quarta-feira, 11 de agosto de 2021

DEMOCRACIA MENTAL - O AMIGO PERGUNTA

 



DEMOCRACIA MENTAL

De Douglas Estevam: “O que você faz é uma antropologia filosófica?”

Francisco Daudt: Interessante, você ter nomeado meu assunto de antropologia filosófica.

Eu combino psicanálise e psicologia evolucionista para entender a mente humana. De fato, é uma antropologia, um estudo do homem.

E há uma face filosófica na psicanálise: dela deriva uma amada (filos) sabedoria (sofia), a de que a saúde mental mora no equilíbrio entre os poderes psíquicos, uma espécie de democracia mental em que o Eu (Ego) é o executivo, conhece e ouve tanto o “Algo em mim” (Id), que é o parlamento, o representante do desejo do “povo”, quanto o “Acima de mim” (Superego), que é o judiciário.

É a partir dessa conversa civilizada que o Ego (Eu) se torna gerente dos nossos desejos, sujeito de nossos verbos: Eu quero, Eu ambiciono, Eu sinto desejos, Eu levo as leis em consideração, Eu faço por onde atendê-los.

Para a nossa mente, a democracia é saúde e a tirania é doença.





VONTADE E DESEJO - O AMIGO PERGUNTA

 


VONTADE E DESEJO

De Marcia Pires: “Qual a diferença, em psicanálise, entre desejo e vontade?

Francisco Daudt: É a mesma que entre o oceano (o desejo) e a onda (a vontade). O desejo nasce com a gente, com nossa herança genética, ele é o motor da sobrevivência e da reprodução, ele está na busca do alívio e do prazer.

A fome fala do desejo; o apetite fala da vontade. A sobrevivência pede comida; o apetite pede sorvete de chocolate. A reprodução pede sexo; o tesão pede aquele jeitinho de sorrir.

Essa força oceânica nos faz viver, mas aquela pessoa nos dá a maior onda…





“O orgasmo feminino influencia na felicidade da cria?” - O AMIGO PERGUNTA

 


ORGASMOS

De Guilherme S M Padilha: “O orgasmo feminino influencia na felicidade da cria?”

Francisco Daudt: Não, pelo menos não diretamente, pois como ele influencia na felicidade da mãe, podemos esperar que a cria seja beneficiada por isso.

Mas sua pergunta põe em questão o orgasmo feminino, o mais complexo de todos. Não é que o orgasmo masculino seja simples, mas como a existência da humanidade depende dele, ele tende ao comum, banal e simplório. São poucos os homens que, por não se satisfazerem com o feijão com arroz, buscam delicatessen.

Por que todos os homens conhecem o orgasmo e nem todas as mulheres o conhecem? Porque todos os homens se masturbam, o que não acontece com todas as mulheres.

O orgasmo necessita de um circuito cerebral bem treinado para acontecer, bem como um hardware sensível para desencadeá-lo. O pênis e a glande são expostos, notáveis e inescapáveis no homem, e seus correspondentes femininos (o clitoris e sua glande) são discretos, ocultos mesmo.

De forma que, não há homem que os deixe de lado… e há muitas mulheres que sim. Resulta que o circuito cerebral que leva ao orgasmo é treinadíssimo neles e negligenciado nelas.

Há três tipos de orgasmo: genital, vaginal e anal. Tanto no homem quanto na mulher, o estímulo do pênis/clitoris leva ao orgasmo genital. Sim, o homem pode ter ejaculação sem ter orgasmo, “gozar” sem prazer, mas nosso assunto aqui é o prazer. O orgasmo genital é intenso e breve; mas no caso das mulheres, como não há ejaculação concomitante, ele pode se repetir várias vezes sem período de recesso (lag phase). Sim, há mulheres que “ejaculam” junto com o orgasmo, uma emissão frequentemente confundida com urina. Mas isso não impede que tenham outros orgasmos seguidos, mesmo que o líquido acabe.

Já os orgasmos vaginal e anal curiosamente se parecem, e podem ou não ser acompanhados de orgasmo genital. São longos, convulsivos, espasmódicos, exaustivos, e resultam exclusivamente da penetração (peniana ou artificial).

Não confundir com o orgasmo genital de quem se masturba enquanto é penetrado. A coisa é diferente. Tanto que homens podem ter orgasmo anal sem ereção, sem ejaculação.

Infelizmente, a psicanálise andou aborrecendo as mulheres com a idealização do orgasmo vaginal, como “mais maduro”, superior ao genital. Isso é uma tolice sem tamanho: há mulheres em que o orgasmo é mais fácil, sem correlação com graus de maturidade.

É tudo uma questão de investimento em conhecer e atender o próprio desejo, isso sim é um objetivo da psicanálise.






domingo, 1 de agosto de 2021

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?” - O AMIGO PERGUNTA

 



FASE ANAL

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?”

Francisco Daudt: Ih, você toca num ponto que traz muita confusão sobre esse conceito…

A melhor resposta curta é não. Mas, você sabe, quando a coisa é complexidade, respostas curtas são sempre insatisfatórias.

Para começar, a fase anal não foi descrita por Freud, mas por Karl Abraham. Freud tomou o conceito e o desdobrou para apresentá-la como símbolo da guerra que travamos entre os nossos interesses primitivos e os da cultura/civilização: fazer cocô de maneira aceitável.

É o típico exemplo de como uma coisa que pode nos ser favorável (ir ao banheiro) pode ser ensinada como uma obrigação imposta, causar birra, choro e ranger de dentes.

É que, por volta dos dois anos, a criança começa a ter controle de eliminação das fezes e da urina (controle dos esfíncteres) e pode ser apresentada ao banheiro, essa preciosa maravilha moderna que tomamos como coisa garantida até que nos falte, num camping selvagem (oh Lord…).

Infelizmente, em vez de mostrá-lo como lucro, muitos pais aflitos resolvem “disciplinar” a criança e apresentam o banheiro como dever. Aí começa a briga, cujo pior resultado é a encoprese (dos nomes mais feios do idioma): um jogo de retenção/liberação das fezes com eventuais escapes, com que a criança se entretém por horas, se escondendo pelos cantos… e levando bronca.

É claro que, junto com essa briga, não são apenas as fezes que têm que ser controladas, mas a raiva contra os pais, e por extensão, contra a cultura. Com isso, a criança com genética para obsessividade pode desenvolver uma tendência para controle de tudo, de seus pensamentos, de sua pureza/limpeza, ela se torna um paladino da cultura, um ser hipercultural cheio de regras e obsessões. (Há também os obsessivos bagunceiros, contraculturais).

E a homossexualidade? Claro, tem a ver com o possível prazer anal decorrente do jogo de retenção. Mas isso é tolice: o erotismo anal não é algo que se aprenda, é sim um dom da natureza, uma loteria genética. Como de resto, todas as zonas erógenas: há quem tenha mamilos cegos, há quem os tenha felizes, o mesmo se aplica ao ânus e ao reto, quer seja hétero ou gay. Uma queixa frequente no consultório é de héteros envergonhados de pedir que suas mulheres deem atenção a suas zonas carentes, “vai que ela ache que eu sou gay…”

Por isso, sempre odiei quando os “psis” falavam “ah, ele é um anal-retentivo”: não elucidava nada e ainda deixava pairando no ar uma alusão de viadagem.





VÍCIOS COMPORTAMENTAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS COMPORTAMENTAIS

“Além do fodão/merda, qual o vício comportamental mais frequente?”

Francisco Daudt: É o “bosta n’água”. Claro, isso não é um nome técnico, nem bonito é. De maneira mais formal se poderia chamar de “ociosidade viciosa”. Eu o apelidei assim por causa da qualidade de se estar à deriva, sem rumo, ao sabor das ondas e da maré… coisa que abala a autoestima e leva a pessoa a não se dar valor, a se sentir um bosta.

Os vícios de comportamento nunca vêm sozinhos, eles abrem a porta para outros, quer de substâncias, quer comportamentais também. Assim, o bosta n’água costuma se acompanhar de muita maconha, mídias sociais, pornografia, sadomasoquismo sutil, álcool, carboidratos, todos esses se retroalimentam.

É praticado sozinho ou acompanhado, pois o vício em companhia também faz parte do quadro geral. É curioso, pois essas companhias são chamadas de “amigos”, mas não o são, são cúmplices no vício.

O bosta n’água pensa que está “matando tempo”. Ledo engano: é o tempo que o está matando…


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO

“Por que Freud chamou de castração essa angústia?”

Francisco Daudt: Porque, acredite ou não, era hábito da época as crianças serem ameaçadas com um “olha que eu corto o seu pinto!”, quando aprontavam. Eu mesmo tenho idade o bastante para ter ouvido uma dessas de um tio.

Mas a ameaça saiu de moda, até por causa de Freud ter chamado a atenção para a crueldade nela implícita. Ela, que era a síntese do poder de fogo do Superego, hoje em dia seria algo como “olha que eu não vou mais gostar de você, olha que eu te desamparo!”

De fato, o desamparo, o cancelamento, o ostracismo, o exílio, o abandono, a expulsão do grupo, o banimento, ser bloqueado, perder seguidores, perder o amor das pessoas queridas, a infâmia, as pessoas virando a cara para você, o esquecimento, a exclusão têm um significado muito mais claro e contundente, uma compreensão muito mais imediata.

O desamparo é a principal ameaça do Superego, a ameaça que mais causa medo (em alemão, “angst”), angústia.

Freud dizia que a castração ganhava sentido verdadeiro a partir do momento em que o menino via o primeiro genital feminino nu: ali estava um castrado e emasculado; tiraram-lhe o pênis. Aquela “pobre criatura” era uma menina; à época, isso significava uma pessoa inferior, de segunda classe: era o medo de se tornar um merda.

Não é à toa que os meninos temiam ser chamados de mulherzinha. É curioso, mas meninos não se xingam de “viadinho”, e sim de “mulherzinha”. A homofobia vem mais tarde; ela começa como misoginia, como ver as meninas como piores.


“AH, SE EU TIVESSE FEITO DIFERENTE…”

 



Do nada, surgiu um cara afobado e disse para ele: “Corre, Manoel, que tua mulher tá passando mal lá em Niterói!!”

Esbaforido, ele pegou a barca, e já estava no meio da baía da Guanabara quando disse: “Ei, espere… eu não me chamo Manoel, não sou casado, e não moro em Niterói… o que é que estou fazendo aqui?!?”

Quando o cliente me diz que podia ter feito diferente, sempre respondo:

“Não podia. Se pudesse, você se chamaria Manoel e moraria em Niterói”.