanás se rebelou contra Deus? Expulsão para o inferno…

A culpa tem três faces: a vergonha; o sentimento de estar em falta/dívida; e ela própria, agravada pelas duas anteriores.

Vergonha: vem de se ver igualado ao antimodelo. Se você “é igual a fulano; igual, não: pior!” Se você se vê exposto a essa ignomínia, haja vergonha…

Sentimento de dívida, de estar em falta: o “filho ingrato” é exemplar. “Eu te dei a coisa mais importante, eu te dei a vida, e é assim que você me retribui?”

As premissas do “filho ingrato” são muito interessantes; para haver ingratidão, é necessário que:

1. Você tenha sido consultado previamente se queria receber esse prêmio (você pediu pra nascer);

2. Tudo que seus pais vem fazendo por você desde então são favores, entram para o passivo da sua dívida.

3. Sua quitação de dívida se dará por subserviência e devoção, caso contrário, sua dívida aumentará.

Mas… se a criança vai crescendo e continua vivendo na aba dos pais, não conquista independência, aí sim, a armadilha se fecha: ela recebe favores sim, e a dívida cresce sim. Dessa maneira, a crença no filho ingrato vai fazendo mais e mais sentido.

Sentimento de culpa: ele é também uma espécie de chicoteamento indenizatório prévio, diante da terrível ameaça de punição que é o desamparo. Uma tentativa de quitação da dívida através do sofrimento: “Não me desampare, tenha misericórdia, olha como eu estou sofrendo! Eu já estou pagando minha pena!

Eu reconheço meu pecado, eu me arrependo dele!”

A vitimização e o coitadismo são extrapolações dessa estratégia: “eu não sou culpado, eu sou vítima! Eu não fiz nada, eles é que fizeram!”

A psicanálise traz à consciência todas as injustiças do processo; aí mora seu poder de cura: no nosso desejo de justiça.


JUSTIÇA É O VALOR MAIOR

 



Querendo ensinar valores a seu filho, Aristóteles escreveu “Ética a Nicômaco” (era este o nome do filho).

Lá ele ensina que as virtudes moram em algum lugar variável entre sua falta e seu exagero. Assim, a coragem estaria entre a covardia e a temeridade.

Daí saiu o provérbio latino “In medio virtus” (“a virtude está no meio”). Mas ele não traduz bem o conceito aristotélico. Não é “no meio”. Às vezes ela está um pouco mais para o exagero, às vezes mais para a falta, segundo as singulares circunstâncias de cada momento. Por exemplo, a Lava-jato passeou frequentemente pelo exagero, que correspondia à correção de séculos de falta.

De qualquer modo, Aristóteles ensinou a seu filho: “a principal virtude é a Justiça.”

Ela precisa estar presente até em coisas do dia-a-dia, como os acordos de lavar louça, fazer faxina e cozinhar. Eu preciso saber que dou e recebo em JUSTA medida.

Se sinto injustiça, sinto raiva. A raiva é o que me move a buscar justiça. Sem indignação não há justiça.

E, de novo, a justiça mora em algum lugar entre seu exagero (dar uma porretada na cabeça) e sua falta (entubar o dano).

É neste meio de campo que moram a civilização, a mediação, a terceirização, o chamar a polícia, o acerto amoroso de ponteiros e a diplomacia.

Mas também mora a legítima defesa...


terça-feira, 7 de setembro de 2021

RESISTÊNCIAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Durante análise, as resistências são má vontade do cliente?”

Francisco Daudt: Não, não, nada disso! As resistências são material precioso para compreender o cliente; devem ser tratadas com todo o carinho e respeito.

Primeiro, a definição: resistências, em psicanálise, são oposições à investigação, voluntárias ou não.

As voluntárias, conscientes, são de supressão (“não quero falar desse assunto”; “ah, o que ele vai pensar de mim?”; “morro de vergonha desse meu lado”). Quanto mais julgador parecer o analista, mais haverá delas.

As involuntárias, ou inconscientes, podem ser sintomas neuróticos ou viciosos. A mais famosa das neuróticas é a resistência por transferência: algo no analista desperta um mal-estar indefinido no cliente, e ele se cala. Houve alguma perda de confiança, (“por uma bobagem”, dirá depois o cliente) que o trava.

Poderíamos chamá-la de “resistência do gato escaldado”: ele tem medo de água fria, ele hiper-reage a um estímulo mínimo. Está transferindo para o analista uma encrenca de seu passado.

Essa resistência conta muito de sua neurose, ela é preciosa como fonte de investigação. Ela se apresenta como silêncio, como atos falhos (perde a hora, se esquece da sessão). Cabe ao analista explicar que as “bobagens” são ricos achados, que elas não devem jamais ser descartadas: a psicanálise é feita de “bobagens” como essa.

A resistência viciosa acontece quando o analista acha que deve subjugar o cliente, que o superego é parte da cura, e a partir daí começa uma queda de braço entre os dois (ou pior, não acontece, e o cliente se submete a ele).

Essa tristeza é fruto de um problema do analista: ele se esquece de que é um humilde prestador de serviços ao cliente e se acha num pedestal muito foda, esperando que o cliente o reverencie como tal.

Esse costuma ser o maior ponto cego dos psicanalistas: as doenças viciosas sadomasoquistas e de domínio/submissão do cliente passarão batidas, pois o analista sofre da mesma doença.

Ah, e tem a tal de contra-transferência, que é um nome pomposo que arranjaram para dizer que o analista se encrencou internamente com o cliente, como resultado de sua própria neurose.

Humm, contra-transferência, sei… como se fosse em alguma coisa diferente da dos clientes!

Eu sei, eu sei, tem também a tal transferência erótica, quando clientes se apaixonam pelo analista: essa é das conscientes, e merece uma resposta à parte.


DIAGNÓSTICO EM PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Qual a importância que você dá ao diagnóstico? De que doenças a psicanálise trata?”

Francisco Daudt: Total importância. O diagnóstico é a base do trabalho psicanalítico. Sem ele, não há estratégia de tratamento, não há norte para a busca de cura.

Defendo que a psicanálise se comprometa com diagnóstico e cura das doenças diagnosticadas, que não se esconda e se acovarde com metas vagas, como “autoconhecimento”. Isso só se dá por medo de ineficiência.

As doenças psíquicas tratadas pela psicanálise são as neuroses, os vícios e a depressão. Quanto às psicoses (esquizofrenia, maníaco-depressiva), tenho sérias dúvidas sobre sua eficácia. Nenhuma demência é tratável pela psicanálise. O mesmo para psicopatia.

Num apanhado sucinto, as neuroses são: obsessiva, fóbica (síndrome do pânico inclusive) e histérica.

Os vícios podem ser de substâncias (álcool, tabaco, drogas, carboidrato);

Ou comportamentais (sadomasoquismo, domínio/submissão, fodão/merda, hipocondria, cleptomania, acumulação, mitomania e outros).

A depressão aguda ou crônica e o luto patológico.

A propósito do luto, há condições transitórias tratáveis pela psicanálise. Mas como ele, elas não são doenças psíquicas, pois não reúnem as características que definem uma doença: compulsão, repetição, grande aluguel mental, e dano à qualidade de vida e à integridade ética do portador.


O COMPLEXO DE ÉDIPO É DIFERENTE DO QUE OUVIMOS DIZER



"MÃE, EU não quero ir à escola. Os alunos são chatos, os professores são chatos, tudo é chato". "Meu filho, você já tem 53 anos, é diretor dessa escola, você TEM QUE IR À ESCOLA!"

De fato, quando se pensa em complexo de Édipo, logo se imagina uma cena como esta, ou pior, filhos erotizados com as mães, ou filhas com os pais (que essa história de complexo de Electra foi o Jung que inventou, e Freud se irritava, pois achava que não havia porque separá-los, já que tinham o mesmo princípio), vendo o pai (ou a mãe) como rival, possessivos com seus amados.

Pois em 35 anos como psicanalista só encontrei dois homens que se recordavam de ter sentido atração sexual por suas mães em algum período de suas infâncias, e elas tinham sido ativamente sedutoras. "Ah, mas é inconsciente reprimido." Não me venham com esta porque o inconsciente reprimido deixa rastros, e é função do psicanalista deduzi-lo a partir desses traços. E não desencavei essas "memórias ocultas" em nenhum cliente.

Mais um conceito psicanalítico que está na coluna sobre natureza humana porque ele consta da lista de comportamentos universais, encontráveis em qualquer tempo, em qualquer cultura do mundo.

Então, o que é o tal complexo de Édipo, e por que ele é universal? Foi um lance genial de Freud chamá-lo de Édipo, pois tudo está contido em sua história. Vamos lembrar a peça de Sófocles, que conta o mito: nasce um príncipe. Seu pai vai à astróloga da época (o Oráculo de Delfos) para saber do futuro da criança. Ela lhe prediz que, uma vez crescido, o pequeno vai matar o pai e se casar com a mãe. Horrorizado, o rei o entrega a um escravo para que ele dê um fim no bebê. Penalizado, o escravo o larga com os pés amarrados (Édipo significa "de pés inchados") num canto da mata e volta dizendo "dever cumprido".

O pequeno é achado pelo servo do rei vizinho, que, sem filhos, adota-o como príncipe (mas não conta nada). Crescido, Édipo tem a péssima ideia de consultar a mesma astróloga sobre seu futuro. O que ouve? Que vai matar o pai e se casar com a mãe. Apavorado com a possibilidade, o príncipe foge. Logo para Tebas (seu reino de origem), ó desastre. Daí para frente é só desgraça: mata o pai, casa-se com a mãe (biológicos) e quando uma peste se abate sobre Tebas, descobre a trama toda, e conclui que a culpa é dele, pobre idiota...

Você reparou que a criança foi sacaneada do começo ao fim? Que sua vida esteve sempre atrelada à dos pais? O complexo é, pois, fruto de uma invasão bárbara daqueles que teriam como função prepará-lo para ter vida própria, e não viver a dos pais.

Acontece também que temos como característica genética o apego à forma jovem, curiosa, inventiva, sempre animada em aprender, e é bom que permaneça assim pela vida afora, desde que se desenvolva autonomia.

Para isto precisamos de pais que cuidem de nossas necessidades (declinantes) e estimulem nossas capacidades (ascendentes) para que alcemos voo na vida. Mas isso é raro. Afinal, o diretor que odiava a escola nos é comicamente familiar.