“Entregou sua alma ao Criador, para o descanso eterno”...
Raramente vi uma série de eufemismos tão enganosa... e tão sedutora. Quem “entregou”? O falecido? E por acaso ele tinha escolha? Sua alma? Ora, faça-me o favor... Ao Criador? Para um descanso que ele vai usufruir? Eternamente?
Mas é altamente sedutora, pois supõe um ato amoroso de vontade de se entregar ao Pai, que o recebe e protege para sempre, livrando-o dos cansaços da vida.
O prazer da entrega é uma encrenca para a maioria das pessoas, principalmente para os homens. Os alarmes homofóbicos tocam alto, quando se fala dele. “Vou me entregar aos braços de Morfeu? Que história é essa? Eu sou é macho, cara!” Calma, eu só queria dizer que você está indo dormir...
“João Valentão é brigão... a todos João intimida
Mas tem seus momentos na vida
É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo, pra noite chegar;
É quando o cansaço da lida da vida obriga João descansar”
A linda canção de entrega, de Dorival Caymmi, fala desse dilema dos homens (e não só deles): criados para a atividade, têm medo da passividade, da entrega. Quantas crianças e adultos brigam contra o sono até caírem desmaiadas, por nocaute? Quantos precisam da ajuda do álcool, ou de um comprimido, para aceitarem esse momento?
No entanto, assim como não existe sono sem entrega, também não existe o orgasmo sem ela. Seja masculino ou feminino, o orgasmo é um momento de entrega total. Um homem pode até ejacular, mas sem abrir mão da obsessão de controle que domina sua vida, não gozará do prazer que o clímax pode dar.
A entrega de que falo não é um ato cego, impulsivo ou insensato: ela conversa com a lucidez e avalia riscos, através da confiança. Esse permanente medidor interno, uma espécie de “confiômetro” que temos, pode ser conscientemente cultivado para nos dizer quando e com quem nos permitir momentos de deixar fluir, de soltar as rédeas, suspender as censuras, de estar à vontade.
O psicanalista precisa ter a experiência desse sentir-se à vontade, do confiar seus pensamentos sem barreiras na prática da associação livre de ideias. Ele já foi cliente, e sabe o quanto confiou (ou desconfiou) em seu analista. Ele avalia o nível de entrega que pôde ter. Ele sabe que há uma correlação direta entre a intimidade mais secreta que confiou e o bom êxito da psicanálise que experimentou.
É preciso lembrar que a psicanálise se diferenciou da hipnose justamente pela lucidez da entrega: enquanto o hipnotizador dizia “Você está sob meu poder!”, e impunha que o cliente se entregasse através da dominação, o psicanalista precisa abdicar da posição de “Acima, superior ao paciente” (Superego = Acima de mim), para ser um prestador de serviço, advogado de defesa, estar a seu lado, trabalhando junto (colaborando, cooperativo), deliberadamente voltado à construção da saúde e do bem-estar de seu cliente.
A confiança será a base da entrega.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Disponível em: https://7letras.com.br/livro/a-criacao-original/