segunda-feira, 19 de abril de 2021

UM IMPACIENTE CHAMADO BRASIL

 



O “Valor Econômico” me pede uma entrevista. O tema: “E se o Brasil fosse seu paciente?”

Apesar de eu só ter pacientes que procuram tratamento por se verem com problemas (eu não atendo pessoas em que só os outros veem problemas; respondo sempre, “agora que me conhece, quando você achar que precisa de ajuda, sabe o caminho”); apesar – por essa mesma razão – de saber do tamanho da minha impotência para ajudar, desejo sim olhar o Brasil e pensar em seu sofrimento, que é o meu também.

Tristeza, depressão e vício, os males do Brasil são. A tristeza vem de um tipo difícil de luto: o de gente viva. Como aquele grande amor que nos largou, vivemos entre a saudade e a esperança. A esperança, nesses casos, é uma coisa esquisita: às vezes ela é a última que morre; outras vezes, a primeira que mata.

Ariano Suassuna disse que não era um otimista, pois o otimista é um tolo; nem um pessimista, pois o pessimista é um chato; queria ser um realista esperançoso.

Tá difícil, Ariano, tá difícil. Olhamos o Brasil e dizemos, “o que será que eu vi nessa pessoa?” Outra hora, “ah, não, vai melhorar...” É assim que a esperança tem nos alentado e maltratado.

A depressão, como todas, é resultado da angústia prolongada. Nossa angústia vem do medo da sifudência e da raiva impotente, não carece de explicação. Seus sintomas são apatia, desalento e irritabilidade, esta última sendo o sintoma menos reconhecido da depressão. Há pessoas muito ativas que passam a vida puxando briga com pipoqueiro, e não se reconhecem depressivas.

Então vem o vício. Assim como depressivos usam álcool como remédio, muito antes de procurar ajuda, os vícios distraem e aliviam momentaneamente, fazem esquecer das dores e mágoas, mesmo que cobrem alto preço mais adiante. Infelizmente, quem está sofrendo não pensa em mais adiante: a farpa exige alívio já, a dor empurra para o imediatismo.

O vício que assola o Brasil é o tribalismo fodão/merda. A política do “nós contra eles”, que vem sendo cultivada há anos, ganhou o impulso das mídias sociais para se tornar guerra viciosa: a dopamina (neurotransmissor do prazer) que inunda o cérebro a cada vez que xingo, humilho, rotulo o outro de merda, se torna nossa dependência, nossa razão de viver.

A micro-vitória da minha tribo, conseguida às custas da derrota da tribo oposta – e isso é um fenômeno mundial, não é exclusivo nosso – faz com que percamos as referências de uma identidade nacional e nos afunda na lama da doença cada vez mais, aumentando a tristeza, a desesperança e a depressão... que nos impulsionarão para mais vício.

Ou seja, é um círculo vicioso...

“Mas, e a cura, doutor?” Como em qualquer doença, a prioridade é a parte mais grave e mais danosa. No caso do Brasil, o vício. A primeira coisa, os AA já recomendam há tempos, é reconhecer-se doente.

É este o propósito da minha mais que modesta – porém esperançosa – contribuição aqui.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



A FILOSOFIA COMO CONSOLO

 



Diferentemente de necrotério (lugar dos mortos, em sua origem grega), cemitério é o lugar para dormir. O de nome mais bonito que conheço é o Cemitério da Consolação: lugar para dormir, lugar de consolo. Reúne duas necessidades básicas do ser humano neste vale de lágrimas: descansar e consolar-se.

As religiões são um produto natural deste anseio da espécie: elas nos consolam negando a morte (veja que no cemitério se dorme, não se está morto) e nos dando amparo do transcendente forte, um ser maior que nos protege.

E quem, como eu, não tem religião? Como faz para se consolar do desamparo e da solidão a que estamos condenados? Já estava no caminho de encontrar algo útil, não um transcendente forte acima de mim para me subjugar e a quem servir, ou para a ele me agarrar com unhas e dentes, mas de uma referência-ferramenta para enfrentar a pedreira existencial, quando esbarrei com Boécio e o consolo da filosofia.

Ele foi um romano do século 6º, preso injustamente e sentenciado à morte, que escreveu na prisão esse belo livro ("De Consolatione Philosophie") em que registra sua conversa com as musas da filosofia, buscando com elas entender o sentido de sua prisão e de sua condenação à morte. É uma linda metáfora para a própria vida, se lembrarmos daquela sua definição: a vida é uma doença sexualmente transmissível, com 100% de fatalidade.

Pois venho conversando com elas, as filosofias, e o que tenho ouvido delas me é de grande consolo. Primeiro foi a escola grega dos estoicos. Êta gente mal compreendida. No senso comum, são pessoas "que sofrem em silêncio". Não! Um estoico é alguém que simplesmente aceita a realidade que não pode ser mudada. Você nunca verá um estoico se queixar da chuva. E, se ele tiver perdido uma perna, fará tanto sentido se queixar de que tem uma só perna quanto faria para mim me queixar porque tenho duas: minha realidade é ter duas, a dele é ter uma. Mas um estoico não é cego às possibilidades de mudar a realidade incômoda: se ele souber de uma boa prótese no mercado, irá atrás dela.

Depois foram os céticos. Esses buscadores do conhecimento ("episteme") reconhecem que sua procura não tem fim, já que não chegam a nenhuma certeza absoluta, e sim a verdades funcionais. Não é aquela coisa pós-moderna de "toda verdade é relativa". Não. Existem verdades que fazem um avião voar, e fora delas existem desculpas. Na base aérea Edwards da Califórnia há uma placa que lembra: "Desculpas não voam".

Dentro da escola dos céticos, amo os agnósticos: são os que se declaram incapazes de conhecer um determinado assunto. Não confundir com os ateus ("sem deus"), pois estes têm certeza absoluta da inexistência de Deus, enquanto eu tenho problemas com certezas absolutas...

Basicamente, eu, agnóstico, digo: se não consigo o conhecimento disso, isso não me servirá como referência de vida. Quanto a isso, Deus e a física quântica se equivalem: não consigo o conhecimento deles; não me servirão como referência de vida.

Preciso de referências. Minha bronca com o pós-modernismo é tê-las detonado. Ouvi de uma cliente uma pergunta cômica: "Ué, o pós-modernismo já não saiu de moda?"

Vai ser pós-moderna assim...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



BRINCANDO DE PSICANÁLISE - O AMIGO PERGUNTA

 



“Como funciona a associação livre de ideias?”

Francisco Daudt: De uns tempos para cá, digo de vez em quando aos clientes, “Agora vamos brincar de psicanálise”. É o meu convite para que façam associação livre de ideias.

Ela é o truque inventado por Freud para substituir a hipnose. Você já deve ter ouvido falar das pranchas de Rorschach, umas manchas de tinta sem sentido prévio em que as pessoas veem aquilo que lhes aparece na cabeça.

Pois a associação livre é muito parecido. Freud dizia aos clientes: “Me conte o que aparece em sua mente, como se você estivesse olhando pela janela de um trem. Apenas diga, sem censura, o que for surgindo. Seja passivo espectador, não critique nem explique, apenas descreva”.

Claro, como ninguém mais anda de trem, eu uso uma tela de TV no lugar da janela. A dinâmica da coisa é tal que os relatos falam muito da pessoa e daquilo que ela nem imaginava que se passava em sua cabeça.

É uma linguagem a ser aprendida. Ninguém fala sem censura; vivemos medindo nossas palavras – sim, é verdade que alguns não medem – e descartando o que nos parece perigoso ou irrelevante. É preciso muita confiança em quem nos ouve para que nos aventuremos a tentar essa ousadia. Atenção, futuro psicanalista: cabe a você despertar tal confiança.

Se o psicanalista a despertou, o cliente falará coisas indizíveis em qualquer outro lugar do mundo. Ele sabe que aquilo não será usado contra ele nos tribunais do Superego, não suscitará juízos de valor, reprimendas, puxões de orelha, não será motivo de sua vergonha ou culpa, já que ele está falando com seu advogado de defesa.

Sim, o psicanalista estará ali para olhar as razões de seu sintoma, para entender como a história do cliente o levou àquele ponto, àquela situação. Ele sabe que o bom psicanalista não é um juiz, é um CSI, um investigador que monta puzzle: a livre associação de ideias é um esplêndido fornecedor de pecinhas.

Aliás, eu adoro a metáfora do quebra-cabeças: as pecinhas não parecem ter nada a ver umas com as outras, mas... algumas são de bordas (quem monta puzzle sabe que as bordas são preciosas; elas equivalem ao diagnóstico em psicanálise). Outras têm cores parecidas, e devem ficar em montinhos separados. Há que se ter paciência, porque não há a tampa do brinquedo para nos guiar, mas as figuras vão aos poucos sendo montadas.

É a hora em que, montado um pedaço do puzzle, o psicanalista pergunta ao cliente: “Isso faz sentido?” Se não fizer, desfazem-se as peças e se começa outra vez: o cliente não sabe, mas ele é o único que tem a tampa!

Já se vê que a tal associação não é tão livre quanto parece: ela segue uma tampa inconsciente do brinquedo, chamada “desejo”



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




domingo, 11 de abril de 2021

PSICANÁLISE: A INFORMÁTICA COMO METÁFORA - O AMIGO PERGUNTA

 



“Que semelhanças tem um computador com nossa mente? E que diferenças?”

Francisco Daudt: Ah, você não sabe que beleza é a ajuda da informática na explicação de como a mente funciona! Quem viu o filme “Divertida Mente”, da Disney (2015) faz ideia do que estou falando.

Começando pela diferença entre hardware e software: cérebro, neurônios, neuroquímica de um lado; e do outro, programas de comportamento com os quais nascemos (os softwares que vêm com a máquina, ou “firmwares”), programação externa que a cultura e a criação dos filhos opera em cima deles. 

Isso, para começar. Depois vêm as sobrecargas, quando o processador fica lento; os bugs/vírus que invadem os sistemas (e o consequente trabalho de “debugging”, feito pela psicanálise); a necessidade de ressetar a máquina (o sono e os sonhos); as correções de hardware eletroquímico (quando há depressão, sem os remédios é quase impossível mexer no software); as correções de software, quando eles estão aprisionados a uma trilha viciosa – e este é o principal trabalho da psicanálise.

Esse último se aproveita da “inteligência artificial” da máquina, sua capacidade de aprender: uma vez detectado o desvio de função, a desfuncionalidade, ela tende sozinha à reprogramação, usando um de seus softwares inatos.

E aqui entram as diferenças: a nossa máquina vem com dois poderosos programas que coordenam ativamente todos os outros: sobrevivência (evitar desprazer) e busca de prazer (desejo). Ambos são “truques” da mãe natureza, moldados pela evolução, para que o DNA possa se replicar: não se iluda, ela manda em nós!

Isso nos torna diferentes de qualquer máquina já construída (e nem vejo que tal coisa venha a ser inventada, pois os custos seriam imensos e a falta de interesse em se criar um Frankenstein ajudaria a não se investir nisso).

A psicanálise conta com a evitação de desprazer (os clientes nos procuram porque sofrem) e a busca do prazer (eles querem se sentir bem e querem achar meios de satisfazer seus desejos) para encontrar a cura, para o processo de tirar os bugs do sistema.

Em particular, ela conta com o senso de justiça (um dos desdobramentos poderosos de evitação de desprazer, pois a injustiça nos causa raiva) como principal motivação do cliente: o psicanalista se associará a ele para corrigir a injustiça histórica que o aprisiona às doenças psíquicas.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD





PSICOPATAS E O SUPEREGO - O AMIGO PERGUNTA

 



Pedro Oliveira: “Os psicopatas não têm Superego?”

Francisco Daudt: Pedro, não existe quem não o tenha. Os psicopatas, sim, o têm, e agem constantemente contra ele, transgredindo compulsivamente.

Se não o tivessem, poderiam ficar polindo maçanetas ou qualquer outra coisa... O que os psicopatas são imunes é ao sentimento de culpa e ao remorso, que são os derivados mais comuns do Superego. Eles acabam só tendo o prazer sádico da transgressão, coisa essa que funciona como vício.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD





SENTIMENTO DE CULPA = SENTIMENTO DE DÍVIDA

 


“Não sei porque eu visito minha mãe, o Alzheimer nem deixa ela perceber que eu estou lá...”

“Você não sabe, mas eu sei: para não se sentir em falta com o seu dever de filho; para não ter culpa, depois”.

A conversa com o cliente remete a “dever”, “dívida moral”, “estar em falta” e “sentir culpa”. São temas interligados, praticamente sinônimos.

Na mecânica do sentimento de culpa, há padrões morais estabelecidos pelo Superego: ou você está à altura deles (missão quase impossível, pois eles são sempre altíssimos), ou você está “em falta”, “abaixo”, “devedor”. Ou, em termos mais contemporâneos, “inadimplente”.

Como para o Superego ou você é modelo, ou é antimodelo; ou é certo, ou é errado, pois o Superego – sobretudo dos obsessivos – não admite meio termo, estar devendo a ele significa ser uma coisa muito feia, um “filho ingrato e desnaturado”, daí pra pior...

Se eu sou esse monstro e ainda por cima estou em falta, sinto... culpa.

O ditado “quem não deve não teme” não existe à toa, portanto. Sim, tememos: o credor, o banco, o processo automático da prefeitura que nos tomará a casa por inadimplência dos impostos, a Receita Federal... 

E tememos a esse credor-mor, o Superego, por todas as nossas dívidas morais. Ele usará o sentimento de culpa como pressão (e que pressão!).

O que nos deixa três alternativas: 
a) ou sabemos que nossas dívidas estão quitadas, que não somos inadimplentes em nada, nem financeira nem moralmente (solução quase utópica, no que diz respeito ao segundo quesito).

b) ou, por cansaço de nos sentirmos culpados, tocamos um foda-se e transgredimos (solução que tem problemas, pois a cobrança se mantém voltando, o que exige mais e mais tocar o foda-se).

c) ou, e esta é a minha solução preferida, examinamos e discutimos a tirania do Superego, de modo a que nossos valores éticos não estejam lá, e sim sejam nossos (do Ego), o que torna viável atendê-los.

 Quanto às dívidas de grana, quitamos as legítimas e entramos na justiça contra as outras.

Uma vez me perguntaram como seria a mais curta síntese para definir psicanálise e saúde mental. 

Respondi: “Deveu? Fodeu!”



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD




segunda-feira, 5 de abril de 2021

O SUPEREGO E O QUEIJO

 


Ele abriu com a faca seu enorme parmesão, cheio de orgulho.

O amigo olhou em silêncio por um tempo e finalmente comentou, apontando: “tem um buraco aqui!”

Nos primeiros anos da minha carreira, resolvi dar uma melhorada na sala de espera do consultório. Tirei da estante lindos cofee table art books – carentes há muito de contemplação – e os espalhei na mesinha.
Quando o cliente seguinte, um designer gráfico, entrou, fez um único comentário: “seus livros estão meio empoeirados”.

Contei-lhe então a história do buraco do queijo e ele ficou muito culpado, envergonhado de si mesmo.

Passaram-se alguns anos até que eu entendesse que não tinha feito psicanálise ali; tinha só me vingado.

Minha observação acabava sendo um reforço para o Superego do cliente. Que, se ele era fodão e crítico com os outros, sua primeira vítima era ele mesmo. 

A história poderia ter servido para eu entender como ele vinha sofrendo com seus padrões estéticos super exigentes, quase paralisantes, que o deixavam com a sensação de que tudo que produzia estava abaixo da crítica (de sua própria crítica, para começar), de que era uma fraude a ser denunciada, se o observador fosse fodão o bastante. Que sua doença obsessiva descambava para um sadomasoquismo cuja primeira – mas não única – vítima era ele mesmo.

Afinal, o que tinha feito eu, senão repetir com ele a história? Ao apontar nele o buraco do queijo?

É assim que também se aprende clínica: errando.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD