“Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra” (Lucas, 6; 27).
Mas... e o que levou ao primeiro tapa? Esta pergunta é ícone da maior censura de pensamento da atualidade. O senso comum diz que, se a pessoa se apresenta como vítima, a ela toda indenização INQUESTIONÁVEL é devida. Ela tem indulgência plenária; o simples pensar que ela pode ter erros já é visto como um insulto imperdoável.
Está certo que nossas mães sempre disseram, “Você até tinha razão, mas quando bateu no seu irmãozinho, perdeu a razão”. Qualquer violência não praticada pelo Estado (que detém o monopólio da força, para o impor o cumprimento das leis) é crime.
Está certo também que a humanidade vem buscando meios de implementar a ética e a cooperação num animal tão selvagem e predador quanto o sapiens. E que cultivar o sentimento de culpa foi um desses meios (incrível como ele prosperou na cultura judaico-cristã!).
Mas o sentimento de culpa acaba sendo injusto, pois não contempla a outra parte, a do irmãozinho irado e agressor. Não há atenuantes nem advogado de defesa para ele: a vítima tem, não apenas razão, mas toda a razão.
Será?
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Sempre me encantei com a expressão, pois ela fala da coisa e do aparelho leitor de forma caricatural. Tenho um xodó por caricaturas e sua comunicação rápida de um conceito: ali estão exagerados a complexidade da construção – ameias, seteiras, pontes levadiças, poder e glória – bem como o simplorismo do burro, incapaz de absorver as nuances e mensagens que a arquitetura contém.
Na psicanálise, é fundamental entender tanto a coisa quanto o aparelho leitor: o que leva um fóbico a ver numa barata tamanha ameaça? Por que um depressivo imagina essa catadupa de catástrofes e tem uma visão tão cruel de si? Algo alterou o aparelho leitor deles, uma lente destorcida se lhes interpôs.
Especialmente na depressão, o aparelho leitor sofre distorção de hardware. É impressionante o que fazem os antidepressivos modernos na correção da química cerebral. Depois de uma semana, o cliente passa a ver as coisas “com outros olhos”.
É a hora de a psicanálise poder trabalhar a parte software do aparelho leitor: que viés histórico transfere àquela pessoa tantas qualidades maravilhosas, quando se está apaixonado? De onde vem tanta crueldade de autoavaliação? Nos dois casos, vamos aprender sobre o Superego do cliente, aquele que distorce para melhor na idealização, e distorce para pior no julgamento.
Um olho na coisa; outro olho no olho, no aparelho leitor.
Eis porque o psicanalista tem que se olhar permanentemente: seu aparelho leitor não pode estar distorcido, para que ele possa ver bem seus clientes.
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“Você disse que o desejo sexual se desperta de maneira diferente em homens e mulheres? Como assim?”
Francisco Daudt: A testosterona é o hormônio do desejo, com uma particularidade curiosa: quanto mais testosterona, mais tesão visual.
Como os homens têm níveis altos de testosterona, seu tesão é principalmente visual. Eles valorizarão saúde e fertilidade, outros dos componentes naturais que nos levam à reprodução impensada. Truques da mãe natureza. Os sinais físicos desses atributos são boa simetria facial, juventude (ausência de flacidez e de cabelos grisalhos), distribuição de gordura (mamas e quadris cheios) e mucosas coradas (sem anemia).
Resulta que as mulheres tendem a se enfeitar com aquilo que lhes realce (ou simule) a juventude e a saúde: pintam os cabelos, as maquiagens são em tons de vermelho, fazem plásticas (silicones e eliminação de rugas), usam sutiãs (do francês “soutiens”, significa “que sustenta”, que não deixa os seios caírem).
Já nas mulheres, o desejo tem outro caminho: uma mulher detectará um homem “interessante”. Se esse homem a olhar com desejo, aí sim, o tesão por ele aparecerá.
O curioso é que esse “interessante” não segue os mesmos critérios masculinos: ele se refere a subjetividades como postura, segurança, firmeza, decisão, “solidez”.
Mas então as mulheres não têm tesão visual? Sim, 10% das mulheres têm altos níveis de testosterona; essas terão um desejo muito parecido com o masculino.
Apresentei esses conceitos numa palestra na Light, para cem mulheres e vinte homens. Algumas mulheres protestaram, que eu estava sendo machista, que elas tinham sim tesão visual.
Propus então um teste imaginário: “pensem em duas fotos. A primeira é de um garotão de uns vinte anos, muito bonito, sem roupa e contra um fundo neutro. A segunda é de um homem nos seus 40 anos, de terno Armani, têmporas grisalhas, saindo do banco de trás de uma Mercedes. Quem é o mais atraente?”
O grupo que preferiu o garotão tinha dez mulheres; o do terno Armani, 90.
“Agora os homens: a primeira foto é de uma mulher de vinte anos, muito bonita, nua contra um fundo neutro. A segunda, de uma de 40 anos, igualmente bonita, num tailleur Chanel, saindo do banco de trás de uma Mercedes”.
Houve unanimidade. Isso é a mãe natureza...
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Adrilles Jorge: “A pornografia pode ter um efeito benéfico para a saúde sexual? Em que ponto se torna vício?”
Francisco Daudt: Estabelecido que o vício é o ato compulsivo que prejudica nossos maiores interesses, posso dizer que, em 46 anos de clínica, só diagnostiquei dois casos de vício em masturbação, um deles acompanhado de maconha, o que atrapalha o diagnóstico preciso. Perdiam emprego, deterioravam sua casa e seu meio social por causa do vício, donde... era vício mesmo.
Claro, falo em masturbação porque ela é o principal objetivo da pornografia. Nunca ouvi falar de alguém viciado apenas nela, excluída sua inspiração auto-erótica.
Portanto, para se entender o valor da pornografia, é preciso avaliar a importância e a função que a masturbação tem.
A reprodução dos mamíferos está completamente atrelada à busca de prazer. O prazer sexual foi o truque que a mãe natureza arranjou para que replicássemos o DNA.
Agora vem a parte da natureza injusta: principalmente o prazer sexual masculino. A testosterona é a imperatriz do tesão; sem ela, pode esquecer.
A partir dos 12-14 anos, o menino será inundado por testosterona, se excitará por estímulos mínimos e se masturbará. Todos – sim, todos – os homens já se masturbaram e/ou se masturbam regularmente. Isso estabelece neles o circuito neuronal do orgasmo – e agora vem mais injustiça da natureza – do qual depende a continuação da espécie.
O principal estímulo para excitação/masturbação/sexo/orgasmo masculinos é visual. Através daquilo que atrai a visão de um homem, podemos desenhar a conformação de seu desejo (homo, hétero, que formas, que circunstâncias etc.).
É aí que entra a pornografia. Estive num programa do Pedro Bial discutindo com mulheres que pretendiam fazer pornografia educativa, para que o machismo grosseiro pornográfico habitual não corrompesse o comportamento deles face às mulheres.
Tive que explicar que não existe, nem existirá, pornografia educativa. Só existe pornografia que dá tesão e a que não dá tesão. Ponto.
Para a psicanálise, a pornografia é preciosa ferramenta de conhecimento do desejo. Eis porque defendo a pornografia gourmet: menos aeróbica, mais complexidade; menos homem da pizza, mais dramatização.
Isso me permite entender o que toca/excita os desejos dos clientes. Uma das principais funções da psicanálise é entender seus desejos, aqueles mais descontaminados da doença, menos invadidos pela briga dos Titãs internos, com menos Superego, com mais Ego.
Aliás, nem preciso defender essa complexidade da pornografia: a mão invisível do mercado (sem intenções humorísticas) dá conta disso. Com o barateamento digital das produções, o cardápio pornográfico na internet é imenso, permite uma seleção de pratos principais tal, que o cliente já chega sabendo bem o que lhe apetece.
Então, sim, a pornografia tem um papel muito interessante na saúde sexual. E podemos definir saúde sexual como aquela que se conquista fora da guerra da neurose, dos vícios e das perversões. Aquela com que a pessoa se sente em paz.
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2010, domingo de Páscoa. D. Lygia, aos 95 anos, comandou mais uma vez a casa para o “almocinho” que iria receber seus 7 filhos, genros e noras, 20 netos e mais de 30 bisnetos.
Ovinhos escondidos pelo jardim, mesas postas, travessas servidas na sala de jantar, ela fez sua aparição. Acenei-lhe de longe, mas já via muito pouco e não percebeu.
Atendo o telefone às 3h da madrugada: “O pulso dela está em 40, e nós chamamos a ambulância”. Em cinco minutos, eu estava lá. Os enfermeiros já desciam a escada com ela desconfortável na maca, tentando tirar o cateter de oxigênio.
“Pode voltar agora e levá-la para a cama, que ela quer morrer em casa!”, disse eu, sem deixar espaço para discussão. O médico que acompanhava a ambulância me apertou a mão num assentimento silencioso, como a dizer, “se fosse minha mãe, eu faria a mesma coisa”.
Já deitada, ela começou o que seria seu último diálogo:
“Ah,que bom que estou de volta ao meu cantinho. (Pausa). Mas afinal, Chico, qual é a minha doença?”
“É coração fraco, mãe.”
“Humm... E as crianças? Acharam os ovinhos?”
“Acharam todos, mãe”.
“Ah, bom...”
E morreu. Morreu como quis: em casa e com sua missão cumprida.
Eu também cumpri a minha: único médico na família, tinha perguntado aos pais, na frente dos irmãos, se iriam querer medidas heroicas, UTI, ressuscitação etc. Disseram que não, e que esperavam de mim a proteção de tais horrores. Assim foi feito.
Hoje reconheço que tive sorte: a pressão do senso comum para a medicalização da morte não deixa ninguém mais morrer em paz. Não se conversa sobre morte, como outrora. Não se comunicam os últimos desejos, como meus pais o fizeram e o bilhete dela para mim é testemunha.
A imensa tristeza das mortes por Covid é agravada por esse distanciamento dos entes queridos. Mas suas internações fazem sentido: a esperança de cura.
Faz-me lembrar do ensinamento de meu mestre Dr. Fernando Alvariz: “Daudt, uma coisa é parada cardíaca, outra é morte. Quando não há perspectivas, o nome é um só: morte. Deixe eles morrerem em paz”.
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Um dos muitos motivos atuais de tristeza, lidar com o luto entrou no dia a dia do meu trabalho de consultório.
Não estou falando só do luto dos amores desfeitos, ou das ilusões e esperanças perdidas, que esses nunca cessam de aparecer, mas do luto pelos mortos da Covid, que tem como agravante a distância do ente querido, seja na doença, seja na morte.
A ausência do rito fúnebre, do velório, do ver o corpo no caixão, aumenta o período de aceitação da perda, a irrealidade da nova condição, o inconformismo.
Outro agravante é o sentimento de culpa, a suspeita sobre quem poderia ter trazido o vírus para casa, os “e se...” que atormentam a imaginação e tiram a preciosa noção de que tudo o que estava ao nosso alcance foi feito para proteger/salvar a pessoa que morreu. A ideia de haver um culpado entre os próximos é uma tortura.
Sim, o luto não é uma doença, faz parte da vida, ele termina numa herança de belas lembranças da vida partilhada.
Mas as circunstâncias adversas podem adoecer o processo. Não é fácil lidar com o luto patológico...
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“A psicanálise usa o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica?”
Francisco Daudt: Não deveria jamais.
No entanto, houve um tempo (entre 1950 e 1980) em que o pensamento psicanalítico foi dominado pela culpa. Melanie Klein (1882-1960) era a referência teórica de então, e defendia que as pessoas “aceitassem a castração” (significa “se submetessem ao Superego”), reconhecessem que seus sintomas vinham de “projetarem seus ódios nos pais” (que não teriam feito nada de errado, claro) e adotassem uma “posição depressiva reparadora” (assumissem a culpa de ter sintomas, se arrependessem e se penitenciassem por isso).
Meu primeiro psicanalista era dessa linha e apesar de eu só ter 21 anos na época, detectei o sotaque religioso – não se é ex-aluno dos jesuítas impunemente – de sua “quase não fala” e lhe disse: “Ah, sim, compreendi o que a psicanálise quer. É a mesma coisa que a Igreja Católica quer de mim: que eu reconheça os meus sintomas, me arrependa deles e prometa nunca mais tê-los”.
Claro, ele ficou mudo, como de hábito.
O sentimento de culpa talvez seja a ferramenta de domínio/censura/controle de pensamento mais sofisticada que a humanidade inventou.
Ela consiste numa crença em modelos de perfeição e antimodelos desprezíveis. Você deveria ser alguém de uma virtude inatingível, caso contrário será um monstro condenado ao desterro e ao opróbio.
Claro, essa crença fica escondida em nosso juiz interno, o Superego, pronto a nos criticar e condenar por cada... pensamento, palavra, obra e omissão. Isso te soa familiar? Sim, era assim que se pecava, no ideário católico. Era assim que se ia para o inferno, caso não houvesse confissão, arrependimento e penitência.
O pior do sentimento de culpa é que ele se relaciona a valores meritórios, a causas respeitáveis, às quais você poderia aderir por gosto, mas... uma vez coagido pela culpa, você acabava com raiva desses valores e indo contra eles. Faça um alcoólatra se sentir culpado porque bebe e ele correrá para a garrafa dizendo “ ah é? Então dane-se, vou beber”, nem sempre dessa maneira educada.
É que a culpa – resultado de um julgamento sumário sem direito a defesa – acaba sendo uma injustiça em si. A culpa causa raiva... e vontade de pecar outra vez, como vingança. Bem, isso mantinha o emprego dos padres, já que eles detinham o poder da absolvição.
Pense em “me desculpa”. No quão frequente é o uso do verbo “desculpar” em nosso dia a dia. Isso dá a medida de como a crença na culpa está em nosso inconsciente. A alternativa de dizer “foi erro meu, sinto muito” nem é considerada.
Pense agora no politicamente correto. Ele defende belos valores: a tolerância, o acolhimento de diferenças, a cooperação entre as pessoas.
Mas, se a cada pensamento, eu temo estar pecando, sendo homofóbico, racista, machista, fascista etc. (a lista de antimodelos da correção política é interminável), eu acabo com raiva desses valores, jogo fora o bebê junto com a água do banho... e elejo o Trump (ou coisa pior).
Portanto, não, a psicanálise não pode usar o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica, pois ele adoece a pessoa em vez de curá-la. Usá-lo é aderir ao juiz tirânico, é reforçar o Superego.
É curioso – e lindo – mas a psicanálise precisa cultivar a democracia na mente, aderir a ela como um valor universal. A psicanálise não pode usar instrumentos da tirania e do controle de pensamento... tais como o sentimento de culpa.
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