quarta-feira, 26 de maio de 2021

REPRESENTAÇÃO PSÍQUICA: A LUA, E COMO A VEMOS


A princesinha queria a lua de presente. O rei seu pai nunca lhe havia negado nada, mas dessa vez... Chamou os sábios da corte. “Impossível”, disseram-lhe eles, “ela é enorme e distante”.

Mas o bobo da corte foi perguntar à princesa: “Como é a lua?”
“Ai, bobo, como você é bobo! Todo mundo sabe que a lua é uma medalha de ouro colada no céu! É só ir lá e pegar!”

O rei ficou feliz, e numa noite sem lua a princesinha ganhou seu presente, a lua de ouro presa a uma correntinha.

Mas no dia seguinte a pergunta apareceu: e quando a lua ressurgir no céu? Convocados, os sábios deram sugestões inviáveis: “uma cortina de veludo negro cercando o palácio!” “Fogos de artifício todas as noites, daqui por diante!”

Debalde. Na noite seguinte, a lua nova despontava, o rei se atormentava, e o bobo foi perguntar à princesinha: “Mas você está com a lua, como é que ela reaparece no céu?”

“Ai, bobo, como você é bobo! Todo mundo sabe que a lua é como a unha: você corta e ela nasce de novo. Não está vendo a unhinha já crescendo?”

Esse bobo da corte é o meu psicanalista favorito: ele não tira onda de sabichão, ele não interpreta; quer saber o que o cliente vê, quer se pôr na pele dele para entender seu ponto de vista, sua representação psíquica das coisas.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

O DESEJO E O MÉTODO MICHELÂNGELO DE ESCULPIR - O AMIGO PERGUNTA

 


“Como se aprende a conhecer o próprio desejo?”

Francisco Daudt: Começando pela definição de desejo, em psicanálise: ele vai além daquela coisa de grávida de comer doce de leite com pimenta. O desejo é o jeito singular de como a vida moldou nosso impulso animal de buscar prazer.

O que você está lendo aqui, portanto, é uma expressão do meu desejo: eu tenho prazer na escrita e tenho prazer de imaginar a apreciação do leitor.

E o Michelângelo? Conta-se que perguntaram a ele como havia conseguido esculpir o Davi. “Bem, eu vi o cubo de mármore, sabia que o Davi estava dentro, e fui tirando as sobras”, foi sua resposta.

De fato, para aprender sobre o próprio desejo, é muito mais fácil eliminar o que não é do que saber direto o que é.“Que faculdade eu vou escolher? Matemática? Nem pensar, eu me interesso mais por humanas”, e assim por diante.

Foi como eu me tornei psicanalista. E como sei que isso se encaixa no meu desejo? É simples: porque tenho prazer na profissão.

Há perguntas-chave nesse processo: “Eu quero? Ou eu tenho quê...?” O treino na autoconsulta servirá como bússola.

Mas, e aquele cliente que disse ser a vingança o que o motivava na vida? A vingança era o desejo dele?

Não. A vingança era a doença do desejo dele. Ele era prisioneiro de uma busca compulsiva (quer dizer “mais forte do que ele”) pela vingança. O desejo legítimo não aprisiona, a doença e o vício sim.

Mas a vingança era, ainda que vício, um distante representante de seu desejo. Como a vingança é uma forma primitiva de justiça, ele tinha, de fato, desejo legítimo de justiça.

Quando entendemos a injustiça original que o aprisionava, aquela lasca de pedra foi jogada fora.

Não era o Davi.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


FREUD ENCONTRA DARWIN (subtítulo do meu livro “Natureza Humana 2”)



Freud baseou sua teoria dos impulsos na de Darwin: o que nos guia é sobrevivência e sexo; busca de prazer e evitação de desprazer.

O Eros de Freud é uma síntese do desejo sexual com o zelo de sobrevivência. A história do Impulso de Morte é mais complicada (e tardia, na obra freudiana, muito influenciada pela 1ª Grande Guerra).




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

“Como a psicologia evolucionista contribui para a psicanálise?” - A NATUREZA FALA

 


“Como a psicologia evolucionista contribui para a psicanálise?”

Francisco Daudt: Porque ela é de esplêndida ajuda para se entender como a mente funciona.

Há, nas ciências humanas, a tendência forte a ver o ser humano como um produto exclusivo da cultura, como se nascêssemos uma página em branco (tábula rasa) onde o meio iria escrever tudo o que somos.

A proposta da psicologia evolucionista é mostrar como o nosso lado “bicho” opera em nós, e como ele interage com a cultura (em inglês, “nature and nurture”).

Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam. A psicanálise visa aumentar nossa margem de liberdade de escolhas (já que o “livre arbítrio” não é tão livre assim). Ela contempla os cordéis da nossa criação, os embaraços e enredos de quem nos criou, e como ficamos enrolados neles.

Mas isso não é suficiente. A psicologia evolucionista estuda os cordéis genéticos, a influência da natureza.
Precisamos conhecê-los. Um exemplo forte? Homens e mulheres têm naturezas diferentes, a seleção natural desenvolveu neles comportamentos especializados, só porque mulheres engravidam e homens não.

Dificilmente alguém das humanas dirá que o fato de a gravidez ser exclusiva das mulheres é uma determinação cultural, e não genética. A partir desse exemplo simples, podemos aprofundar o estudo de como a natureza influencia nosso comportamento, nossas alegrias e nossos problemas.

Começo aqui uma série nova, sobre psicologia evolucionista: A NATUREZA FALA. São pequenos exemplos tirados do meu livro de referência sobre o assunto: “Evolutionary Psychology - the new science of the mind”, de David Buss. (David Buss é o “cara”!).

A foto na capa do livro é do jovem Charles Darwin.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



LEANDRO KONDER, UM COMUNISTA GENTIL

 



Só não era um aristocrata porque não pretendia comandar nada (aristocracia significa o comando dos melhores), nem carro dirigia, mas foi um dos melhores seres humanos que tive a ventura de conhecer.

Há coisas muito boas que vêm com o casamento. Meus dois filhos encabeçam a lista, claro, mas esse amigo da mãe deles seguramente não está longe.

Entre 1986 e 1989 foi nossa rotina passar as noites de sábado imersos na atmosfera inteligente e acolhedora de sua casa, aberta aos amigos comunistas, entre jornalistas e professores, todos a debater com a costumeira ferocidade, enquanto ele aguardava uma brecha para intervir com uma palavra sábia de lucidez desapaixonada.

Era interrompido, claro, e se calava, esperando uma nova chance de ser ouvido. Eu ali, um estranho no ninho, democrata liberal que desistiu de se meter na conversa depois que ousei dizer que o PRI (Partido Republicano Institucional do México, que já se mantinha no poder havia sessenta anos) era uma ditadura disfarçada, só para ser rechaçado por um jornalista que me calou para sempre com um “Não é!” furibundo. Tornado espectador, aprendi muito sobre dialética. Da rasa e da complexa.

Meu comunista querido era o oposto da definição que José Serra fez do PT, “o bolchevismo sem utopia”, diabo de frase que me tomou uns minutos para entender (“o poder totalitário sem idealismo”).

Ele era um utópico sem tirania. Seu ídolo era o francês do século 19, pai do socialismo utópico, Charles Fourier. Já havia se afastado do “socialismo real” quando Khrushchev denunciou Stalin e seus “malfeitos”. Migrou para o eurocomunismo. Aderiu ao PT até o mensalão vir à tona, quando foi para o PSOL. Ainda bem que morreu sem se dar conta do petrolão…

Não santificava o proletariado, o que ficou claro quando me mostrou orgulhoso um bilhete crítico de seu filho de cinco anos sobre a empregada: “Pai, a Creuza é bura”, e rimos juntos da inteligência do menino, a despeito do “burra” com um “r” só (ou por isso também).

Foi responsável pelo primeiro artigo que escrevi, que ele fez publicar na revista do partidão, “Novos Rumos”, vejam vocês! Eu havia argumentado que a AIDS era talvez a primeira praga que derrotava a tendência histórica de arranjar culpados para explicá-la (no final dos anos 1980 já se sabia que ela não era um castigo contra os gays). “Você tem que escrever isso”, incentivou-me. Foi assim que partejou este escriba.

Partilhava comigo a desdita dos professores que odeiam os olhos vácuos dos alunos. “Francisco, eu sou uma prostituta, faço qualquer coisa em classe para despertar o brilho neles”. Há inúmeros depoimentos do fascínio que suas aulas despertavam.

Revisou com carinho meu primeiro livro (“A Criação Original”), e fez-me um elogio inesquecível: “Você escreveu a versão psicanalítica de ‘A democracia como valor universal’ (livro muito valorizado de Carlos Nelson Coutinho).” Como se não bastasse, enviou um exemplar a seu amigo Paulo Francis, que me deixou nas nuvens ao escrever em sua coluna, “afinal um psicanalista que escreve limpo”.

Há um verbete no dicionário feito para ele: “indivíduo cujos atos e maneiras demonstram fidalguia e distinção de sentimentos; elegante; garboso; formoso; bem apessoado”. O verbete: gentleman. Obrigado para sempre, querido Leandro Konder.

(E ainda por cima não era só bonito de coração).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“CONTRA ARGUMENTOS, NÃO HÁ FATOS”

 



Aqui vai minha modesta contribuição para suavizar as relações entre familiares e amigos, nesses tempos polarizados:

Se a pessoa é, ao mesmo tempo, terraplanista e querida, desista de convencê-la diferentemente e converse sobre outro assunto em que exista encontro prazeroso.



 
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domingo, 9 de maio de 2021

PSICANÁLISE E FÉ . 2 - O AMIGO PERGUNTA

 


PSICANÁLISE E FÉ . 2

Há outras pistas para se saber se uma fé é amorosa ou é extensão do Superego: 

Uma fé amorosa não se diz superior aos outros, não produz “superioridade moral”, nunca diz “morte aos infiéis”. 

Uma fé amorosa não cultiva o sofrimento e a privação como meios de agradar a seu deus; não aposta na “nobreza do martírio”.

Uma fé amorosa não se orgulha de fazer de seus seguidores párias da humanidade.
Uma fé amorosa não fomenta o ódio.

Uma fé amorosa traz paz e acolhimento contagiosos, não divide amigos nem familiares por sua crença, não leva à guerra.

Enfim, a fé superegoica tende a ser uma forma de sadomasoquismo, da modalidade fodão/merda, em que o crente se une ao seu deus (não importa se místico ou mítico) para triunfar, vencer sobre os outros. 

Vencer; nunca convencer.


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FRANCISCO DAUDT

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