Paciente, antônimo de agente, é aquele passivo de uma ação. Um faz, o outro recebe. O cirurgião opera; o paciente é operado.
Em psicanálise, o cliente (aquele para quem o clínico se inclina para entender) participa ativamente do processo: é dele que vêm as pecinhas do puzzle que o analista monta; é ele que corrige, se a montagem estiver errada. O cliente é a bússola ativa do psicanalista: é sempre ele que dá o rumo.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
O Arcebispo de Usher (1581-1656) fez uma cronologia da vida na Terra baseada em estudos bíblicos e de outras fontes, de tal maneira concluiu que a criação do mundo ocorreu no dia 23 de outubro do ano 4004 antes de Cristo (a. C.) pelo calendário juliano. Na época, a afirmação foi amplamente aceita.
Quando, no século XIX, começaram a aparecer fósseis de dinossauros, mostrando que a Terra era muito mais antiga, um sucessor dele deu uma explicação fascinante e irrefutável:
“Mas é claro, a Terra foi sim criada por Deus há 6 mil anos. Mas foi criada com um passado, assim como Adão: Deus o criou com um passado, ou ele não saberia o que fazer no paraíso, iria se comportar como um bebê. Ele não nasceu de ventre de mulher, mas como tinha um passado, também tinha umbigo. Os dinossauros são o umbigo/passado da Terra!”
O meu fascínio é que a história do arcebispo de Usher define o que separa ciência de fé: tudo que for irrefutável não será matéria de ciência, será assunto de fé.
As propostas/hipóteses da ciência PRECISAM ser vulneráveis à refutação, pois almejam a busca do verdadeiro. Só se aproximam da verdade aquelas que ainda escapam da refutação possível.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Um amigo toca numa questão que sempre me demanda um esforço especial: como nomear o sentimento despertado pela injustiça sem produzir reações desconfortáveis.
Sempre que menciono “raiva”, há quem se manifeste contra essa emoção, supondo que ela implica ações destrutivas e nefastas, não vendo que ela pode funcionar como um meio de busca civilizada de justiça, recusando-se a ver tal mácula em seu coração. Se eu falar em “ódio”, aí então fecha o tempo...
Primeiramente, concordaremos que sofrer uma injustiça não nos faz felizes. Mas como nomear esse sentimento desagradável? Tenho tentado “desconforto”, “inconformismo”, “indignação”, “ressentimento”, “ultraje”, “mágoa”, “mal-estar”.
Não tenho nada contra esses eufemismos, mas penso que “raiva” tem a virtude de, não apenas resumi-los, mas também a de suscitar debates como este.
A raiva é um sentimento visto como feio e mau desde nossa infância, quando somos ensinados a só ter bons sentimentos, “vocês são irmãozinhos e devem se amar, nunca sentir raiva um do outro”, mesmo se o outro nos sacaneou brabo.
A repressão da raiva é o motor da neurose obsessiva, e da sua formação reativa, a “bonzinhice”, que torna as crianças presas fáceis do bullying.
Mas a raiva é como a dor e a febre: um sinal de que algo não vai bem, de que alguma providência se faz necessária. A ausência de dor ou febre pode nos deixar negligentes com a doença, e nos levar à morte.
A ausência de raiva diante da injustiça permite que ela prospere e nos cause danos ainda maiores.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Na ciência, o erro faz parte do jogo. As hipóteses podem estar erradas; os processos podem conter erro. No primeiro caso, elas serão descartadas. No segundo, eles serão corrigidos.
Na psique, o erro corre sério risco: causar culpa. O sentimento de culpa pode ser a danação do erro, por excesso ou por falta: ou o erro é varrido para debaixo do tapete, pois sua admissão seria devastadora; ou o erro se torna drama, é um horror, e põe tudo a perder, pois se joga o bebê fora junto com a água do banho. Nada se corrige e nada se aproveita.
É preciso, pois, valorizar a utilidade do erro (como na ciência)... separando-o do sentimento de culpa.
Ou seja, não é “ah, desculpa, tá?” É, sim, "foi erro meu, e vou consertar”.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
É tudo uma questão de justiça. Ou de como se chega a ela a partir da injustiça. A opressão contém injustiça, por definição: um desequilíbrio da balança de poderes da justiça.
Somos programados para reagir à injustiça: ela nos gera raiva. Se um filho vê seu irmão receber atenções desequilibradas, ele sente uma forma de raiva: o ciúme. Assim é nossa reação em todas as situações em que nos sentimos injustiçados: ficamos com raiva.
Se não houver raiva, indignação, não reagiremos, não haverá busca de justiça. Pode-se dizer então que a raiva é mãe da justiça.
A questão seguinte será como a justiça é feita. O irmão ciumento pode dar com um pau na cabeça do queridinho. O motorista que levou uma fechada pode perseguir o infrator para se vingar. Sim: a vingança é a mais primitiva forma de justiça. Daí os justiceiros, os linchamentos, os cancelamentos etc.
A vingança é reativa, e a reatividade é o movimento mental mais rápido, simplório e comum da humanidade.
Necessário à sobrevivência, sob pressão todos reagimos, não refletimos. Não há tempo nem calma para a reflexão.
Se a reação contempla a simples sobrevivência, a reflexão contempla a complexidade da vivência. Mas ela precisa de paz e de tempo. Não foi à toa que seu primeiro marco histórico só se deu há 2.400 anos: a Grécia clássica.
De volta à justiça, ao longo da história inúmeros movimentos contra a opressão foram necessariamente violentos, reativos, revolucionários e exagerados ao oposto, num primeiro momento.
O mesmo se deu/dá em relação à homossexualidade. Tomemos um indivíduo gay, como exemplo: com a percepção de que é diferente da maioria, e com características que o senso comum rotula como “erradas”, ele passou grande parte de sua vida ocultando sua condição; envergonhado dela. Ele vive uma guerra surda, uma opressão injusta, e reage do jeito que pode, se escondendo.
Quando as condições mudam, ele sai do armário e passa, reativamente, ao extremo oposto: da vergonha ao orgulho gay. Desfilará sua condição como um estandarte, pois continua em guerra, em busca de justiça para si e seus pares, agora na fase da vingança.
Como fruto dessa reação vingativa contra os opressores, muitos oprimidos conseguiram um tempo de paz, um lugar ao sol, uma jurisprudência para seu direito de ser quem é, agora com serenidade e possibilidade de reflexão.
Mas... “si vis pacem, para bellum” (“se queres a paz, prepara a guerra”), diziam os romanos. Ou, como eu dizia a meus filhos, “quando Freud não explica, Lampião entra em ação”.
Sem esquecer que nosso desejo é a serenidade, a paz e a reflexão racional, os maiores potenciais de uma espécie que se pretende Sapiens...
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Os calos são um bom exemplo de conversa entre natureza e cultura. Nosso DNA instalou no corpo um programa para engrossar a pele como resposta ao atrito repetido. Assim se formam os calos.
Sabendo disso, quem não gosta de ter calos nos pés (natureza) escolhe sapatos mais confortáveis (cultura).
(Do livro de David Buss, “Evolutionary Psychology - the new science of the mind”).
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
O termo “gaslighting” (“manipulação psicológica”) vem sendo usado quando alguém sofre um processo de desnorteamento/enlouquecimento proposital promovido por outros, necessariamente pessoas próximas.
Ele saiu do título de um filme (“Gaslight” / “À meia-luz”, George Cukor, 1944) em que a heroína sofre uma manipulação psicológica feita pelo marido para que ela deixe de acreditar em suas percepções e comece a achar que enlouqueceu.
Infelizmente, existe na vida real. Acompanhei um caso em que minha cliente ouvia de sua família insinuações, comunicações cifradas, alusões, indiretas, sarcasmos, falas a terceiros na sua frente que pareciam se referir a ela. Quando tentava esclarecer as coisas, era ridicularizada, “é tudo da sua cabeça, ninguém estava falando de você”, “não se pode brincar mais com você?”, “tá maluca?”, “que paranoia” etc.
Deu um trabalho detetivesco enorme, recolhendo manifestações mais consistentes, evidências esparsas, até que delineássemos o processo sádico de gaslighting que ela sofria.
A segunda parte foi fazer com que ela visse que havia se metido num vício sadomasoquista com eles, e que ela acabava estimulando o bullying na medida em que se encolhia (a lei do bullying é “quem se encolhe apanha mais”).
Quando ela começou a não entrar no jogo, a cuidar mais de sua vida, a síndrome de abstinência atingiu seus familiares (“Como assim? Ela vai deixar de ser a louca da família?”), eles se tornaram mais agressivos e evidentes, fazendo-a ver que não podia confiar mais neles.
Isso lhe deu sentimentos ambivalentes: alívio, pois viu que não estava louca; mas também grande tristeza e um luto pela perda do investimento afetivo que tinha neles.
Por mais duro que seja, é melhor ver o câncer, ou ele não será tratado.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD