“Sempre ouvi dizer que o psicanalista deve ser neutro, para que o cliente projete nele suas realidades psíquicas. Você acha isso também?”
Francisco Daudt: Não. Primeiramente, porque não existe neutralidade e sim “encenação de neutralidade”, e se há uma coisa que um psicanalista deve evitar é ser fake.
Em segundo lugar, porque a psicanálise precisa deixar claro o que deseja: saúde, verdade, conhecimento do desejo e do Superego do cliente, para que ele não fique prisioneiro de sua guerra interna, seja independente e autônomo para conduzir sua vida.
Em terceiro, porque o psicanalista precisa se posicionar como prestador de serviços de saúde mental para seu cliente, e não como um ser misterioso e superior – retrato do Superego – de quem o cliente tem medo.
Em quarto, porque esse negócio de “se projetar sobre a tela em branco de um psicanalista neutro”, como método de conhecer o inconsciente, é conversa fiada: a investigação que se dá por confiança funciona muito mais. O psicanalista não está ali para vencer o paciente, mas para convencer de que ele é seu aliado na busca da saúde e da cura.
Lembrando: Freud abandonou a hipnose também porque ela era uma imposição de poder. A psicanálise não pode estar “Acima de mim” (Superego), ela precisa estar do meu lado.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
A psicanálise é uma teoria da mente: como ela funciona, como ela adoece, como se torna saudável.
A psicanálise também é um tratamento, uma psicoterapia que usa seus conhecimentos para buscar a cura das doenças psíquicas.
Como decorrência dessas definições, a psicanálise tem uma face filosófica.
“Filosofia” significa “amor à sabedoria”. A humanidade vem há milênios usando seus conhecimentos sobre si mesma para alcançar uma sabedoria, uma arte de viver bem.
É isso que distingue “conhecimento” de “filosofia”: sua aplicação virtuosa em nossa vida. Claro, há outras filosofias, como a da ciência e a da lógica, mas todas as sabedorias se voltam para o bem, o belo, o pacífico, o justo. Não há “sabedorias do mal”.
Como a psicanálise entendeu que as doenças psíquicas se originam de injustiças históricas, que se repetem em nossa vida porque somos atraídos inconscientemente para repetí-las (como uma refeição mal digerida que nos fica voltando à boca), ela usará de sua sabedoria para a busca de justiça em fóruns complementares:
1. A justiça na criação dos filhos: significa contemplar suas singularidades, atender suas necessidades e apoiar suas capacidades.
2. A justiça dentro de nossas cabeças: compreender a luta interna entre os desejos malvistos que moram no Id (inconsciente) e as leis tirânicas que moram no Superego (nosso juiz interno). Mediar essas forças, trazer luz ao drama que se repete, para que o Ego (o Eu da pessoa) possa ter espaço para viver bem.
3. A justiça na sociedade: ao entender que a fonte das doenças é a guerra interna da tirania/rebeldia/repressão/mais tirania, perceber que isso se estende ao tecido social. Ou seja, a democracia é mais justa, tanto para dentro quanto para fora.
Essa é a face filosófica da psicanálise.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Marcio Fagundes: “Precisamos do Superego para sermos corretos?”
FD: Obrigado pela pergunta; essa é uma questão central na prática/teoria da psicanálise.
Este é um tema em que toda a sua compreensão da complexidade precisa estar presente. Vou falar bem e vou falar mal do Superego; ambas as coisas valerão. Cada pequeno parágrafo será válido, não invalidará nem o anterior, nem o próximo.
O Superego se parece com o carcereiro de um cão furioso/libidinoso/exagerado: solte o cão, e você verá as consequências...
Mas sua presença, e a existência de uma prisão, mantêm o cão em estado de fúria. Ou seja, o emprego do carcereiro não é só conter o cão; é também manter a má fama do cão. E sua fúria! Assim, o carcereiro mantém assim seu emprego e sua importância.
Que tal se nos aproximássemos aos poucos e examinássemos o cão (e o carcereiro) sem todas as cargas de preconceito sobre eles? Que tal conhecer o cão? Que tal conhecer o carcereiro?
Que tal conhecer a pessoa que carrega e mantém – com muito medo – cão e carcereiro como intocáveis, mas sabendo que o peso desse fardo lhe verga as costas e atrasa imensamente sua vida?
Eis o dilema do psicanalista: ele escolherá o reforço do sistema da carceiragem? Ou ele preferirá ser o laborioso investigador da política repressora que a doença de seu cliente contém?
Infelizmente, a história da psicanálise está cheia de reforçadores do sistema da carceiragem. Há muitos teóricos da psicanálise que foram apoiadores do Superego. Há poucos investigadores. Mesmo que Freud, seu inventor, tenha apostado completamente na investigação.
É compreensível: apoiar o Superego é mais simples. Dá respostas rápidas. Dá conselhos – mesmo que esses venham disfarçados de silêncios e de mistérios, os “conselhos que se envergonham de assim ser”. Investigar exige mais que isso...
O que nos leva à questão inicial: qual a relação da ética com o Superego? Pode haver ética sem ele? Pode haver desejo de ética?
(Prossegue em “O Superego e o desejo de ética – 2”).
“A felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
John Stuart Mill
Definindo ética como “um acordo de não causar dano injustificado” (legítima defesa é, como diz o nome, justificada, p.e.), abre-se um leque de possibilidades de como absorvê-la, como implantá-la em nós.
Vai desde o temor das leis e da força do Estado que as impõe, até achá-la bacana e querer tê-la como virtude cultivada: o desejo de ética. O desejo de contribuir positivamente vai além: é a ética ativa.
Mas como nosso assunto é psicanálise, vamos nos focar no que se passa dentro de nossas cabeças: natureza humana, desejos egoístas e predadores, cooperação, consciência moral, sentimento de culpa, medo do desamparo, do banimento social, medo físico. Conflitos íntimos, guerra interna, dilemas existenciais.
Coisas que acontecem no cenário que Freud desenhou:
.no Id (“Algo em mim”: as forças inconscientes herdadas, os dramas históricos esquecidos de nossa criação);
.no Superego (“O que está acima de mim”: nosso juiz interno, acusador que usa nossos medos para que cumpramos suas leis; junto com ideais de perfeição inatingíveis que sempre nos olham como faltosos, em eterna cobrança).
.no Ego (o “Eu” que sentimos ser, que tenta mediar o embate dos dois Titãs anteriores e que, como o marisco, sofre entre o mar e o rochedo).
Se houver guerra interna, se o reprimido no Id for se transformando no cão furioso, vai-se precisar de um carcereiro com grandes poderes de ameaça: o Superego. Mas isso implica não haver espaço para o Eu, eu não poderei desejar de maneira ética, bela, virtuosa. Só haverá soluços de transgressões, resultando em medo e culpa depois.
Mas, assim como a filosofia nasceu da paz, do tempo de refletir, conversar, cultivar o espírito, a mesma coisa pode nos acontecer. Em duas situações: souberam nos criar bem (algo totalmente excepcional, pois criar filhos é o trabalho mais difícil que existe, e os pais, portanto, esbanjam incompetência no assunto).
A segunda situação é a melhor possibilidade da psicanálise: ela ter o papel de pacificadora, entendendo a guerra, os interesses das duas partes em conflito, a serviço do nosso Eu. Seu melhor instrumento é promover a justiça histórica.
Acalmado o cão, o carcereiro pode ter uma digna aposentadoria. O cultivo da felicidade pedirá à sabedoria de John Stuart Mill sua bússola para o desejo de ética: “a felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
Compare agora isso com o Imperativo Categórico de Kant, o lema da ética de Superego: “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.
Ou seja, só faça aquilo que possa ser feito por todos os humanos, caso contrário, você estará sendo antiético.
Compreende quando eu digo que o Superego impõe ideais inatingíveis?
O Ego aqui prefere o John...
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
“A felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
John Stuart Mill
Definindo ética como “um acordo de não causar dano injustificado” (legítima defesa é, como diz o nome, justificada, p.e.), abre-se um leque de possibilidades de como absorvê-la, como implantá-la em nós.
Vai desde o temor das leis e da força do Estado que as impõe, até achá-la bacana e querer tê-la como virtude cultivada: o desejo de ética. O desejo de contribuir positivamente vai além: é a ética ativa.
Mas como nosso assunto é psicanálise, vamos nos focar no que se passa dentro de nossas cabeças: natureza humana, desejos egoístas e predadores, cooperação, consciência moral, sentimento de culpa, medo do desamparo, do banimento social, medo físico. Conflitos íntimos, guerra interna, dilemas existenciais.
Coisas que acontecem no cenário que Freud desenhou:
.no Id (“Algo em mim”: as forças inconscientes herdadas, os dramas históricos esquecidos de nossa criação);
.no Superego (“O que está acima de mim”: nosso juiz interno, acusador que usa nossos medos para que cumpramos suas leis; junto com ideais de perfeição inatingíveis que sempre nos olham como faltosos, em eterna cobrança).
.no Ego (o “Eu” que sentimos ser, que tenta mediar o embate dos dois Titãs anteriores e que, como o marisco, sofre entre o mar e o rochedo).
Se houver guerra interna, se o reprimido no Id for se transformando no cão furioso, vai-se precisar de um carcereiro com grandes poderes de ameaça: o Superego. Mas isso implica não haver espaço para o Eu, eu não poderei desejar de maneira ética, bela, virtuosa. Só haverá soluços de transgressões, resultando em medo e culpa depois.
Mas, assim como a filosofia nasceu da paz, do tempo de refletir, conversar, cultivar o espírito, a mesma coisa pode nos acontecer. Em duas situações: souberam nos criar bem (algo totalmente excepcional, pois criar filhos é o trabalho mais difícil que existe, e os pais, portanto, esbanjam incompetência no assunto).
A segunda situação é a melhor possibilidade da psicanálise: ela ter o papel de pacificadora, entendendo a guerra, os interesses das duas partes em conflito, a serviço do nosso Eu. Seu melhor instrumento é promover a justiça histórica.
Acalmado o cão, o carcereiro pode ter uma digna aposentadoria. O cultivo da felicidade pedirá à sabedoria de John Stuart Mill sua bússola para o desejo de ética: “a felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
Compare agora isso com o Imperativo Categórico de Kant, o lema da ética de Superego: “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.
Ou seja, só faça aquilo que possa ser feito por todos os humanos, caso contrário, você estará sendo antiético.
Compreende quando eu digo que o Superego impõe ideais inatingíveis?
O Ego aqui prefere o John...
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Marcio Fagundes: “Precisamos do Superego para sermos corretos?”
FD: Obrigado pela pergunta; essa é uma questão central na prática/teoria da psicanálise.
Este é um tema em que toda a sua compreensão da complexidade precisa estar presente. Vou falar bem e vou falar mal do Superego; ambas as coisas valerão. Cada pequeno parágrafo será válido, não invalidará nem o anterior, nem o próximo.
O Superego se parece com o carcereiro de um cão furioso/libidinoso/exagerado: solte o cão, e você verá as consequências...
Mas sua presença, e a existência de uma prisão, mantêm o cão em estado de fúria. Ou seja, o emprego do carcereiro não é só conter o cão; é também manter a má fama do cão. E sua fúria! Assim, o carcereiro mantém assim seu emprego e sua importância.
Que tal se nos aproximássemos aos poucos e examinássemos o cão (e o carcereiro) sem todas as cargas de preconceito sobre eles? Que tal conhecer o cão? Que tal conhecer o carcereiro?
Que tal conhecer a pessoa que carrega e mantém – com muito medo – cão e carcereiro como intocáveis, mas sabendo que o peso desse fardo lhe verga as costas e atrasa imensamente sua vida?
Eis o dilema do psicanalista: ele escolherá o reforço do sistema da carceiragem? Ou ele preferirá ser o laborioso investigador da política repressora que a doença de seu cliente contém?
Infelizmente, a história da psicanálise está cheia de reforçadores do sistema da carceiragem. Há muitos teóricos da psicanálise que foram apoiadores do Superego. Há poucos investigadores. Mesmo que Freud, seu inventor, tenha apostado completamente na investigação.
É compreensível: apoiar o Superego é mais simples. Dá respostas rápidas. Dá conselhos – mesmo que esses venham disfarçados de silêncios e de mistérios, os “conselhos que se envergonham de assim ser”. Investigar exige mais que isso...
O que nos leva à questão inicial: qual a relação da ética com o Superego? Pode haver ética sem ele? Pode haver desejo de ética?
(Prossegue em “O Superego e o desejo de ética – 2”).
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
“Qual é a primeira orientação que você daria para um estudante de psicanálise?”
Francisco Daudt: Não tire os outros por si mesmo; eles são diferentes.
O que não significa deixar de usar símiles para se pôr na pele deles, para treinar empatia. Se você estiver atendendo um matador de velhinhas, procure um dentro de você. Eu sei que vai encontrar...
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
A psicanálise nasceu com complexo de inferioridade. Freud era um neurologista na Viena do século XIX. Eles se consideravam deuses da ciência.
Quando Freud inventou a psicanálise, quis que ela tivesse um status semelhante ao da ciência que fazia. Apresentou-a a seus pares e eles a rejeitaram como maluquice.
Diante disso, Freud mandou seus pares às favas (mas o ressentimento ficou) e tornou-se independente na sua pesquisa. Grande passo!
Alguns colegas seus se juntaram a ele, deslumbrados com sua invenção. A partir daí, dois movimentos aconteceram: a pesquisa psicanalítica em si e a tentativa de dar a ela um lugar respeitável na ciência (e como ciência).
Até hoje tenho ambivalências diante do passo seguinte dado por Freud: constituir uma instituição para zelar pela psicanálise. Se por um lado vejo o benefício da criação de um espaço para diálogo teórico com gente interessada, por outro vejo o custo que a luta de poder institucional e a busca de status social decorrente impuseram à psicanálise.
Só médicos eram admitidos (mais um sinal de insegurança), até que Theodor Reik, psicólogo, causasse uma virada de jogo, ao ter sua admissão defendida por Freud (“A questão da análise leiga”, 1926).
Entre as sortes que dei na vida, uma foi a de ser “descendente direto” dessa linha de formação: Freud formou Karl Abraham, que formou Theodor Reik, que formou Angel Garma, que formou meu psicanalista formador.
É por isso que minha origem é freudiana, mesmo em tempos de Melanie Klein e de Lacan. O que eu fiz com essa origem, bem, imitei Freud e me tornei independente.
Mas a insegurança dos psicanalistas continuava (continuava?). Até hoje há quem ache que a psicanálise é algo “acima da psicologia”, que não faz parte dela, mesmo “psicologia” significando “estudo da mente”.
A monumentalização de irrelevâncias e adereços, como a do o célebre divã, é sintoma desse confeito, desse glacê que foi se tornando mais importante que o bolo.
Estive num debate de psicanalistas falando disso, e um colega de Portugal contou que, em sua sociedade regional, foi apresentada uma tese defendendo extensamente o ângulo de 45º para a poltrona do analista, em relação ao divã.
Não é à toa que o atendimento on-line causou tanta “comoção” no meio societário...
Outras decorrências desse delírio de status versus o aprimoramento teórico/epistemológico da psicanálise foram a criação de jargões incompreensíveis, verdadeiras viagens na maionese, para dar a impressão de que a psicanálise tratava de coisas “inefáveis e muito além da compreensão dos simples mortais”. Como o Chacrinha, a psicanálise não teria vindo para explicar, mas para confundir.
A minha defesa de transparência e clareza a se abordar o estudo da mente tem o objetivo de cuidar do bolo de boa qualidade, não de seu confeito vistoso. Se a psicanálise quiser se aproximar do conhecimento verdadeiro, precisa ser humilde. Precisa importar da ciência o “dar a cara a tapa”, o estar vulnerável a que lhe apontem os erros.
Mais uma vez: quanto mais metida a pessoa, mais insegura ela é.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD