quinta-feira, 11 de março de 2021

ENTREGA




“Entregou sua alma ao Criador, para o descanso eterno”...

Raramente vi uma série de eufemismos tão enganosa... e tão sedutora. Quem “entregou”? O falecido? E por acaso ele tinha escolha? Sua alma? Ora, faça-me o favor... Ao Criador? Para um descanso que ele vai usufruir? Eternamente?

Mas é altamente sedutora, pois supõe um ato amoroso de vontade de se entregar ao Pai, que o recebe e protege para sempre, livrando-o dos cansaços da vida.

O prazer da entrega é uma encrenca para a maioria das pessoas, principalmente para os homens. Os alarmes homofóbicos tocam alto, quando se fala dele. “Vou me entregar aos braços de Morfeu? Que história é essa? Eu sou é macho, cara!” Calma, eu só queria dizer que você está indo dormir...

“João Valentão é brigão... a todos João intimida
Mas tem seus momentos na vida
É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo, pra noite chegar;
É quando o cansaço da lida da vida obriga João descansar”

A linda canção de entrega, de Dorival Caymmi, fala desse dilema dos homens (e não só deles): criados para a atividade, têm medo da passividade, da entrega. Quantas crianças e adultos brigam contra o sono até caírem desmaiadas, por nocaute? Quantos precisam da ajuda do álcool, ou de um comprimido, para aceitarem esse momento?

No entanto, assim como não existe sono sem entrega, também não existe o orgasmo sem ela. Seja masculino ou feminino, o orgasmo é um momento de entrega total. Um homem pode até ejacular, mas sem abrir mão da obsessão de controle que domina sua vida, não gozará do prazer que o clímax pode dar.

A entrega de que falo não é um ato cego, impulsivo ou insensato: ela conversa com a lucidez e avalia riscos, através da confiança. Esse permanente medidor interno, uma espécie de “confiômetro” que temos, pode ser conscientemente cultivado para nos dizer quando e com quem nos permitir momentos de deixar fluir, de soltar as rédeas, suspender as censuras, de estar à vontade.

O psicanalista precisa ter a experiência desse sentir-se à vontade, do confiar seus pensamentos sem barreiras na prática da associação livre de ideias. Ele já foi cliente, e sabe o quanto confiou (ou desconfiou) em seu analista. Ele avalia o nível de entrega que pôde ter. Ele sabe que há uma correlação direta entre a intimidade mais secreta que confiou e o bom êxito da psicanálise que experimentou.

É preciso lembrar que a psicanálise se diferenciou da hipnose justamente pela lucidez da entrega: enquanto o hipnotizador dizia “Você está sob meu poder!”, e impunha que o cliente se entregasse através da dominação, o psicanalista precisa abdicar da posição de “Acima, superior ao paciente” (Superego = Acima de mim), para ser um prestador de serviço, advogado de defesa, estar a seu lado, trabalhando junto (colaborando, cooperativo), deliberadamente voltado à construção da saúde e do bem-estar de seu cliente.

A confiança será a base da entrega.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 


 

TENTANDO EXPLICAR A COMPLEXIDADE



“Depois de muitos estudos, concluí que o elefante é um conjunto de quatro grossas palmeiras, cravadas no chão”, disse o primeiro palestrante do Congresso de Cegos.

“Discordo!”, disse o segundo, “a minha observação mostra que ele é uma grande mangueira, com dois furos na ponta”.

“Nada disso, ele é um muro com uma corda pendurada, que termina em um chumaço de pelos!”, disse o terceiro.

Desde então, o elefante se tornou meu ícone da complexidade. Como explicar ao cliente que o aspecto por mim apontado não anula o outro, mesmo sendo o oposto dele? Como dizer que ele pode amar e também não gostar de um filho que urra sem parar durante a noite? Como fazê-lo ver que sua sexualidade não é uma coisa só? Como evocar Mário de Andrade, e lembrar-lhe “você é trezentos”?

O senso comum induz a um pensamento automático que não é estéreo, é mono; não é policromático, é preto ou branco. Ele te encosta na parede com a falácia do “reductio ad absurdum”: “Ah, você quer entender as razões do estuprador? Então você é a favor do feminicídio, né?” Ele cria censura do pensamento, pudores ideológicos, medo da incorreção política.

Ele emburrece por simplorismo. São duas coisas que a psicanálise não pode ser: nem burra, nem simplória.

Minha metáfora favorita para falar da complexidade sempre foi a análise vetorial: sobre o mesmo ponto, várias forças (os vetores) são aplicadas. Elas têm intensidade, direção e sentidos diferentes. Ainda por cima, mudam constantemente. Desse conjunto surgirá uma resultante que move o ponto.

“Você é uma boa pessoa. Mas não está imune à raiva. Quando ela aparece, você fica horrorizado. Por isso, move-se na direção contrária, e se torna super bonzinho. Como resultado, as pessoas abusam da sua bondade. Isso te dá mais raiva. Mais raiva, mais perturbação. É dessa misturada de forças atuando sobre você que vem seu sintoma de pensamentos raivosos invasivos...”

Mas a análise vetorial requer uma lembrança que seja das aulas de física, o que não é comum. Passei então a usar um rio e seus afluentes, para falar dos componentes alimentadores da complexidade. Ah, tem até a pororoca, como vetor contrário.

Enfim, falar da complexidade é complexo, um pleonasmo redundante; entendê-la é um plus a mais, adicional...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

 

sábado, 6 de março de 2021

TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO. 2


Em resposta ao Ricardo Rangel
TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO. 2

Quase um ano depois, volto ao assunto. Desta vez, por uma provocação do Ricardo Rangel, que escreveu sobre o impulso de morte que dominaria o capitão.

Como o impulso de morte é uma das hipóteses freudianas mais enigmáticas, e das que mais me intrigaram, acrescento aqui o que já pensei sobre ela e como ele se aplica, a meu ver, ao capitão.

Diferentemente do que acontece em outras espécies, a morte é um assunto para a nossa. Sabemos que ela nos espera, inescapável como os impostos. Isso produziu em nós um complexo de inferioridade básico: vivemos tentando negá-la, “superá-la”, racionalizá-la. Pirâmides, religiões, cruzadas, “legados”, a “imortalidade” da Academia, enormes feitos foram engendrados para nos afirmar maiores do que ela.
Infelizmente, não são apenas as belas construções que a negam. Estas são resultado de inteligência e de perseverança: se não a evitam, podem melhorar a vida, trazendo-lhe beleza.

Não. Um meio mais simplório de afirmar-se maior é o reverso de construir: a destruição. Desde o imbecil que se acha fodão porque pixou a cúpula da Candelária e se tornou um “herói” na tribo de seus pares, até as diversas formas de assassinato: gangues, guerras, suicídio (a afirmação máxima de controlar a morte, ainda que ele vá da eutanásia ao mais lamentável de todos, o suicídio de vingança), o fuzilamento dos inimigos, o linchamento, e em termos mais atuais, o cancelamento.

Pode-se dizer então que, quanto mais primitiva e tosca a mente, mais simplória será a solução de se afirmar não-merda, de se dizer maior: aniquilar o adversário. 

A democracia é uma construção complexa e permanente. A tirania sempre foi o governo mais simplório e primitivo. Convencer é complexo; vencer é simplório. Divergir no debate é complexo; prender/matar o divergente é simplório.

O grande lamento de Nelson Rodrigues (“os imbecis dominarão o mundo; não pela qualidade, mas pela quantidade: eles são muitos”) era pela forte suspeita de que a democracia possa ter sido um ponto fora da curva, um acidente na história da humanidade.

Agora reviso nas entrelinhas a postagem de abril de 2020:

Ruth de Aquino, em artigo, defendeu que ele é psicopata, e não louco. Creio que ela acerta um pouco, mas erra muito, principalmente por simplificação. 

A meu ver, a encrenca do capitão é uma soma, uma mistura de:
a) burrice tosca complexada, desses que se percebem burros e negam isso de forma agressiva, em permanente atitude de defesa, por se sentirem sob permanente ataque/crítica.

b)  um atroz e invejoso ressentimento da inteligência e da cultura alheias, ao ponto de ver a razão e a ciência como inimigas, e crer que sua opinião prevalece sobre fatos.

c) perversão sadomasoquista semelhante à do Trump, do tipo fodão-merda, que precisa de constante afirmação/adulação para combater sua insegurança, precisa de uma tribo de seguidores fanáticos para se apoiar, precisa compulsivamente de apontar os outros como merdas para se sentir fodão (com a diferença de que Trump não é burro, é principalmente fodão-merda); 

(Nota: já dá para perceber que o único projeto de governo do capitão é se reeleger. Ele vê que não sabe governar e não governa, só ocupa seu tempo em campanha, brigando e tentando virar ditador.)

d) sim, algum grau de psicopatia, mas não elevado. Um bom psicopata não se sente ameaçado como ele se sente, basta vê-lo no pronunciamento público ao despedir o Mandetta. Ele parecia vidrado, meio atemorizado mesmo; de jeito nenhum estava frio como um psicopata estaria.

(Nota: outros sinais de medo são o destempero histérico, a coprolalia e o sumiço diante da prisão do Queiroz.)

O capitão parece acreditar nas besteiras/inverdades que diz, diferentemente de Trump ou Lula. Ele parece crer que seu passado de atleta o imuniza contra a Covid etc. Isso faz com que ele soe realmente sincero e autêntico, como seus seguidores dizem. 

Já Trump e Lula mentem com gosto, com o gozo de quem sabe que está fazendo os outros de idiotas. Isso sim, é coisa de sociopata/psicopata.

Enfim, me esforço por entender a complexidade desse fenômeno da democracia representativa, pois que ele realmente representa um significativo percentual da população, daqueles que sempre se sentiram ressentidos e humilhados pela suposta superioridade intelectual das esquerdas (o “politicamente correto” foi fator de irritação anti-esquerdas na eleição dele e na de Trump) e veem no capitão sua revanche.




 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



 

“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?” - O AMIGO PERGUNTA

 


ORIENTAÇÃO SEXUAL

“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?”

Francisco Daudt: A psicanálise terapêutica só tem como objeto de investigação aquilo que for problemático para o cliente, o que representar parte de seus sintomas.

Portanto, só tem cabimento investigar orientação sexual se ela é uma questão, um assunto do cliente. A maior parte deles já chega com esse tema resolvido, querendo ver outros. É claro que o desejo da pessoa é um dos principais objetos de investigação, mas será para além da questão homo/hétero, será para um desenho mais detalhado da complexidade de seu desejo.
Mas há aqueles que trazem esse tipo de incômodo: um clássico sintoma obsessivo é a dúvida “será que, no fundo, eu sou um gay enrustido?”

Aí sim, a investigação se impõe. O que, para homens, não é difícil. A pergunta-chave é: para onde seus olhos são atraídos, que corpos chamam a sua atenção animada?

“Ah, para as mulheres, mas... volta e meia me pego dando uma olhada para o pau dos caras, é como se fosse um imã, e morro de vergonha”.

Nessas horas, a pornografia e a masturbação ajudam muito: “Que tipo de pornografia te excita? Você se detém em nudes de homem ou de mulher?”

O sintoma da dúvida obsessiva gay/hétero fala de quão comum é não haver uma orientação do tipo zero da escala Kinsey (hétero sem nenhum interesse homo, esses héteros que não têm nada de homofóbicos).

Mas um obsessivo é, digamos, obcecado com pureza: ou tudo, ou nada. Frequentemente, eles são héteros com algum mínimo interesse/curiosidade homoerótica, mas quem disse que aceitam isso facilmente? Vira uma questão.

PS: É muito difícil haver esse tipo de sintoma em mulheres, elas transitam com facilidade pelos vários tipos de interesse sexual.

Isso só é drama para os homens... 



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“Como são formados os sonhos?” - O AMIGO PERGUNTA

 


A MARAVILHA DOS SONHOS

“Como são formados os sonhos?”

Francisco Daudt: Os sonhos dão um vislumbre da interação entre nossos softwares e hardware. Começando pelo fato de que não há observação direta dos sonhos, só do relato que fazemos deles, já vemos seu ponto central: a memória.

Acordamos e nos lembramos de ter sonhado. É uma memória fugidia, se o sonho não foi intenso, se formos fazer qualquer coisa ao acordar, a possibilidade de esquecermos do sonho é grande.

Mas, ao olharmos para o sonho, é espantoso pensar que cada cena, cada detalhe, cada emoção ali contidos saíram de nossos arquivos de memória. Alguns deles,não visitados há décadas. Cenários de nossa infância, pessoas que já morreram, faces compostas de várias outras. Tudo arquivo de nossa memória, tudo gravado e adormecido em algum lugar de nosso cérebro.

Quem já se embriagou ou já esteve chapado de maconha tem uma experiência vívida de como a memória (não) se forma: “De ontem? Não me lembro de nada...” ; “Antes de terminar a frase, já não me lembrava mais do que estava falando”.

Não houve esquecimento, nem num caso, nem no outro: a memória simplesmente não se formou. Seu processo bioeletroquímico de construção foi inibido pela presença do tóxico.

Todas as memórias de uma vida inteira estão lá, codificadas como gravações no nosso HD. Elas serão acionadas por estímulos atuais. Por exemplo: o que você almoçou ontem? Qual o nome da sua mãe? As memórias que lhe vieram estavam num pré-consciente; minhas perguntas fizeram sua atenção ir buscá-las lá.

A mesma coisa acontece com a formação dos sonhos. Nas vésperas de sonhar, algo nos tocou. Esse “tocou” não é simples. Tocou nosso desejo frustrado, como a criança que foi dormir sem sobremesa e sonha que come o doce. Ou toca nosso desejo conflituoso, como o tesão pela cunhada brigando com a culpa de pensar tal pecado. Ou nosso desejo de vingança, e sonhamos algo muito violento.

Freud comparou a formação dos sonhos como a produção de um filme: tudo começa com o DESEJO de alguém (diretor, autor), a motivação para filmar uma história.

Esse desejo precisa ser forte o bastante para mobilizar um capital que financie a produção: o assunto tem que nos ser relevante. A partir daí, reúnem-se roteiristas, cenógrafos, direção, todos usando material de nossa memória para produzir o produto final: o sonho.

É curioso, há um desejo que pode surgir enquanto estamos dormindo, e que influencia na mudança do roteiro do “filme”: o desejo de continuar dormindo. Mesmo quando uma urgência de ir ao banheiro aparece. Logo o “diretor” insere umas cenas da pessoa indo ao banheiro, procurando o banheiro, fazendo um pouquinho de xixi... e continuando a dormir. Tudo com arquivos de sua memória, buscados às pressas para atender à nova demanda.

Essa é a maravilha dos sonhos...

A MARAVILHA DOS SONHOS 2

Francisco Daudt: Há um aspecto fascinante dos sonhos que chama especialmente a atenção: o sensório revivido. Estar num sonho é ver (e às vezes ouvir) como se estivéssemos acordados. Ver e ouvir o que não está do lado de fora, algo que vem dos arquivos de memória. Como se fossem alucinações.

Para entender como isso acontece, recorro a uma experiência psicodélica dos anos 70: a câmara de privação dos sentidos.

Punha-se a pessoa dentro de um compartimento fechado, confortavelmente mergulhada até o pescoço em água salgada morna, onde havia completo silêncio e escuridão.

Depois de algum tempo, a pessoa começava a alucinar: viajava em visões, ouvia sons. Às vezes era agradável, às vezes, bad trip...

A questão é que replicamos todas as noites uma câmara de privação de sentidos: ao deitar, diminuímos a necessidade de controlar o equilíbrio e os estímulos táteis da vigília. Apagamos as luzes, isolamos os ruídos (o ar condicionado produz “ruído branco”, estímulo brando e constante que simula um silêncio mais confortável que o silêncio absoluto), buscamos conforto térmico com o ar, coberta etc.

Com isso, cortamos os estímulos ao que Freud chamou de “polo sensório”, um captador mental pelos sentidos daquilo que se passa no mundo exterior. Isso permite um contrafluxo: o polo sensório começa a ser tocado por dentro, com nossos arquivos de memória... e sonhamos/alucinamos dormindo.

Essa é a maravilha dos sonhos...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD






“O que é o sinistro, em psicanálise?” - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que é o sinistro, em psicanálise?”

Francisco Daudt: É bom dar uma olhada no original em alemão, e nas diversas traduções: “Das unheimlich” (literalmente, “o que não é do lar”; ou “o não familiar”, “o estranho”); em espanhol, “el siniestro”; em inglês, “the uncanny”. Também tem sido traduzido como “o inquietante”.

Freud o descreveu como um estado momentâneo de embaralhamento mental – e terror – a partir da percepção de algo que... não se encaixa, mas ao mesmo tempo tem alguma coisa reconhecível, mas não... Enfim, algo que te deixa por um momento doido e aterrorizado.

Em princípio, não é um dado relevante a ser investigado em análise, mas pode trazer associações livres interessantes. Cabe ao cliente decidir o que quer fazer com o seu episódio de sinistro.

Minha melhor história de consultório é de um cliente que viu “algo no chão”: “Era um pequeno monstro que se movia, um animal horroroso, mas não reconheci de pronto qual. Se movia de forma esquisita, não corria, não voava, seus membros pontiagudos se abriam e fechavam sem sentido. Era peludo, tinha focinho, orelhas pontudas, um pequeno demônio. Fiquei paralisado de terror”.

Era um morcego no chão.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



domingo, 28 de fevereiro de 2021

MÃE NATUREZA (do 1 ao 5)

 


“Você poderia dar alguns exemplos de como a psicologia evolucionista influencia o seu trabalho de psicanalista?”

Francisco Daudt: Nesses tempos politicamente corretos, discutir nossa natureza é algo delicado. Vende-se muito a ideia de que tudo possa ser corrigido pela criação dos filhos e pelas políticas públicas, de que tudo é uma questão cultural.

Por isso, parto de algumas premissas que, se aceitas, a conversa pode continuar. Tomemos a mais importante delas:
Mulheres engravidam; homens não. Isto é fato da natureza, não é cultural.

Aceita essa premissa, podemos conversar sobre o fato natural que mais faz diferença em nossas vidas. Ele é cheio de consequências:

1. As mulheres sempre sabem que seus filhos são realmente seus; os homens sempre terão uma margem de dúvida.

Sim, atualmente o teste de DNA pode resolver essa questão, mas considere o ponto crítico de desentendimento a que se precisa chegar antes que ele seja pedido, e quanto tempo de suspeitas e amarguras antecede esse momento.

2. As mulheres tenderão a se preocupar sobre sua reputação sexual, se são confiáveis ou não neste quesito (“Sim, o filho é mesmo seu!”).

3. Os homens podem engravidar e fugir; as mulheres estarão presas à cria, de nove meses a trinta anos ou mais.

4. As mulheres precisarão de mais ajuda, como decorrência, que os homens, pois ninguém cria filhos sozinho.

5. As mulheres tenderão a querer mais compromissos afetivos de longo prazo do que os homens.

6. Haverá negociações difíceis para que isso aconteça. Em termos grosseiros, uma guerra dos sexos que, numa caricatura, se descreve em uma frase: para ter sexo, os homens prometem casamento; para ter casamento, as mulheres prometem sexo.

Aí está a ponta do iceberg da presença da mãe natureza, injusta e desigual, em nossas vidas. O assunto aqui apenas esboçado. Há outros 90% submersos...


O ciúme masculino é principalmente sexual; o ciúme feminino é principalmente de prestígio. O homem teme criar filho dos outros; a mulher teme que seu homem invista em outros interesses que não ela – veja bem, não é nem “em outras mulheres”.

A fertilidade feminina tem prazo de validade; a masculina não. Decorre que as mulheres se preocupam mais com a perda da juventude que os homens.

Fertilidade e atratividade sexual estão ligadas. Não existe nenhuma cultura no mundo em que mulheres pós-menopausa sejam símbolos sexuais; Sean Connery foi eleito o homem mais sexy do mundo aos 80 anos.

A sobrevivência da humanidade depende do orgasmo masculino. Decorre que não há homem que não tenha experimentado orgasmo. O mesmo não se dá entre as mulheres.


O medo de cobras nasce conosco por herança genética há milhares de anos; o automóvel é o lugar mais perigoso em que entramos, mas apenas há 120 anos.

Quantas pessoas você conheceu que morreram em desastre de automóvel?

Quantas pessoas você conheceu que morreram picadas de cobra?

Continuamos com pavor de cobras. Ninguém tem medo de automóvel.

Dados: A maioria dos falecimentos por picada de cobra no Brasil acontecem com pessoas com 50 anos ou mais. Dos 844 casos ocorridos entre 2010 e 2018, 493 são desse grupo. Isso representa 58,4% do total.

São 100 pessoas POR ANO.

Durante 2019, 31.307 pessoas morreram por acidentes de trânsito e estimativas mostram que em 2020 o número não será muito diferente.

São 313 vezes mais.



Nascemos com uma programação de medos e repugnâncias que se liga aos dois anos e não se desliga mais.

Medos de escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos voadores, grandes felinos... e o mais cotidiano deles, de desamparo.

Repugnância a fezes e a carne podre. Repugnância a podre é especialmente curiosa: uma pessoa pode nunca ter tido a experiência de sentir cheiro de carne podre, e vomitar automaticamente ao senti-lo pela primeira vez.

Esses medos e repugnâncias servem à nossa sobrevivência. Mas será sobre esse programa inato que o nosso Superego será construído. Ele vai absorver informações que o meio produz, para nos deixar alertas ao tipo de comportamento que pode nos por em risco.

O risco mais óbvio é o de desamparo: “se eu fizer isso, não vão mais gostar de mim”. Muitos pais ameaçam seus filhos com essa frase, inclusive. A ameaça absorvida vira vergonha e sentimento de culpa, agora despertados pela acusação desse “juiz interno” que é o Superego.

Mas as fobias nos lembram dos outros medos de raiz assumidos pelo Superego. O medo de voar de avião, assim como o de elevador, falam do confinamento e da altura. Há variadas fobias envolvendo répteis (lagartixas, p.e.), insetos e outros artrópodes (baratas, cigarras e aranhas), e até de felinos (gatos).

Finalmente, as obsessões por limpeza, medo dos germes e os nojos variados, se ligam às repugnâncias primitivas.

É o horror às “imundices”.


Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?

Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?

Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”

E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.

Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.

Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...

A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.

Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.

Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.

Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.

Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.

Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD