terça-feira, 4 de maio de 2021

O FIM DA ANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



Clô Franklin: “Quando é que a análise termina? Como saber essa hora?”

Francisco Daudt: Ih, esse assunto já foi fonte de muita encrenca. Uma cliente me contou que, nos anos 70, teve que assinar um termo de responsabilidade para poder largar sua análise, pois o analista disse que ela corria risco de suicídio, se saísse.

Essa era uma arapuca perversa da psicanálise daquela época: não era incomum que as pessoas fizessem cinco sessões semanais. Ora, se ela largasse, o analista perderia uma fração substancial de seus proventos, donde – mesmo sem má intenção – ele poderia se seduzir com a ideia de que as análises deveriam ser intermináveis.

Sou favorável a que o analista desarme para si possíveis seduções de desonestidade/abuso de poder. Se ele tem muitos clientes de uma sessão por semana, por exemplo, não fará drama se o cliente quiser sair. O mesmo se aplica ao tempo de sessão: uma duração contratada de tantos minutos removerá a tentação de despachar logo o cliente.

Se o psicanalista tem claro para si que ele é um prestador de serviços, se ele faz diagnóstico e busca a cura, não ficará seduzido pela ideia da psicanálise como coisa monumental, que visa rever toda a vida do paciente, e levar anos com isso. Poderá aceitar que também há objetivos terapêuticos mais limitados (como o tão atual tratamento do luto, causado pela Covid).

De qualquer modo, tomei como política nunca, NUNCA objetar à vontade do cliente de interromper a análise. Entender, sim; objetar, não. Mesmo porque, cabe ao cliente dizer quando está satisfeito. Eu nunca “dou alta”, porque não dou “atestados de cura”, nem me concebo com esse poder.

Agora, entender sim, porque às vezes a vontade de interromper é uma expressão de que algum mal-estar com a análise se despertou no cliente, e ele não achou outra maneira de expressá-lo.

Mas eu quero que a saída do cliente seja simples, descomplicada. É claro que aquele exemplo lá no início tem uma função de antimodelo, de tanto horror a atitude do analista me despertou.

Mas não é só isso. É que eu não quero que a psicanálise seja algo de monumental. A monumentalidade pertence ao reino do Superego, daquilo que está “Acima de mim”, e o Superego faz parte do problema, não da solução. Portanto, um cliente que interrompe hoje, pode bem querer voltar amanhã, ele precisa saber que as portas estarão sempre abertas.

Além disso, é parte do meu trabalho a “transferência de tecnologia”, de modo que um cliente possa cumprir as duas etapas do tratamento inventado por Freud: a análise terminável (a de consultório), e aquela que ele será capaz de fazer sozinho, com sua introspecção.

Essa sim, interminável.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




F.O.M.O. E INSÔNIA

 



Gostei de terem inventado o conceito de F.O.M.O. (“Fear of missing out”), o medo de estar perdendo alguma coisa melhor, a compulsão de se divertir, de ter permanente excitação, uma praga contemporânea da geração mimada com vício de companhia e das mídias sociais.

Por que praga? Pelo cultivo do imediatismo como valor indiscutível, o prazer incessante como direito adquirido e inalienável.

“Abaixo o natal com data marcada; natal pode ser a qualquer hora! Nós queremos Monareta AGORA!”, assim cantava uma propaganda dos anos 80, anunciando a chegada dos “entitled” (“aqueles que têm direito”, um aperfeiçoamento dos “spoiled”, estragados”, mimados, em inglês).

Mas, qual é o problema de se querer prazer? Nenhum, em princípio. O problema está no tipo de prazer: há o prazer de alívio e o prazer de realização. O de alívio mais caricatural e extremado é heroína na veia. Dizem que não existe prazer maior e mais imediato. É pena que não se repita, pois depois do vício instalado (bastam duas doses, é como crack), a nova injeção só serve para tirar a síndrome de abstinência.

O prazer de realização requer investimento: conhecimento do próprio desejo, capacidade de reflexão e construção. Isto serve para uma relação amorosa, para encontrar uma profissão que dê sustento e seja bonita de fazer, tanto quanto para o prazer que tenho ao escrever este texto, já que ele é fruto de tudo o que enumerei antes.

O cultivo do imediatismo que leva ao F.O.M.O. emburrece, pois incapacita para a reflexão, já que ele é fruto de pura reação. Depois do pequeno barato que vem de se checar pela enésima vez as últimas postagens das mídias, vem a fissura de fazer mais uma, ver mais outra, numa aceleração que leva à... insônia.

O dormir requer ritual de desacelaração. Você já deve ter visto aquelas crianças hiperativas que não dormem, e sim desmaiam de exaustão. Pois o F.O.M.O. funciona igual. O dia não termina, pois “eu ainda posso ver mais uma coisa, fazer mais outra”.

Dificilmente alguém estará imune ao F.O.M.O., pois ele já se instalou no espírito do tempo atual. Minha intenção aqui é, como faz a psicanálise, tornar consciente as armadilhas que nos aprisionam, buscar liberdade, independência e autonomia.

E depois, dormir o sono dos justos...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




OS LIMITES DO “PODE”



Um bom corrimão de escada é uma tentação permanente para uma criança. Temos essa “questão” aqui em casa. Podíamos dizer aos nossos filhos: “Não, vocês não podem escorregar nele. É perigoso!”. E eles iam escorregar escondido.

Preferimos ensinar a escorregar com segurança. Primeiro, depois da curva de 180º, que é o ponto crítico. Depois, já bem treinadas, desde lá de cima.

Foi assim que o corrimão entrou no crescente rol dos direitos delas: os limites do “pode”.

Poxa, nós crescemos ouvindo que criança precisa de limites, e a lista enorme do que não podíamos e de nossos deveres. Ninguém nos informava sobre nossos direitos, a gente ia se virando por transgressões...

A psicanálise visa nos apossarmos do direito ao nosso desejo.

(Do meu livro “O Aprendiz do Desejo - a adolescência pela vida afora”, Editora 7Letras - Disponível em: https://7letras.com.br/livro/o-aprendiz-do-desejo/).



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




 

AUDÁCIA E ZELO



“Vai lá, otário, chega nela!”

“Ah, mas... e se ela me der um passa fora?”

Em toda ação humana, audácia e zelo conversam, mesmo sem que percebamos. Igualmente ignorado é o fato de que eles respondem pelos nossos dois instintos animais básicos: sexual (reprodução) e sobrevivência.

Freud os chamou de “Princípio do Prazer” e “Princípio da Realidade”: “Sim, eu quero comer muito pão com manteiga!”; “Ai, meu Deus, isso vai me custar um baita aumento de peso...” 

O princípio do prazer termina em exclamação! O da realidade, em reticências...




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD






 

A PSICANÁLISE E O PRÉ-CONSCIENTE

 



O que você comeu ontem no jantar? Lembrou-se? Até eu perguntar, o registro dessa memória estava no seu pré-consciente. Agora, com sua atenção chamada, ela se tornou consciente, como é consciente o fato de você estar lendo este texto.

A consciência depende da nossa atenção. De início, antes de falar do Ego, Id e Superego, Freud descreveu o aparelho psíquico dividindo-o em Consciente, Pré-consciente e Inconsciente. 

No Inconsciente ficam os arquivos de memória inalcançáveis: os que servem de “fundações” do prédio mental a ser construído (como por exemplo, o nosso aprendizado do português) e aqueles reprimidos pelo horror de vê-los. São esses últimos o objeto da pesquisa psicanalítica.

Mas eu sou encantado pelo pré-consciente. Ao ponto de considerar a nostalgia meu esporte favorito. O prazer que me dá tirar da prateleira arquivos antigos, intocados há décadas, como anúncios de TV dos anos 60 (“Quem bate? É o frio! Não adianta bater...”) e mostrá-los para “companheiros de carteira de identidade”... É uma delícia. Quanto mais antigos e surpreendentes, melhor.

Outro exercício fascinante é tornar consciente o número de informações que nos traz uma simples olhadela em alguém desconhecido. Experimente: veja a pessoa na rua por cinco segundos e depois fale sobre ela. Você vai ficar pasmo de ver quanta percepção pré-consciente recolheu: escolaridade, classe social, orientação sexual, sinais hostis ou amistosos, tipo de tribo etc.

Você já se imaginou como sendo um computador cujo HD comporta infinitos gigabytes de memória? Eles são registros do que captamos por todos os sentidos, de modo que, remontados num sonho, constroem verdadeiras superproduções cinematográficas. Cenários, pessoas, tramas, cidades, ambientes, sons, tudo tirado dos nossos arquivos e roteirizado por nossos desejos.

O psicanalista lida com esses arquivos. Não é que você vá recuperar arquivos inconscientes, mas a memória pré-consciente vai ser vista por ângulos novos:

“Édipo, você se lembra da sua mãe, antes de se casar com ela? Claro que não! Você foi criado pelos reis de Corinto, nunca conheceu a rainha de Tebas. Ela só te gerou, sua mãe foi a outra. Afinal, você se sente culpado de quê?”

Nunca me conformei de o Édipo não ter tido um bom psicanalista para ajudá-lo a reler seus arquivos de memórias...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD





quarta-feira, 28 de abril de 2021

PSICANALISTA DÁ CONSELHOS? (O AMIGO PERGUNTA)

 



Lucas Peccin: “Como deve se posicionar o psicanalista diante de dilemas decisórios de um cliente?”

Francisco Daudt: Ah, isso tem uma história interessante. Freud dava um único conselho aos clientes: que não tomassem nenhuma decisão crucial antes de se completar um ano de análise. Ele não queria que o cliente “mudasse de vida” sem saber se essa mudança estava baseada em seus desejos ou em suas neuroses.

Nada de gravidezes, separações, casamentos, demissões de emprego, rompimentos etc., portanto. Que eles pensassem suas vidas, antes.

Sempre achei muito sensata essa sugestão. O objetivo da psicanálise é o “debugging”, tirar os vírus do software, separar o joio do trigo, conhecer cada vez mais os desejos do cliente sem as “invasões bárbaras” do Complexo de Édipo e as interferências do Superego – o representante supremo do Senso Comum –, sabendo que a singularidade da pessoa e o senso incomum de suas circunstâncias é que importam.

Mas... haverá momentos em que o cliente se vê frente a decisões difíceis, ele quer o apoio do analista, ele gostaria de um conselho.

É a hora de o psicanalista humildemente contemplar a inatingível complexidade do outro: todos nós temos uma balança interna de dois pratos – custos e benefícios – e só nós podemos avaliá-la. Não há ação que não passe por ela. 

A melhor ajuda que ele pode dar ao cliente é apresentar custos e benefícios não percebidos na situação, para que tome uma decisão mais ponderada.

Mas há dilemas frente aos quais a coisa muda. “Não sei se me caso ou se compro uma bicicleta” é a indecisão caricatural da dúvida obsessiva. Não é dilema, é sintoma. O cliente está alugado, não consegue pensar em mais nada, aquilo é compulsivo e atormentador. A balança nunca pende para um lado, pois há sempre um contrapeso a ser posto no outro.

Aqui entra o psicanalista investigador: o sintoma obsessivo é uma questão deslocada. Um assunto secundário substitui um drama que não pode ser pensado, pois está reprimido.

A cliente estava abduzida pela dúvida: que nome dar ao filho ainda por nascer. Queria o nome perfeito, só pensava naquilo, chegava a sonhar com as infinitas possibilidades, imaginava que se errasse arruinaria a vida do filho para sempre.

O que estava em jogo, afinal, era sua profunda ambivalência com aquela gravidez que atrapalhava (arruinava?) seus próprios planos de vida. Tinha pensado em abortar, mas um brutal sentimento de culpa fez o pensamento sumir, substituído pelo mais radical “amor antecipado” pela cria,...

...e pela dúvida obsessiva.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



ADAPTAÇÃO DE LINGUAGEM

 



Um psicanalista carioca famoso mencionou a puberdade durante uma palestra. A moça na plateia levantou o dedo e perguntou: “o que é puberdade?”

O palestrante fez uma cara de quem viu um ornitorrinco... e prosseguiu a palestra sem respondê-la.

Esse caso me remeteu a duas coisas interessantes que Paulo Freire falou (sem entrar no mérito das outras):

1. Não existe pergunta idiota; todas podem despertar ricas reflexões.

2. Cabe ao professor adaptar sua linguagem ao aluno. Se você está alfabetizando um nordestino do interior, “vovó viu a uva” não servirá como texto, pois dificilmente ele terá avó e certamente nunca viu uma uva.

Voltando ao caso, era uma bela oportunidade de distinguir adolescência de puberdade. “Adolescer” significa crescer, donde adolescência é “em crescimento”. Puberdade diz respeito à invasão dos hormônios sexuais que acontece lá pelos doze anos em diante. A puberdade (do latim “pubertas”, pelos, barba) implica uma tremenda mudança de vida, para a criança. Ela se vê diante de uma transformação corporal que põe fim à infância e anuncia todas as inseguranças da vida adulta, desde as negociações sexuais até a de como ganhar dinheiro e ser independente.

Olha só a oportunidade que o psicanalista perdeu...

A segunda questão, a da vovó que viu a uva, é crucial para o psicanalista. Ela é mesmo um divisor de águas. Eu sei que venho enchendo o saco com essa repetição sobre a necessidade de clareza e transparência na fala do analista, mas a cada vez um detalhe novo disso aparece.

No exemplo do palestrante, ficou clara uma triste mensagem: “eu sou superior e você é inferior; se você quiser saber o que estou falando, corra atrás, pois eu me dou ao direito de ser enigmático, esotérico (significa “para poucos”) e vago”.

Em termos de teoria psicanalítica, seria algo como: “eu sou representante do Superego, não preciso convencer, uso o argumento de autoridade, devo ser reverenciado e temido; diante do Superego, todos devemos nos curvar”.

Sim, é triste, mas os psicanalistas se dividem entre aqueles que, como eu, acham o Superego parte do problema; e aqueles que o usam – muitas vezes sem sabê-lo, pois nunca se questionaram a respeito – como ferramenta de trabalho, subjugando o cliente.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD