domingo, 4 de julho de 2021

VÍCIO OU DOENÇA? - O AMIGO PERGUNTA


VÍCIO OU DOENÇA?
“Você fica falando em vício, mas o alcoolismo não é vício, é doença, certo?”

Francisco Daudt: Os dois, doença e vício. É verdade que, como o vício tem má fama, há quem se ofenda com o termo. Cabe esclarecimento, pois.

O vício é um tipo de doença muito particular. Não se pode fazer nada diante da Covid (exceto a prevenção) ou da apendicite: delas seremos sempre passivos. 

Já com o vício, não: ele contém uma fração de arbítrio, de escolha nossa, ainda que pequena, sobretudo depois de instalado. Ele é uma doença que relutamos em reconhecer como nossa (é muito mais fácil vê-la nos outros).

Tanto que, para combatê-la, é necessário admitir-se portador, é indispensável tomar para si o gerenciamento de sua cura, é mandatório deliberar a cada dia se vamos investir nela ou dela nos afastar.
Essa é a diferença.



 

VÍCIOS E SEUS GANHOS - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS E SEUS GANHOS

“Eu entendo o ganho de prazer em vários vícios comportamentais, mas… qual é o ganho do masoquismo?”

Francisco Daudt: Bem, no masoquismo sexual ele é óbvio: o castigo e a dor liberam da culpa e permitem o gozo. Há uma “satisfação ao superego”, um pedágio pago.

Já no masoquismo sutil, muito comum nas relações familiares (casais, pais e filhos) e no trabalho (assédio moral), há ganhos também sutis:

1. a nobreza do martírio: a cultura judaico-cristã enobrece o sacrifício (o feito sagrado), por aí a pessoa pode se sentir intimamente engrandecida, moralmente superior.

2. A vingança sutil: ao aparecer como a vítima sofredora, o agressor será visto – pelos outros – como um canalha.

3. O culto do coitadismo: ao enaltecer seu sofrimento, a pessoa pode pleitear ganhos indenizatórios. Essa modalidade tem se tornado uma política de grupos minoritários, atualmente. Apesar de haver justiça na base dessa luta, a linha que divide o uso do abuso, o pleito justo e a ambição de se tornar opressor, é também sutil.

4. Mas é preciso lembrar que o primeiro ganho desse masoquismo é ter-se evitado o confronto: por medo, ou pela culpa de se ter raiva de alguém muito importante para nossa sobrevivência (um pai, um patrão et al.)

É por isso que a psicanálise vê o combo sadomasoquismo nunca separado em dois grupos estanques: a pessoa pode ser manifestadamente sádica e sutilmente masoquista… e vice-versa.



“Como se tratam os vícios? Têm cura?” - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS 2

“Como se tratam os vícios? Têm cura?”

Francisco Daudt: Vício não tem cura, mas… pode-se viver muito bem sem eles.

É preciso saber que a predisposição ao vício de substâncias é genética. Os filhos devem ser avisados de que herdaram o gatilho, que se cuidem bem.

Uma senhora de setenta anos quis se divorciar: “Meu marido é alcoólatra e me bate”. “Quantos anos a sra. tem de casada?”. “Cinquenta”. O marido, filho de alcoólatras, passou a vida evitando o álcool. Aposentado, foi convencido pelos amigos que “agora ele podia se dar a esse direito”. Desenvolveu alcoolismo em dois anos…

Seja de substâncias, seja de comportamento, os vícios são tratados com um princípio geral (reconhecimento de se ter a doença, para poder gerenciá-la) e duas estratégias básicas: desinvestimento/abstinência do vício; investimento nas virtudes.

Sobre o princípio geral: não adianta acusar, nem vigiar, nem punir; se a própria pessoa não se reconhece dominada pela doença, nada, NADA vai adiantar. Nem vergonha, nem culpa, nem internação, nem remédios. Nada. A pessoa precisa ser a gerente de seu vício, da busca de sua cura, é sua única chance.

Sobre as estratégias: reconhecida a doença, vem a pergunta: que perspectivas de vida virtuosa (ética, bela, construtiva, autônoma, independente) tem a pessoa? É preciso que as haja. Se não estiverem à vista, é preciso buscá-las.

A saída de um vício deixa um buraco na alma, uma falta de sentido, um vazio social/afetivo, pois que os cúmplices se parecem muito com amigos. É necessária a substituição de uma coisa por outra; outros círculos sociais, outras companhias, outras amizades que não se baseiem no vício.

A abstinência: todo viciado em substância passa um tempo verificando se realmente tem que ir para o “substância-zero”, ou se pode “usar um pouquinho”. Ele próprio precisará descobrir a resposta, mesmo que na enorme maioria das vezes o “substância-zero” seja o destino.

Já no caso dos vícios comportamentais, a abstinência é mais difícil. Como todos eles se baseiam numa ilusão de superioridade, numa crença na ideologia fodão/merda, numa tentação de se sentir fodão a cada momento, o cultivo da virtude precisa ser simultâneo. Que virtude? A humildade. O saber-se falho, o aceitar-se incompleto. O apreciar-se em construção. O ter metas de se fazer melhor (melhor, veja bem; não “superior”).

O papel do psicanalista: nunca acusar, nunca humilhar, nunca culpar. Apoiar a luta, ser seu parceiro, descobrir capacidades e potenciais virtuosos do cliente. Entender e investigar as circunstâncias históricas e as circunstâncias-gatilho.

Mostrar como seu cliente foi envolvido e seduzido por elas. Ajudá-lo a identificá-las e previni-las.



“O vício é falta de vergonha na cara?” - O AMIGO PERGUNTA

 


VÍCIOS

“O vício é falta de vergonha na cara?”

Francisco Daudt: Não é. O vício é uma doença, e a tentativa de fazer com que a pessoa o abandone através do sentimento de culpa ou de vergonha é o maior tiro no pé que se pode dar. A culpa/vergonha são tão incomodas, que levam o viciado a eliminá-las… com mais uma dose.

Chama-se de vício à repetição compulsiva (“mais forte do que eu”) de algum ato que dá satisfação imediata, mas que se sabe errado, ou prejudicial aos nossos principais interesses. Quando há uma momentânea restrição interna, a pessoa diz, “ah, foda-se, vou fazer!”.

Há os vícios óbvios de substâncias que dão prazer imediato, e infelizmente entre elas estão os carboidratos. O que separa o uso do abuso, o hábito do vício, é o dano (daí o “dane-se”) aos principais interesses da pessoa.

E há os vícios comportamentais, como a hipocondria, a cleptomania, e o mais comum de todos: o fodão/merda.

O f&m é uma variante sutil do sadomasoquismo. É curioso, porque enquanto o sadomasoquismo, aquele sexual das botas e chicotes, é bem raro, já esses maltratos entre casais, com um humilhando o outro em público (em privado também, claro), são muito frequentes.

Eu os tomo como o exemplo mais claro do jogo fodão/merda: um parceiro, inseguro em sua autoestima, intimamente se achando um merda, encontra alívio momentâneo posando de fodão ao humilhar o outro, ao dizer que “merda é ele”.

Mas esse comportamento não se restringe aos casais. De jeito nenhum, ele é a praga psicológica que mais se espalha na atualidade. A compulsão de apontar os defeitos dos outros para se engrandecer, para obter alívio de sua condição de merda, atinge até presidentes da república: pense no Donald Trump…


quinta-feira, 24 de junho de 2021

INIBIÇÃO - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que é inibição, em psicanálise?”

FD: É o que acontece quando, num processo de trinta passos, você prevê encrenca no passo 13 e por isso não dá o passo 1.

Mas a encrenca pode ser real ou imaginada, a inibição pode ser saudável ou neurótica. As encrencas imaginadas são muitíssimo maiores do que as reais, pois imaginação não tem limites. O monstro imaginado pode ser tão assustador que você fica inibido até de conferir seu nível de realidade, se ele é tão monstruoso quanto se pensa.

Essa do monstro é a inibição neurótica; por isso, é objeto de investigação da psicanálise. Que crença problemática está construindo o monstro? Há alguma profecia do tipo, “ah, eu não vou dar certo na vida mesmo…”, que esteja te fazendo imaginar dificuldades insuperáveis? Você foi tão mimado que não suporta algo diferente do sucesso imediato? A investigar…

A outra não; a inibição saudável tem a ver com a singularidade do nosso desejo: se me dizem que eu devo fazer exercícios físicos “que são bons para você”, logo imagino o tédio e as dores musculares… e não faço nada.







TERROR DOS PALCOS - O AMIGO PERGUNTA


“Qual a origem da fobia social, do medo de aparecer em público?”

Francisco Daudt: Vem da obrigação de ter que ser outra pessoa, porque você “sabe” que ser você não é o bastante.

Fazendo uma caricatura bem “Freud explica” (mas só pra provocar), você foi criado sob amor condicional: “eu te amarei se… você atender às minhas expectativas”. A partir daí a criança fica tentando ler o que esses pais esperam dela, tentando ser outra pessoa. Expressões como “você me decepcionou!” também ajudam.

A criança não entende a injustiça contida na proposta, mas certamente se perturba com ela. Seu Superego se constrói de forma supercrítica, em constante observação de seus atos, em permanente desqualificação do que você faz de espontâneo.

Como fruto dessa injustiça, uma grande quantidade de raiva é reprimida, pois é raiva contra alguém de quem sua sobrevivência depende… e a bomba-relógio está armada.

Quando isso acontece com alguém com forte desejo exibicionista (não é nada vergonhoso ou errado ter tal desejo, ele nasce com a pessoa, e é uma das armas de sedução), a criança será tímida – que teme o julgamento da plateia – e um dia, a partir de uma situação, a fobia se desencadeará.

Todas as fobias derivam de dificuldades de gerenciamento da raiva. Tendem a acometer obsessivos bonzinhos; costumam estar acompanhadas de relações sadomasoquistas sutis com pessoas afetivamente importantes (pai, mãe, cônjuge, chefes et al.).





SIGNIFICAÇÃO A POSTERIORI - O AMIGO PERGUNTA

 


De Sergio Perocco: “O que é o après-coup, em psicanálise?”

Francisco Daudt: Quando você me perguntou, eu não tinha ideia do que se tratava. Aí você disse, “é o conceito freudiano de Nachträglichkeit”.

Ah, bom, disse eu, a “significação a posteriori” (imagine só, eu entender melhor através do nome em alemão…).
Eu nunca tive contato com esse termo em francês, pois minha leitura de Freud se deu em cima da coleção da Imago, da tradução inglesa do Strachey.

A melhor explicação para o “a posteriori” é a do homem que vinha pela rua quando alguém passou por ele correndo. Ele não ligou muito. Quando virou a esquina, perguntaram-lhe: “o Sr. viu o assassino de dez mulheres que estava em fuga?” E o homem desmaiou…

Ou seja, o trauma só se deu quando a ficha caiu.

O mesmo se deu comigo, quando meu irmão mais velho fez o favor de me informar que masturbação era pecado mortal. Pensei, “Ih, tô fulminado…”

E eu só tinha nove anos!