domingo, 19 de setembro de 2021

JUSTIÇA É O VALOR MAIOR

 



Querendo ensinar valores a seu filho, Aristóteles escreveu “Ética a Nicômaco” (era este o nome do filho).

Lá ele ensina que as virtudes moram em algum lugar variável entre sua falta e seu exagero. Assim, a coragem estaria entre a covardia e a temeridade.

Daí saiu o provérbio latino “In medio virtus” (“a virtude está no meio”). Mas ele não traduz bem o conceito aristotélico. Não é “no meio”. Às vezes ela está um pouco mais para o exagero, às vezes mais para a falta, segundo as singulares circunstâncias de cada momento. Por exemplo, a Lava-jato passeou frequentemente pelo exagero, que correspondia à correção de séculos de falta.

De qualquer modo, Aristóteles ensinou a seu filho: “a principal virtude é a Justiça.”

Ela precisa estar presente até em coisas do dia-a-dia, como os acordos de lavar louça, fazer faxina e cozinhar. Eu preciso saber que dou e recebo em JUSTA medida.

Se sinto injustiça, sinto raiva. A raiva é o que me move a buscar justiça. Sem indignação não há justiça.

E, de novo, a justiça mora em algum lugar entre seu exagero (dar uma porretada na cabeça) e sua falta (entubar o dano).

É neste meio de campo que moram a civilização, a mediação, a terceirização, o chamar a polícia, o acerto amoroso de ponteiros e a diplomacia.

Mas também mora a legítima defesa...


terça-feira, 7 de setembro de 2021

RESISTÊNCIAS - O AMIGO PERGUNTA

 



“Durante análise, as resistências são má vontade do cliente?”

Francisco Daudt: Não, não, nada disso! As resistências são material precioso para compreender o cliente; devem ser tratadas com todo o carinho e respeito.

Primeiro, a definição: resistências, em psicanálise, são oposições à investigação, voluntárias ou não.

As voluntárias, conscientes, são de supressão (“não quero falar desse assunto”; “ah, o que ele vai pensar de mim?”; “morro de vergonha desse meu lado”). Quanto mais julgador parecer o analista, mais haverá delas.

As involuntárias, ou inconscientes, podem ser sintomas neuróticos ou viciosos. A mais famosa das neuróticas é a resistência por transferência: algo no analista desperta um mal-estar indefinido no cliente, e ele se cala. Houve alguma perda de confiança, (“por uma bobagem”, dirá depois o cliente) que o trava.

Poderíamos chamá-la de “resistência do gato escaldado”: ele tem medo de água fria, ele hiper-reage a um estímulo mínimo. Está transferindo para o analista uma encrenca de seu passado.

Essa resistência conta muito de sua neurose, ela é preciosa como fonte de investigação. Ela se apresenta como silêncio, como atos falhos (perde a hora, se esquece da sessão). Cabe ao analista explicar que as “bobagens” são ricos achados, que elas não devem jamais ser descartadas: a psicanálise é feita de “bobagens” como essa.

A resistência viciosa acontece quando o analista acha que deve subjugar o cliente, que o superego é parte da cura, e a partir daí começa uma queda de braço entre os dois (ou pior, não acontece, e o cliente se submete a ele).

Essa tristeza é fruto de um problema do analista: ele se esquece de que é um humilde prestador de serviços ao cliente e se acha num pedestal muito foda, esperando que o cliente o reverencie como tal.

Esse costuma ser o maior ponto cego dos psicanalistas: as doenças viciosas sadomasoquistas e de domínio/submissão do cliente passarão batidas, pois o analista sofre da mesma doença.

Ah, e tem a tal de contra-transferência, que é um nome pomposo que arranjaram para dizer que o analista se encrencou internamente com o cliente, como resultado de sua própria neurose.

Humm, contra-transferência, sei… como se fosse em alguma coisa diferente da dos clientes!

Eu sei, eu sei, tem também a tal transferência erótica, quando clientes se apaixonam pelo analista: essa é das conscientes, e merece uma resposta à parte.


DIAGNÓSTICO EM PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Qual a importância que você dá ao diagnóstico? De que doenças a psicanálise trata?”

Francisco Daudt: Total importância. O diagnóstico é a base do trabalho psicanalítico. Sem ele, não há estratégia de tratamento, não há norte para a busca de cura.

Defendo que a psicanálise se comprometa com diagnóstico e cura das doenças diagnosticadas, que não se esconda e se acovarde com metas vagas, como “autoconhecimento”. Isso só se dá por medo de ineficiência.

As doenças psíquicas tratadas pela psicanálise são as neuroses, os vícios e a depressão. Quanto às psicoses (esquizofrenia, maníaco-depressiva), tenho sérias dúvidas sobre sua eficácia. Nenhuma demência é tratável pela psicanálise. O mesmo para psicopatia.

Num apanhado sucinto, as neuroses são: obsessiva, fóbica (síndrome do pânico inclusive) e histérica.

Os vícios podem ser de substâncias (álcool, tabaco, drogas, carboidrato);

Ou comportamentais (sadomasoquismo, domínio/submissão, fodão/merda, hipocondria, cleptomania, acumulação, mitomania e outros).

A depressão aguda ou crônica e o luto patológico.

A propósito do luto, há condições transitórias tratáveis pela psicanálise. Mas como ele, elas não são doenças psíquicas, pois não reúnem as características que definem uma doença: compulsão, repetição, grande aluguel mental, e dano à qualidade de vida e à integridade ética do portador.


O COMPLEXO DE ÉDIPO É DIFERENTE DO QUE OUVIMOS DIZER



"MÃE, EU não quero ir à escola. Os alunos são chatos, os professores são chatos, tudo é chato". "Meu filho, você já tem 53 anos, é diretor dessa escola, você TEM QUE IR À ESCOLA!"

De fato, quando se pensa em complexo de Édipo, logo se imagina uma cena como esta, ou pior, filhos erotizados com as mães, ou filhas com os pais (que essa história de complexo de Electra foi o Jung que inventou, e Freud se irritava, pois achava que não havia porque separá-los, já que tinham o mesmo princípio), vendo o pai (ou a mãe) como rival, possessivos com seus amados.

Pois em 35 anos como psicanalista só encontrei dois homens que se recordavam de ter sentido atração sexual por suas mães em algum período de suas infâncias, e elas tinham sido ativamente sedutoras. "Ah, mas é inconsciente reprimido." Não me venham com esta porque o inconsciente reprimido deixa rastros, e é função do psicanalista deduzi-lo a partir desses traços. E não desencavei essas "memórias ocultas" em nenhum cliente.

Mais um conceito psicanalítico que está na coluna sobre natureza humana porque ele consta da lista de comportamentos universais, encontráveis em qualquer tempo, em qualquer cultura do mundo.

Então, o que é o tal complexo de Édipo, e por que ele é universal? Foi um lance genial de Freud chamá-lo de Édipo, pois tudo está contido em sua história. Vamos lembrar a peça de Sófocles, que conta o mito: nasce um príncipe. Seu pai vai à astróloga da época (o Oráculo de Delfos) para saber do futuro da criança. Ela lhe prediz que, uma vez crescido, o pequeno vai matar o pai e se casar com a mãe. Horrorizado, o rei o entrega a um escravo para que ele dê um fim no bebê. Penalizado, o escravo o larga com os pés amarrados (Édipo significa "de pés inchados") num canto da mata e volta dizendo "dever cumprido".

O pequeno é achado pelo servo do rei vizinho, que, sem filhos, adota-o como príncipe (mas não conta nada). Crescido, Édipo tem a péssima ideia de consultar a mesma astróloga sobre seu futuro. O que ouve? Que vai matar o pai e se casar com a mãe. Apavorado com a possibilidade, o príncipe foge. Logo para Tebas (seu reino de origem), ó desastre. Daí para frente é só desgraça: mata o pai, casa-se com a mãe (biológicos) e quando uma peste se abate sobre Tebas, descobre a trama toda, e conclui que a culpa é dele, pobre idiota...

Você reparou que a criança foi sacaneada do começo ao fim? Que sua vida esteve sempre atrelada à dos pais? O complexo é, pois, fruto de uma invasão bárbara daqueles que teriam como função prepará-lo para ter vida própria, e não viver a dos pais.

Acontece também que temos como característica genética o apego à forma jovem, curiosa, inventiva, sempre animada em aprender, e é bom que permaneça assim pela vida afora, desde que se desenvolva autonomia.

Para isto precisamos de pais que cuidem de nossas necessidades (declinantes) e estimulem nossas capacidades (ascendentes) para que alcemos voo na vida. Mas isso é raro. Afinal, o diretor que odiava a escola nos é comicamente familiar.


 

O SUPEREGO DOS OBSESSIVOS

 



“Eu nunca entraria para um clube que me aceitasse como sócio”
(Groucho Marx 1890-1977)

A frase é uma síntese perfeita de como o Superego de um obsessivo opera: “você é o máximo; você é o mínimo. Você é um fodão; você é um merda”. “Se um clube aceita como sócio um merda como eu, claro que um fodão como eu não vai querer entrar lá”.

O Superego do obsessivo estabelece metas inalcançáveis: “Você tirou dez? Não fez mais que sua obrigação. Você tirou 9,8? Por que não tirou dez? É pra isso que eu pago escola para você? Pra me fazer passar vergonha?”

Um obsessivo nunca desfruta dos 90% que realizou; ele só vê os 10% que faltaram. Nunca admira um queijo; ele só observa – e critica – seus buracos.

Ele está em constante comparação com os outros: para criticá-los abertamente (merda são eles) e para criticar-se secretamente (merda sou eu).

Por aí se vê a injustiça em que ele foi metido: no tribunal em que vive (!), não existe advogado de defesa; só promotor e juiz. Ah, e as leis são tirânicas.

Por isso, cabe ao psicanalista ser seu advogado de defesa, rever os autos, questionar as sentenças e as leis em que se basearam.

Só assim ele pode ser libertado da prisão em que foi metido: ela se chama Complexo de Édipo.


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

PRECONCEITOS PRECIOSOS E TRANSFERÊNCIA - O AMIGO PERGUNTA

 


“Julgar pela aparência não é muito preconceituoso?”

Francisco Daudt: É, sim. Preconceituoso e necessário.

Julgar pelas aparências engloba nossas duas poderosas fontes de motivação: sobrevivência e reprodução. É verdade que ambas estão a serviço da replicação do DNA, pois é preciso viver até que a reprodução se dê. 

De base, todo estranho é um inimigo: este preconceito vem salvando vidas pela história afora. Imagine-se numa rua escura e deserta, subitamente os sons de passos em sua direção. A adrenalina sobe, você se prepara para luta ou fuga; matar ou correr. 

Em seguida, vê o outro. É preciso detectar traços de guerra ou de paz, e isso rapidamente: “ele pertence a tribo amiga ou inimiga”.

Classificado como amigo, outro escaneamento automático e rapidíssimo, tão rápido que muitas vezes passa despercebido, busca a segunda resposta: “é uma possível parceria sexual ou não?”

Um hétero dirá: “ah, se eu vejo que o outro é  homem, isso nem me passa pela cabeça”. Sim, mas porque, como ele viu que era homem, seu gatilho avaliador de segunda instância não foi ativado. O descarte foi rápido.

O mesmo ele diria se tivesse visto uma vovozinha: a avaliação de parceria sexual se dá por camadas de preconceitos. Eles moram nos arquivos de memória que configuram nosso desejo, em combinação com os arquivos genéticos da valorização erótica.

Algum dos arquivos genéticos do desejo são: beleza, fertilidade, força, saúde, juventude, riqueza, proeminência social. Tudo isso julgado pela aparência. Alguns se aplicam às estratégias sexuais de curto prazo, outros para as de longo prazo.

Os arquivos de memória que compõem o desejo vêm de nossa história erótica/amorosa, sucessos e decepções.

Todo esse conjunto de preconceitos será usado na avaliação sobrevivência/reprodução: eles serão usados como filtros, a partir da primeira vista, aplicados ao outro.

Isso é parte do que em psicanálise se chama de “Transferência”: transferimos ao outro, sem conhecê-lo, toda essa massa de informação que mora em nós, e o julgamos por ela.

A partir das aparências.





CRIADORES, DIVULGADORES, DILUIDORES

 


O panteão dos criadores tem poucos deuses (Copérnico, Darwin, Freud, Einstein p.ex.) que quebraram paradigmas e inventaram novos, mudando assim a maneira de pensar de toda a humanidade.

Os divulgadores estendem o que pegaram dos criadores, mas não só trazem ao público, são capazes de acrescentar - e muito - a partir daquelas bases.

Os diluidores entregam o produto dos criadores, mas ele se estraga na viagem. Poderiam ser chamados de “vulgarizadores”: a diferença entre tornar público e tornar vulgar.

Um amigo que mora na China e tem doutorado em Taoismo e religiões chinesas se vê como criador (realmente, sua contribuição que liga a influência do pensamento chinês com suas religiões é muito original). Ele quer me convencer que minha intervenção na psicanálise é também de criador. Não é. 

Mas é um bom debate:

“Meu caro,
Sobre o dilema criador x divulgador, pensei muito nele. 

Eu me via como criador, com essa coisa de unir psicanálise com psicologia evolucionista (elas têm óbvias complementariedades), com a percepção de o superego ser um programa de sobrevivência na origem, e que ele se torna complexo com os aprendizados da cultura, invadido pelas crenças disfuncionais que evitam o desamparo na infância (já que a criança está nas mãos daqueles pais - necessariamente - incompetentes para a função de criá-la).

Criador, na reconcepção do complexo de Édipo como representante do embate sadomasoquista/domínio/submissão que se deu entre a criança e seus pais, que se eterniza pela vida afora de maneira automática, embate esse que se reencena depois de crescido, como drama (e não como farsa), numa constante tentativa inconsciente de “consertar” o passado, de “converter” pessoas idênticas às iniciais em amorosas considerativas.

Criador, na percepção de que a principal causa das doenças psíquicas é viciosa, e não neurótica, uma continuação do vicio sadomasoquista sutil que se dá entre a pessoa e seu superego. 

Criador, na abordagem terapêutica de diagnosticar esse vício e centrar meus esforços na compreensão/aprendizado do Desejo mais belo/ético de que a pessoa é capaz. E não só diagnosticar, mas conduzi-la ao treino de um caminho novo, ainda que trabalhoso, para seu desejo.

Mas reconheço que estava tudo lá, em Freud e em Darwin. O que me parece fazer de mim um divulgador bacana, que “agrega valor” às teorias. Não mais que isso.”