domingo, 1 de agosto de 2021

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?” - O AMIGO PERGUNTA

 



FASE ANAL

“A fase anal, descrita por Freud, tem a ver com homossexualidade?”

Francisco Daudt: Ih, você toca num ponto que traz muita confusão sobre esse conceito…

A melhor resposta curta é não. Mas, você sabe, quando a coisa é complexidade, respostas curtas são sempre insatisfatórias.

Para começar, a fase anal não foi descrita por Freud, mas por Karl Abraham. Freud tomou o conceito e o desdobrou para apresentá-la como símbolo da guerra que travamos entre os nossos interesses primitivos e os da cultura/civilização: fazer cocô de maneira aceitável.

É o típico exemplo de como uma coisa que pode nos ser favorável (ir ao banheiro) pode ser ensinada como uma obrigação imposta, causar birra, choro e ranger de dentes.

É que, por volta dos dois anos, a criança começa a ter controle de eliminação das fezes e da urina (controle dos esfíncteres) e pode ser apresentada ao banheiro, essa preciosa maravilha moderna que tomamos como coisa garantida até que nos falte, num camping selvagem (oh Lord…).

Infelizmente, em vez de mostrá-lo como lucro, muitos pais aflitos resolvem “disciplinar” a criança e apresentam o banheiro como dever. Aí começa a briga, cujo pior resultado é a encoprese (dos nomes mais feios do idioma): um jogo de retenção/liberação das fezes com eventuais escapes, com que a criança se entretém por horas, se escondendo pelos cantos… e levando bronca.

É claro que, junto com essa briga, não são apenas as fezes que têm que ser controladas, mas a raiva contra os pais, e por extensão, contra a cultura. Com isso, a criança com genética para obsessividade pode desenvolver uma tendência para controle de tudo, de seus pensamentos, de sua pureza/limpeza, ela se torna um paladino da cultura, um ser hipercultural cheio de regras e obsessões. (Há também os obsessivos bagunceiros, contraculturais).

E a homossexualidade? Claro, tem a ver com o possível prazer anal decorrente do jogo de retenção. Mas isso é tolice: o erotismo anal não é algo que se aprenda, é sim um dom da natureza, uma loteria genética. Como de resto, todas as zonas erógenas: há quem tenha mamilos cegos, há quem os tenha felizes, o mesmo se aplica ao ânus e ao reto, quer seja hétero ou gay. Uma queixa frequente no consultório é de héteros envergonhados de pedir que suas mulheres deem atenção a suas zonas carentes, “vai que ela ache que eu sou gay…”

Por isso, sempre odiei quando os “psis” falavam “ah, ele é um anal-retentivo”: não elucidava nada e ainda deixava pairando no ar uma alusão de viadagem.





VÍCIOS COMPORTAMENTAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS COMPORTAMENTAIS

“Além do fodão/merda, qual o vício comportamental mais frequente?”

Francisco Daudt: É o “bosta n’água”. Claro, isso não é um nome técnico, nem bonito é. De maneira mais formal se poderia chamar de “ociosidade viciosa”. Eu o apelidei assim por causa da qualidade de se estar à deriva, sem rumo, ao sabor das ondas e da maré… coisa que abala a autoestima e leva a pessoa a não se dar valor, a se sentir um bosta.

Os vícios de comportamento nunca vêm sozinhos, eles abrem a porta para outros, quer de substâncias, quer comportamentais também. Assim, o bosta n’água costuma se acompanhar de muita maconha, mídias sociais, pornografia, sadomasoquismo sutil, álcool, carboidratos, todos esses se retroalimentam.

É praticado sozinho ou acompanhado, pois o vício em companhia também faz parte do quadro geral. É curioso, pois essas companhias são chamadas de “amigos”, mas não o são, são cúmplices no vício.

O bosta n’água pensa que está “matando tempo”. Ledo engano: é o tempo que o está matando…


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


ANGÚSTIA DE CASTRAÇÃO

“Por que Freud chamou de castração essa angústia?”

Francisco Daudt: Porque, acredite ou não, era hábito da época as crianças serem ameaçadas com um “olha que eu corto o seu pinto!”, quando aprontavam. Eu mesmo tenho idade o bastante para ter ouvido uma dessas de um tio.

Mas a ameaça saiu de moda, até por causa de Freud ter chamado a atenção para a crueldade nela implícita. Ela, que era a síntese do poder de fogo do Superego, hoje em dia seria algo como “olha que eu não vou mais gostar de você, olha que eu te desamparo!”

De fato, o desamparo, o cancelamento, o ostracismo, o exílio, o abandono, a expulsão do grupo, o banimento, ser bloqueado, perder seguidores, perder o amor das pessoas queridas, a infâmia, as pessoas virando a cara para você, o esquecimento, a exclusão têm um significado muito mais claro e contundente, uma compreensão muito mais imediata.

O desamparo é a principal ameaça do Superego, a ameaça que mais causa medo (em alemão, “angst”), angústia.

Freud dizia que a castração ganhava sentido verdadeiro a partir do momento em que o menino via o primeiro genital feminino nu: ali estava um castrado e emasculado; tiraram-lhe o pênis. Aquela “pobre criatura” era uma menina; à época, isso significava uma pessoa inferior, de segunda classe: era o medo de se tornar um merda.

Não é à toa que os meninos temiam ser chamados de mulherzinha. É curioso, mas meninos não se xingam de “viadinho”, e sim de “mulherzinha”. A homofobia vem mais tarde; ela começa como misoginia, como ver as meninas como piores.


“AH, SE EU TIVESSE FEITO DIFERENTE…”

 



Do nada, surgiu um cara afobado e disse para ele: “Corre, Manoel, que tua mulher tá passando mal lá em Niterói!!”

Esbaforido, ele pegou a barca, e já estava no meio da baía da Guanabara quando disse: “Ei, espere… eu não me chamo Manoel, não sou casado, e não moro em Niterói… o que é que estou fazendo aqui?!?”

Quando o cliente me diz que podia ter feito diferente, sempre respondo:

“Não podia. Se pudesse, você se chamaria Manoel e moraria em Niterói”.


CAUSAS DA PAIXÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


CAUSAS DA PAIXÃO

De Marcio Fagundes: “Por que se idealiza? Por que há paixão?O que vem primeiro?”

Francisco Daudt: Por causa do medo do desamparo e da morte, a idealização é capaz de conceber um Pai Eterno e a Imortalidade: a “solução final”.

Claro, não é só isso, e “solução final” é um termo provocativo que alude ao sublime e ao terror, à salvação e ao extermínio.

Mas como lidar com a complexidade, senão ao pedacinhos? A psicanálise se parece muito com a análise vetorial, da física: para conhecermos a resultante, para onde o ponto se move, estudamos cada vetor, cada força aplicada sobre ele, sua intensidade, sua direção, seu sentido.

A paixão é a um só tempo complexa e simplória. É simplória porque é perfeita: tudo de bom, tudo de lindo, tudo… de tudo. Ela resolve os problemas, ela tira manchas, é imaculada, irretocável, ergue, prende e realça. Perfeito significa obra terminada, acabada. Ela é resultado, nem resultante é…

Mas isso é parte da crença do apaixonado, vamos à complexidade.

a. “passio”, do latim, só tem uma tradução: sofrimento. “Paixão e morte de nosso senhor” não se referia à Maria Madalena, mas ao calvário.

b. A psicologia evolucionista nos mostra que há estratégias sexuais diferentes quando se pensa em parcerias de curto e longo prazo. A paixão é típica da estratégia de longo prazo: estamos desejosos de passar o resto da vida com a pessoa, ter família com ela, nos dedicar a ela. De algum jeito, somos programados para a paixão.

c. Temos desde cedo um conceito de perfeição embutido no Superego. Ele está sempre nos dizendo que somos insuficientes, que devemos almejar mais. A paixão é a momentânea ilusão de que “chegamos lá”.

d. Pense no momento das paixões mais absolutas, a adolescência. É um tempo apavorante em que o Superego reina com suas exigências “sérias”: ser gente grande, entrar no mercado afetivo/sexual, ter que se provar como pessoa, idealização de perfeição, fodão/merda nas alturas. É o momento propício para descobrir aquela pessoa que “será tudo na sua vida”, “seus problemas acabaram”. Parece até o que a maconha promete…

e. No entanto… é preciso não jogar o bebê fora junto com a água do banho: o encantamento romântico pode bem conversar com a ambição de se ter um amor companheiro; o conhecimento do outro, de si mesmo, de seus limites e qualidades pode conversar com o tempero que os hormônios e o confeito de alguma idealização trazem.

Mas, como tempero…

“Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis…” (Jacques Prévert)




“Qual a diferença entre luto e depressão?” - O AMIGO PERGUNTA

 


LUTO E DEPRESSÃO

“Qual a diferença entre luto e depressão?”

Francisco Daudt: É uma diferença de vida e de morte. Apesar de o luto ser por algo ou alguém que morreu, pessoa ou amor, ele está muito mais para um processo vital do que a depressão, que é mortiça, apagada e sem vida.

O luto fala de amor, de uma parte doída do amor, mas ele é cheio de afeto, o principal deles a tristeza.

Um luto normal tem beleza, tem a contemplação de memórias, e seu término deixa uma rica herança: contemplar a felicidade de ter vivido uma bela história, o legado de lembranças, como disse Drumond:

“…mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”.

No entanto, é verdade: o luto pode ser doente e trazer depressão. A depressão resulta de uma linha de montagem de angústias prolongadas: ameaças variadas de desamparo… e sentimento de culpa. Neste último mora o risco depressivo do luto: a ideia de que poderíamos ter salvo o perdido, as auto-acusações que daí partem podem bem resultar em depressão.

Que é um mecanismo de defesa estranho, uma sem-gracice sombria, um recolhimento inerte que, aí sim, se parece com a morte em vida.





domingo, 18 de julho de 2021

SUICÍDIO E GENÉTICA - O AMIGO PERGUNTA

 



De Helena Flávia de Rezende Castelo Branco: “Há muitos casos em algumas famílias. Existe genética para suicídio?”

Francisco Daudt: Helena, não existe hereditariedade para o suicídio, mas… existe para depressão. E para piorar, existem os modelos familiares de identificação, “ah, meu irmão se matou, então…”.

Vamos no ainda pior: o sentimento de culpa face ao suicídio pode ser devastador, e detonador de depressão (se houver gatilho genético, mais ainda). O familiar sobrevivente se sente indigno de ser feliz, e às vezes indigno de viver.

O suicídio pode ser contagioso: quando Goethe publicou “Os sofrimentos do jovem Werther”, no século XVIl, houve uma epidemia de suicídios entre jovens.

O mesmo se deu em várias outras ocasiões, p.ex. quando Rodolfo Valentino morreu e várias “viúvas” não puderam tolerar um mundo sem ele. A imprensa é extremamente cuidadosa sobre o assunto por causa disso.

Pois é: até o modismo influencia suicídios.