De Adrilles Jorge: “Como distinguir na “ perversão “ um avanço ou um problema pra civilização ? A civilização nasce da renúncia em alguma medida do desejo , certo ? Como um psicanalista diz a um paciente o que é lícito ou não moralmente dentro da regra social do seu tempo ? Um pedófilo pode argumentar que tirar a camisa na praia já foi um atentado ao pudor como fazer sexo com criança . Um psicanalista deve se abster de juízos morais sempre ?”
Francisco Daudt: Vamos lá, que a pergunta é complexa. Primeiramente, um reparo: a perversão é uma doença estabelecida, com compulsão, repetição, aluguél mental etc.
O que eu afirmei ser transformador dos costumes é a transgressão não compulsiva, que se rebela contra regras e costumes que parecem injustos.
Civilização vem de “civis”, aquele que vive na cidade, o cidadão. A cidade surgiu com a agropecuária, há dez mil anos. Com ela, veio uma novidade para a espécie: a convivência com estranhos. Até então, o caçador-coletor vivia em tribos onde todos se conheciam… e todos se vigiavam, para restringir a predação e estimular a cooperação.
Conviver com estranhos requereu leis, e um governo com monopólio da violência para impô-las. Essas leis derivavam do ethos (a ética, o não causar danos) e do morus (a moral, que contempla os costumes não danosos), e deveriam fazer o que a vigilância da tribo fazia outrora: restringir a predação. Só. Infelizmente, o estímulo à cooperação ficou como a nossa maior perda, na transição.
Esta perda da cooperação estimulada é a principal causa do “mal-estar na civilização”, pois que a vigilância para contenção dos predadores sempre existiu. A dupla anterior era “coibição do vício com estímulo à virtude”; passou apenas a coibição do vício.
Para agravar a coisa, a forma de governo mais “natural” é a tirania: dê muito poder a alguém, e haverá abuso, opressão. Como resultado, o mal-estar era maior, pois as proibições eram tirânicas e atendiam principalmente ao… tirano.
Há 2.400 anos, surgiu uma esquisitice: a democracia. Ela pretendia que as leis surgissem da conversa e do convencimento (parlar, parlamento), e não da simples vontade do governante. Isso gerou leis mutáveis e mais respeitosas com as pessoas. Houve significativa diminuição do mal-estar.
A psicanálise, se quiser ser curativa das doenças e das perversões, não tem saída senão ser engajada na ideologia democrática. Ela própria é uma terapia da palavra, do parlar, do parlamento, do convencimento… e não da tirania.
Ela precisa defender a democracia interna da mente: não haverá tirania; nem do Id, nem do Superego. Eles precisam se conhecer e conversar entre si, para que o Ego exista, e não fique massacrado entre as duas potestades.
Todas, e eu repito, TODAS as doenças vêm da tirania mental, uma instância em guerra de poder sobre as outras, e o Ego (eu, você) no meio, sofrido (nas neuroses) ou abduzido (nas perversões).
Quem aparece no consultório é o Ego sofrido. Ninguém vai se tratar sem conflito íntimo. A pessoa pode até ter perversões, mas não está confortável com elas. Portanto, o psicanalista não precisará ser juiz, nem censor, nem acusador, nem repressor.
Ele pode exercer bem seu papel de advogado de defesa de seus clientes, para entender seu sofrimento, sua prisão, sua opressão.