quarta-feira, 26 de maio de 2021

LEANDRO KONDER, UM COMUNISTA GENTIL

 



Só não era um aristocrata porque não pretendia comandar nada (aristocracia significa o comando dos melhores), nem carro dirigia, mas foi um dos melhores seres humanos que tive a ventura de conhecer.

Há coisas muito boas que vêm com o casamento. Meus dois filhos encabeçam a lista, claro, mas esse amigo da mãe deles seguramente não está longe.

Entre 1986 e 1989 foi nossa rotina passar as noites de sábado imersos na atmosfera inteligente e acolhedora de sua casa, aberta aos amigos comunistas, entre jornalistas e professores, todos a debater com a costumeira ferocidade, enquanto ele aguardava uma brecha para intervir com uma palavra sábia de lucidez desapaixonada.

Era interrompido, claro, e se calava, esperando uma nova chance de ser ouvido. Eu ali, um estranho no ninho, democrata liberal que desistiu de se meter na conversa depois que ousei dizer que o PRI (Partido Republicano Institucional do México, que já se mantinha no poder havia sessenta anos) era uma ditadura disfarçada, só para ser rechaçado por um jornalista que me calou para sempre com um “Não é!” furibundo. Tornado espectador, aprendi muito sobre dialética. Da rasa e da complexa.

Meu comunista querido era o oposto da definição que José Serra fez do PT, “o bolchevismo sem utopia”, diabo de frase que me tomou uns minutos para entender (“o poder totalitário sem idealismo”).

Ele era um utópico sem tirania. Seu ídolo era o francês do século 19, pai do socialismo utópico, Charles Fourier. Já havia se afastado do “socialismo real” quando Khrushchev denunciou Stalin e seus “malfeitos”. Migrou para o eurocomunismo. Aderiu ao PT até o mensalão vir à tona, quando foi para o PSOL. Ainda bem que morreu sem se dar conta do petrolão…

Não santificava o proletariado, o que ficou claro quando me mostrou orgulhoso um bilhete crítico de seu filho de cinco anos sobre a empregada: “Pai, a Creuza é bura”, e rimos juntos da inteligência do menino, a despeito do “burra” com um “r” só (ou por isso também).

Foi responsável pelo primeiro artigo que escrevi, que ele fez publicar na revista do partidão, “Novos Rumos”, vejam vocês! Eu havia argumentado que a AIDS era talvez a primeira praga que derrotava a tendência histórica de arranjar culpados para explicá-la (no final dos anos 1980 já se sabia que ela não era um castigo contra os gays). “Você tem que escrever isso”, incentivou-me. Foi assim que partejou este escriba.

Partilhava comigo a desdita dos professores que odeiam os olhos vácuos dos alunos. “Francisco, eu sou uma prostituta, faço qualquer coisa em classe para despertar o brilho neles”. Há inúmeros depoimentos do fascínio que suas aulas despertavam.

Revisou com carinho meu primeiro livro (“A Criação Original”), e fez-me um elogio inesquecível: “Você escreveu a versão psicanalítica de ‘A democracia como valor universal’ (livro muito valorizado de Carlos Nelson Coutinho).” Como se não bastasse, enviou um exemplar a seu amigo Paulo Francis, que me deixou nas nuvens ao escrever em sua coluna, “afinal um psicanalista que escreve limpo”.

Há um verbete no dicionário feito para ele: “indivíduo cujos atos e maneiras demonstram fidalguia e distinção de sentimentos; elegante; garboso; formoso; bem apessoado”. O verbete: gentleman. Obrigado para sempre, querido Leandro Konder.

(E ainda por cima não era só bonito de coração).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“CONTRA ARGUMENTOS, NÃO HÁ FATOS”

 



Aqui vai minha modesta contribuição para suavizar as relações entre familiares e amigos, nesses tempos polarizados:

Se a pessoa é, ao mesmo tempo, terraplanista e querida, desista de convencê-la diferentemente e converse sobre outro assunto em que exista encontro prazeroso.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



domingo, 9 de maio de 2021

PSICANÁLISE E FÉ . 2 - O AMIGO PERGUNTA

 


PSICANÁLISE E FÉ . 2

Há outras pistas para se saber se uma fé é amorosa ou é extensão do Superego: 

Uma fé amorosa não se diz superior aos outros, não produz “superioridade moral”, nunca diz “morte aos infiéis”. 

Uma fé amorosa não cultiva o sofrimento e a privação como meios de agradar a seu deus; não aposta na “nobreza do martírio”.

Uma fé amorosa não se orgulha de fazer de seus seguidores párias da humanidade.
Uma fé amorosa não fomenta o ódio.

Uma fé amorosa traz paz e acolhimento contagiosos, não divide amigos nem familiares por sua crença, não leva à guerra.

Enfim, a fé superegoica tende a ser uma forma de sadomasoquismo, da modalidade fodão/merda, em que o crente se une ao seu deus (não importa se místico ou mítico) para triunfar, vencer sobre os outros. 

Vencer; nunca convencer.


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FRANCISCO DAUDT

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PSICANÁLISE E FÉ - O AMIGO PERGUNTA

 


PSICANÁLISE E FÉ

Rodrigo Vaz: “Se a crença em Deus é resultado de uma projeção externa do Superego, a análise bem sucedida leva ao ateísmo?”

Francisco Daudt: A complexidade da mente humana é tal que estamos aqui frente a duas questões possivelmente não excludentes: a fé e o Superego. 

A análise bem sucedida conduz a que valores, antes monopolizados pela tirania do Superego, sejam examinados pela pessoa e, se considerados aceitáveis, trazidos para a esfera do Eu (Ego). 

Assim, “Eu não sou honesto por medo do Superego, Eu/Ego sou honesto porque endosso esse valor”.

Igualmente, existirá a fé que deriva do desejo amoroso do Eu. Para além daquela que leva ao “temor a Deus”, esta sim, superegoica.


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“MÃE É MÃE”

 


“MÃE É MÃE”

Consulta: Obrigação de Gostar dos Pais
(Publicado em 01 de fevereiro de 2012)

PERGUNTA: “Vou lhe dizer uma coisa que tenho medo de dizer até para mim mesma: descobri que não gosto de minha mãe. Eu sou uma pessoa horrível?”

“Você é! Afinal, mãe é mãe, a pessoa que te presenteou com a vida e é merecedora de eterna devoção, não há nada de mais sagrado!”

Esqueça tudo o que escrevi até agora, pois foi apenas uma caricatura da mais poderosa religião que existe: o senso comum. Essa religião não tem nada escrito, como a bíblia, mas tem tudo aludido de forma sutil. E, por ser sutil, não tem como ser contra-argumentado.

Experimente dizer por aí que você não gosta da sua mãe e as pessoas não dirão nada. Apenas fecharão a cara, suspirarão, revirarão os olhos e… pronto: tudo está dito, e da pior maneira.

O que está dito é que você é horrível, que sua mãe é perfeita, que você está contrariando as leis de deus e da natureza ao mesmo tempo, e que você merece o fogo do inferno.

Mas, vamos pensar com racionalidade. A mãe natureza não está nem um pouco interessada em nossa felicidade, apenas em que procriemos. Por causa disso, pessoas, sem a menor vocação para pais, procriam à vontade.

Levitt, em seu “Freakonomics”, demonstrou que filhos indesejados se destinam à marginalidade, sejam dos pobres ou dos ricos, e que o direito de aborto desses filhos foi fundamental para a redução da criminalidade nos EUA.

Ou seja, você pode ter constatado a incompetência de sua mãe para a função de mãe, e não deve ter a menor culpa por isto.

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“Como a psicanálise vê a paixão?” - O AMIGO PERGUNTA

 


PAIXÃO

“Como a psicanálise vê a paixão?”

Francisco Daudt: Como um estado alterado da mente em que a pessoa pensa que está se relacionando com outra, mas – apesar de a outra realmente existir – a relação se dá com um ser ideal imaginado, com uma idealização do outro, uma espécie de “outro enfeitado” por todas as maravilhas que moram no nosso Superego.

Lembrando: Freud chamou o Superego de “O que está acima de mim” (“das Überich”). Esse software se construiu sobre uma base dos nossos programas inatos de sobrevivência: lá moram os nossos medos e tudo que nos ameaça; desde o escuro e as cobras até o abandono e o desamparo.

Mas também mora o “Ser ideal perfeito” que, desde esse pedestal, nos cobra permanentemente a estar à altura dele. O truque é: “seja perfeito e você estará imune às ameaças”, ou “as ameaças só existem porque você não é perfeito”.

Por isso é tão fácil para a humanidade imaginar um ser perfeito, todo-poderoso, onisciente, onipresente, completamente bom e justo, que até a morte vence. É o Superego externo, presente em todas as culturas: os deuses.

Esses deuses são o Salvador, o Redentor, aqueles que corrigirão todas as nossas misérias, nos protegerão de todos os nossos males. Basta... adorá-los em troca.

O que nos remete à paixão. Gosto muito de caricaturas, elas nos ajudam a entender coisas difíceis. Pois pego agora a paixão adolescente como caricatura de todas as paixões. Quando ela acontece, a pessoa é presa da agonia e do êxtase. Parece que todos os seus problemas acabaram, que você “chegou lá!” Não à toa, as musas dessa paixão são chamadas de “minha deusa”. “Ela é tudo para mim; eu serei tudo para ela”.

Essa é a parte do êxtase. A agonia começa com o significado original de paixão: sofrimento! O latim “passio” só permite essa tradução. Eis porque se diz “a paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. É isso: aquela paixão dele não tinha nada a ver com Maria Madalena...

Você imagina o tamanho da ameaça que é imaginar perder o objeto de sua paixão? Por isso o assunto dos adolescentes apaixonados é um só: ciúme/posse. Ciúmes sexuais e ciúmes de prestígio. Entendeu agora o “crime passional”?

A ironia final: o latim “passio” equivale ao grego “patos”, portanto “patologia” pode ser traduzido como “o estudo das paixões/sofrimentos”...

O próximo capítulo, portanto, contemplará os vários níveis da paixão: do normal ao doentio, ao patológico.

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terça-feira, 4 de maio de 2021

O FIM DA ANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



Clô Franklin: “Quando é que a análise termina? Como saber essa hora?”

Francisco Daudt: Ih, esse assunto já foi fonte de muita encrenca. Uma cliente me contou que, nos anos 70, teve que assinar um termo de responsabilidade para poder largar sua análise, pois o analista disse que ela corria risco de suicídio, se saísse.

Essa era uma arapuca perversa da psicanálise daquela época: não era incomum que as pessoas fizessem cinco sessões semanais. Ora, se ela largasse, o analista perderia uma fração substancial de seus proventos, donde – mesmo sem má intenção – ele poderia se seduzir com a ideia de que as análises deveriam ser intermináveis.

Sou favorável a que o analista desarme para si possíveis seduções de desonestidade/abuso de poder. Se ele tem muitos clientes de uma sessão por semana, por exemplo, não fará drama se o cliente quiser sair. O mesmo se aplica ao tempo de sessão: uma duração contratada de tantos minutos removerá a tentação de despachar logo o cliente.

Se o psicanalista tem claro para si que ele é um prestador de serviços, se ele faz diagnóstico e busca a cura, não ficará seduzido pela ideia da psicanálise como coisa monumental, que visa rever toda a vida do paciente, e levar anos com isso. Poderá aceitar que também há objetivos terapêuticos mais limitados (como o tão atual tratamento do luto, causado pela Covid).

De qualquer modo, tomei como política nunca, NUNCA objetar à vontade do cliente de interromper a análise. Entender, sim; objetar, não. Mesmo porque, cabe ao cliente dizer quando está satisfeito. Eu nunca “dou alta”, porque não dou “atestados de cura”, nem me concebo com esse poder.

Agora, entender sim, porque às vezes a vontade de interromper é uma expressão de que algum mal-estar com a análise se despertou no cliente, e ele não achou outra maneira de expressá-lo.

Mas eu quero que a saída do cliente seja simples, descomplicada. É claro que aquele exemplo lá no início tem uma função de antimodelo, de tanto horror a atitude do analista me despertou.

Mas não é só isso. É que eu não quero que a psicanálise seja algo de monumental. A monumentalidade pertence ao reino do Superego, daquilo que está “Acima de mim”, e o Superego faz parte do problema, não da solução. Portanto, um cliente que interrompe hoje, pode bem querer voltar amanhã, ele precisa saber que as portas estarão sempre abertas.

Além disso, é parte do meu trabalho a “transferência de tecnologia”, de modo que um cliente possa cumprir as duas etapas do tratamento inventado por Freud: a análise terminável (a de consultório), e aquela que ele será capaz de fazer sozinho, com sua introspecção.

Essa sim, interminável.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD