quinta-feira, 24 de junho de 2021

SIGNIFICAÇÃO A POSTERIORI - O AMIGO PERGUNTA

 


De Sergio Perocco: “O que é o après-coup, em psicanálise?”

Francisco Daudt: Quando você me perguntou, eu não tinha ideia do que se tratava. Aí você disse, “é o conceito freudiano de Nachträglichkeit”.

Ah, bom, disse eu, a “significação a posteriori” (imagine só, eu entender melhor através do nome em alemão…).
Eu nunca tive contato com esse termo em francês, pois minha leitura de Freud se deu em cima da coleção da Imago, da tradução inglesa do Strachey.

A melhor explicação para o “a posteriori” é a do homem que vinha pela rua quando alguém passou por ele correndo. Ele não ligou muito. Quando virou a esquina, perguntaram-lhe: “o Sr. viu o assassino de dez mulheres que estava em fuga?” E o homem desmaiou…

Ou seja, o trauma só se deu quando a ficha caiu.

O mesmo se deu comigo, quando meu irmão mais velho fez o favor de me informar que masturbação era pecado mortal. Pensei, “Ih, tô fulminado…”

E eu só tinha nove anos!







ZONAS DE INTERSEÇÃO – TROCAS POSSÍVEIS

 


“São duas meias e uma inteira”, diz você; “Quarenta reais”, diz a bilheteira do cinema… e aí termina a mais básica das interações pessoais.

Por contraste, a paixão idealiza a “troca total”, o encontro da “outra metade da maçã” com quem você vai se fundir “em um só corpo e uma só alma”.

Tá certo, a primeira é realista demais, pequena demais, ainda que necessária; a segunda é uma viagem delirante fadada ao fracasso, mas… entre as duas, há muitas trocas possíveis e belas, desde que: 1. se conheça o próprio desejo; e se aprenda que: 2. cajueiro não dá banana.

Há aquele amigo com quem eu só converso sobre carros; há aquele parente terraplanista com quem só troco memórias dos anos 50; há aquele crush e todo um clima entre nós, mas não dá pra mais nada além disso (o paradigma do cajueiro/banana); há com quem é possível conversar sobre as variações Goldberg e a insuperabilidade do Glenn Gould (mas não queira ir muito além); há quem também fale javanês e some encontro intelectual com afetivo (poucos, muito poucos); há os do intelectual, afetivo e erótico (total raridade, beirando a ilusão); há os do só erótico (e como têm valor!).

“Mil folhas”, é o que somos. E zona de interseção é aquele negócio da teoria dos conjuntos, quando dois círculos se sobrepõem parcialmente: o truque é poder regulá-la (para mais, para menos, para nada), de acordo com os dois princípios enunciados acima, o do desejo e o do cajueiro.

Quanto mais conhecermos sobre nosso próprio desejo, e mais formos capazes de avaliar os potenciais frutíferos do outro, mais felicidade teremos.







PERVERSÃO - O AMIGO PERGUNTA

 



De Maria Scalise: "O que é perversão? Quais os sintomas?"

Francisco Daudt: Perversão é a transgressão sistematizada. É quando aquele “foda-se, vou fazer!” se torna uma compulsão, algo mais forte que você, que agora é prisioneiro dela, pois virou um vício.

É um nome que já me deu muito trabalho, de tão feio que é. No senso comum, o perverso é aquele sádico cruel, de modo que nunca o uso, em clínica. Não vou dizer a nenhum cliente que “ele tem uma perversão”. No lugar disso, digo que “ele é prisioneiro de um vício”.

O mecanismo de defesa da perversão é a renegação. A coisa se dá assim: a pessoa sente despertar-se nela um desejo proibido, ou malvisto pelo seu Superego. A crítica do Superego a ameaça. Existe um silencioso embate entre o desejo e a crítica/condenação: “isso é errado”, “mas eu quero!”, “olhe as consequências do seu ato”, “ahhh, dane-se! Vou fazer, assim mesmo!”.

Sim, mas foi desse jeito que conquistamos vários direitos antes proibidos. Quase que se poderia dizer que, sem a renegação não haveria vida sexual, já que ela começa na infância como uma coisa “feia e proibida”. O bisavô de meus filhos foi preso por ter ido à praia sem camisa… em 1928. Se não houvesse esse tipo de transgressão, estaríamos na mesma até hoje.

Isso sem mencionar os direitos das mulheres, e como eles avançaram graças a transgressão. As leis não mudam por uma conversa racional tranquila, mas por força das mudanças transgressoras dos costumes.

Outra coisa é a perversão/vício: você não usa mais a transgressão; é usado por ela. Você não é mais dono; é escravo…







YUVAL HARARI (sobre a edição em quadrinhos de “Sapiens”)

 


YUVAL HARARI (sobre a edição em quadrinhos de “Sapiens”):

“Eu penso que, fazer um esforço para alcançar uma audiência mais ampla, não é prejudicar os valores da ciência: é servir a ela!”

É exatamente o que venho fazendo com a psicanálise ao longo da minha carreira: torná-la acessível, transparente, clara; tirá-la das mãos da igrejinha, da academia, dos religiosos do saber.

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PSICANÁLISE QUE NINGUÉM ENTENDE - O AMIGO PERGUNTA

 



De Leandro Alves de Siqueira: “Vi que existe entre os psicanalistas uma espécie de gozo no falar difícil e no não entendimento. Mas não é um contrassenso?”

Francisco Daudt: Leandro, as nossas ações são complexas, multideterminadas, mas existe esse componente, um certo complexo de inferioridade na psicanálise: diante da dificuldade de se entender a psiquê humana, e frustrada por sua impotência, a pessoa pode se sentir atraída a se dedicar mais ao confeito do que ao bolo; mais às firulas do que à substância; mais à espuma que ao chope; mais ao rito do que ao significado; mais à forma que ao conteúdo; mais à erudição que à sabedoria.

Tenho muita compaixão pelo aspirante a psicanalista que ambicionava entender os segredos da mente, mas quando chegou ao curso de psicologia (ou à formação analítica) se deparou com uma enxurrada de conhecimentos esotéricos, que o deixavam perplexo.

Imagino-o sempre a se perguntar, “mas então é isso? Eu não estou entendendo nada, então… o errado devo ser eu, eu devo ser meio burro”. E a partir daí, começou um processo de se adaptar, de aderir, de aprender a falar difícil, de ter o gozo de passar a perplexidade adiante, de não ser mais a vítima dela, mas seu causador.

Eu mesmo escapei por pura sorte dessa arapuca: eu era médico clínico havia cinco anos quando resolvi ser psicanalista. Não precisei cursar psicologia, portanto. Estive prestes a fazer uma formação com analista kleiniano, mas o destino me pôs diante de um freudiano formado na Argentina pelo Angel Garma (que tinha se formado com o Theodor Reik, formado por sua vez pelo próprio Freud). Foi desse jeito que me tornei um “freudiano de quarta geração”, em linha direta com o velho professor austríaco.

Assim, minha base teórica principal foi Freud, e ele fala língua de gente: eu entendia tudo. Ainda por cima, coordenei por dez anos grupos de estudo de Freud, e não tem melhor jeito de aprender que ensinar.

É daí que vem minha mania de ser claro.







O CONCEITO DE TRAUMA EM PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“O que é trauma, em psicanálise? É algum acontecimento horrível?”

Francisco Daudt: Chama-se de trauma a experiência vivida que abala o equilíbrio psíquico e que aciona os mecanismos de defesa contra a angústia, produzindo um rearranjo mental que contém sintomas de doença.

Todo mundo pensa logo num acontecimento, uma cena presenciada, um abuso sofrido na infância. Mas… não é necessariamente assim.

Apesar de haver a neurose pós-traumática, como as neuroses de guerra que vêm depois de o soldado ver o amigo a seu lado morrer com a cabeça despedaçada, por exemplo, a maior parte dos traumas que vivemos acontecem por uma prática esquisita, um clima ruim, um ambiente ameaçador estabelecidos por extenso tempo em casa, ao longo de nosso crescimento.

Um menino de dez anos foi um dos namoradinhos do Michael Jackson, por um período. O pai descobriu e acionou o cantor em milhões de dólares, expondo o filho no processo. Três anos depois, o menino disse-se magoado porque o cantor nunca mais o procurou. Onde estaria o trauma?

A primeira tendência é apontar o abuso sexual que o menino sofreu, mas…

Do ponto de vista do menino, aquela foi a maior experiência de sua vida: paixão, prazer, glamour, encantamento. (Em um documentário recente, vários ex-namoradinhos do cantor repetiram a mesma história: eles viveram um tremendo caso de amor. O que foi ruim foi o que veio depois da separação.)

Ainda de seu ponto de vista, o mundo caiu por causa da reação do pai, da exposição na mídia, do clima que se instalou em casa, do drama da divisão íntima entre gostar de suas lembranças e a obrigação de ter horror a elas. Drama que se arrastou por anos.

Onde estaria o trauma? Muito mais no drama que fizeram do caso do que no caso em si.

Disclaimer: Será que tenho de lembrar que “isso não é endosso da pedofilia, e sim o uso de uma situação extrema, condenável (com justa razão) pelo senso comum, para caricaturar de maneira clara o conceito de trauma”? Será?







DESEJO: PERFIS - O AMIGO PERGUNTA

 


Rodrigo Souza: “Por que um cara como eu, de 25 anos, passa a ter desejo por homens mais velhos?”

Francisco Daudt: A psicanálise investiga como é o desejo da pessoa, e quais são os problemas que interferem nesse desejo. Em princípio, não há problemas no seu desejo, isso é só o perfil dele. E a minha resposta pode não te atender, dada a singularidade que os desejos têm.

Mas, de fato, andei vendo desejos semelhantes no consultório, e achei alguns pontos em comum neles: a busca de figura paternal, que contém acolhimento, colo, reconhecimento amoroso, força e grandeza, porto seguro, proteção; mais a vontade de ser dominado/possuído por um poder gentil, de se entregar a alguém que tome conta, de esquecer das ameaças do mundo em seus braços, pois se está “em boas mãos”.

Além disso, costuma haver um desejo de corrigir a própria história. Muitos gays passaram pela experiência de dois tempos em relação ao próprio pai: um tempo amoroso, em que o pai as acolhia e acarinhava; seguido de um tempo de rejeição, quando o pai foi percebendo a orientação homoerótica do filho.

Disso resulta que o objeto de desejo, para muitos gays, seja um homem hétero, mais velho ou não. A parte triste é que, em vez de ser corrigida, aquela história de proximidade seguida de rejeição muitas vezes se repete, no drama da paixão.

Isso sim, é um assunto para se tratar na psicanálise.