sábado, 6 de março de 2021

“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?” - O AMIGO PERGUNTA

 


ORIENTAÇÃO SEXUAL

“Você investiga a orientação sexual do cliente? Como?”

Francisco Daudt: A psicanálise terapêutica só tem como objeto de investigação aquilo que for problemático para o cliente, o que representar parte de seus sintomas.

Portanto, só tem cabimento investigar orientação sexual se ela é uma questão, um assunto do cliente. A maior parte deles já chega com esse tema resolvido, querendo ver outros. É claro que o desejo da pessoa é um dos principais objetos de investigação, mas será para além da questão homo/hétero, será para um desenho mais detalhado da complexidade de seu desejo.
Mas há aqueles que trazem esse tipo de incômodo: um clássico sintoma obsessivo é a dúvida “será que, no fundo, eu sou um gay enrustido?”

Aí sim, a investigação se impõe. O que, para homens, não é difícil. A pergunta-chave é: para onde seus olhos são atraídos, que corpos chamam a sua atenção animada?

“Ah, para as mulheres, mas... volta e meia me pego dando uma olhada para o pau dos caras, é como se fosse um imã, e morro de vergonha”.

Nessas horas, a pornografia e a masturbação ajudam muito: “Que tipo de pornografia te excita? Você se detém em nudes de homem ou de mulher?”

O sintoma da dúvida obsessiva gay/hétero fala de quão comum é não haver uma orientação do tipo zero da escala Kinsey (hétero sem nenhum interesse homo, esses héteros que não têm nada de homofóbicos).

Mas um obsessivo é, digamos, obcecado com pureza: ou tudo, ou nada. Frequentemente, eles são héteros com algum mínimo interesse/curiosidade homoerótica, mas quem disse que aceitam isso facilmente? Vira uma questão.

PS: É muito difícil haver esse tipo de sintoma em mulheres, elas transitam com facilidade pelos vários tipos de interesse sexual.

Isso só é drama para os homens... 



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



“Como são formados os sonhos?” - O AMIGO PERGUNTA

 


A MARAVILHA DOS SONHOS

“Como são formados os sonhos?”

Francisco Daudt: Os sonhos dão um vislumbre da interação entre nossos softwares e hardware. Começando pelo fato de que não há observação direta dos sonhos, só do relato que fazemos deles, já vemos seu ponto central: a memória.

Acordamos e nos lembramos de ter sonhado. É uma memória fugidia, se o sonho não foi intenso, se formos fazer qualquer coisa ao acordar, a possibilidade de esquecermos do sonho é grande.

Mas, ao olharmos para o sonho, é espantoso pensar que cada cena, cada detalhe, cada emoção ali contidos saíram de nossos arquivos de memória. Alguns deles,não visitados há décadas. Cenários de nossa infância, pessoas que já morreram, faces compostas de várias outras. Tudo arquivo de nossa memória, tudo gravado e adormecido em algum lugar de nosso cérebro.

Quem já se embriagou ou já esteve chapado de maconha tem uma experiência vívida de como a memória (não) se forma: “De ontem? Não me lembro de nada...” ; “Antes de terminar a frase, já não me lembrava mais do que estava falando”.

Não houve esquecimento, nem num caso, nem no outro: a memória simplesmente não se formou. Seu processo bioeletroquímico de construção foi inibido pela presença do tóxico.

Todas as memórias de uma vida inteira estão lá, codificadas como gravações no nosso HD. Elas serão acionadas por estímulos atuais. Por exemplo: o que você almoçou ontem? Qual o nome da sua mãe? As memórias que lhe vieram estavam num pré-consciente; minhas perguntas fizeram sua atenção ir buscá-las lá.

A mesma coisa acontece com a formação dos sonhos. Nas vésperas de sonhar, algo nos tocou. Esse “tocou” não é simples. Tocou nosso desejo frustrado, como a criança que foi dormir sem sobremesa e sonha que come o doce. Ou toca nosso desejo conflituoso, como o tesão pela cunhada brigando com a culpa de pensar tal pecado. Ou nosso desejo de vingança, e sonhamos algo muito violento.

Freud comparou a formação dos sonhos como a produção de um filme: tudo começa com o DESEJO de alguém (diretor, autor), a motivação para filmar uma história.

Esse desejo precisa ser forte o bastante para mobilizar um capital que financie a produção: o assunto tem que nos ser relevante. A partir daí, reúnem-se roteiristas, cenógrafos, direção, todos usando material de nossa memória para produzir o produto final: o sonho.

É curioso, há um desejo que pode surgir enquanto estamos dormindo, e que influencia na mudança do roteiro do “filme”: o desejo de continuar dormindo. Mesmo quando uma urgência de ir ao banheiro aparece. Logo o “diretor” insere umas cenas da pessoa indo ao banheiro, procurando o banheiro, fazendo um pouquinho de xixi... e continuando a dormir. Tudo com arquivos de sua memória, buscados às pressas para atender à nova demanda.

Essa é a maravilha dos sonhos...

A MARAVILHA DOS SONHOS 2

Francisco Daudt: Há um aspecto fascinante dos sonhos que chama especialmente a atenção: o sensório revivido. Estar num sonho é ver (e às vezes ouvir) como se estivéssemos acordados. Ver e ouvir o que não está do lado de fora, algo que vem dos arquivos de memória. Como se fossem alucinações.

Para entender como isso acontece, recorro a uma experiência psicodélica dos anos 70: a câmara de privação dos sentidos.

Punha-se a pessoa dentro de um compartimento fechado, confortavelmente mergulhada até o pescoço em água salgada morna, onde havia completo silêncio e escuridão.

Depois de algum tempo, a pessoa começava a alucinar: viajava em visões, ouvia sons. Às vezes era agradável, às vezes, bad trip...

A questão é que replicamos todas as noites uma câmara de privação de sentidos: ao deitar, diminuímos a necessidade de controlar o equilíbrio e os estímulos táteis da vigília. Apagamos as luzes, isolamos os ruídos (o ar condicionado produz “ruído branco”, estímulo brando e constante que simula um silêncio mais confortável que o silêncio absoluto), buscamos conforto térmico com o ar, coberta etc.

Com isso, cortamos os estímulos ao que Freud chamou de “polo sensório”, um captador mental pelos sentidos daquilo que se passa no mundo exterior. Isso permite um contrafluxo: o polo sensório começa a ser tocado por dentro, com nossos arquivos de memória... e sonhamos/alucinamos dormindo.

Essa é a maravilha dos sonhos...



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD






“O que é o sinistro, em psicanálise?” - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que é o sinistro, em psicanálise?”

Francisco Daudt: É bom dar uma olhada no original em alemão, e nas diversas traduções: “Das unheimlich” (literalmente, “o que não é do lar”; ou “o não familiar”, “o estranho”); em espanhol, “el siniestro”; em inglês, “the uncanny”. Também tem sido traduzido como “o inquietante”.

Freud o descreveu como um estado momentâneo de embaralhamento mental – e terror – a partir da percepção de algo que... não se encaixa, mas ao mesmo tempo tem alguma coisa reconhecível, mas não... Enfim, algo que te deixa por um momento doido e aterrorizado.

Em princípio, não é um dado relevante a ser investigado em análise, mas pode trazer associações livres interessantes. Cabe ao cliente decidir o que quer fazer com o seu episódio de sinistro.

Minha melhor história de consultório é de um cliente que viu “algo no chão”: “Era um pequeno monstro que se movia, um animal horroroso, mas não reconheci de pronto qual. Se movia de forma esquisita, não corria, não voava, seus membros pontiagudos se abriam e fechavam sem sentido. Era peludo, tinha focinho, orelhas pontudas, um pequeno demônio. Fiquei paralisado de terror”.

Era um morcego no chão.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



domingo, 28 de fevereiro de 2021

MÃE NATUREZA (do 1 ao 5)

 


“Você poderia dar alguns exemplos de como a psicologia evolucionista influencia o seu trabalho de psicanalista?”

Francisco Daudt: Nesses tempos politicamente corretos, discutir nossa natureza é algo delicado. Vende-se muito a ideia de que tudo possa ser corrigido pela criação dos filhos e pelas políticas públicas, de que tudo é uma questão cultural.

Por isso, parto de algumas premissas que, se aceitas, a conversa pode continuar. Tomemos a mais importante delas:
Mulheres engravidam; homens não. Isto é fato da natureza, não é cultural.

Aceita essa premissa, podemos conversar sobre o fato natural que mais faz diferença em nossas vidas. Ele é cheio de consequências:

1. As mulheres sempre sabem que seus filhos são realmente seus; os homens sempre terão uma margem de dúvida.

Sim, atualmente o teste de DNA pode resolver essa questão, mas considere o ponto crítico de desentendimento a que se precisa chegar antes que ele seja pedido, e quanto tempo de suspeitas e amarguras antecede esse momento.

2. As mulheres tenderão a se preocupar sobre sua reputação sexual, se são confiáveis ou não neste quesito (“Sim, o filho é mesmo seu!”).

3. Os homens podem engravidar e fugir; as mulheres estarão presas à cria, de nove meses a trinta anos ou mais.

4. As mulheres precisarão de mais ajuda, como decorrência, que os homens, pois ninguém cria filhos sozinho.

5. As mulheres tenderão a querer mais compromissos afetivos de longo prazo do que os homens.

6. Haverá negociações difíceis para que isso aconteça. Em termos grosseiros, uma guerra dos sexos que, numa caricatura, se descreve em uma frase: para ter sexo, os homens prometem casamento; para ter casamento, as mulheres prometem sexo.

Aí está a ponta do iceberg da presença da mãe natureza, injusta e desigual, em nossas vidas. O assunto aqui apenas esboçado. Há outros 90% submersos...


O ciúme masculino é principalmente sexual; o ciúme feminino é principalmente de prestígio. O homem teme criar filho dos outros; a mulher teme que seu homem invista em outros interesses que não ela – veja bem, não é nem “em outras mulheres”.

A fertilidade feminina tem prazo de validade; a masculina não. Decorre que as mulheres se preocupam mais com a perda da juventude que os homens.

Fertilidade e atratividade sexual estão ligadas. Não existe nenhuma cultura no mundo em que mulheres pós-menopausa sejam símbolos sexuais; Sean Connery foi eleito o homem mais sexy do mundo aos 80 anos.

A sobrevivência da humanidade depende do orgasmo masculino. Decorre que não há homem que não tenha experimentado orgasmo. O mesmo não se dá entre as mulheres.


O medo de cobras nasce conosco por herança genética há milhares de anos; o automóvel é o lugar mais perigoso em que entramos, mas apenas há 120 anos.

Quantas pessoas você conheceu que morreram em desastre de automóvel?

Quantas pessoas você conheceu que morreram picadas de cobra?

Continuamos com pavor de cobras. Ninguém tem medo de automóvel.

Dados: A maioria dos falecimentos por picada de cobra no Brasil acontecem com pessoas com 50 anos ou mais. Dos 844 casos ocorridos entre 2010 e 2018, 493 são desse grupo. Isso representa 58,4% do total.

São 100 pessoas POR ANO.

Durante 2019, 31.307 pessoas morreram por acidentes de trânsito e estimativas mostram que em 2020 o número não será muito diferente.

São 313 vezes mais.



Nascemos com uma programação de medos e repugnâncias que se liga aos dois anos e não se desliga mais.

Medos de escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos voadores, grandes felinos... e o mais cotidiano deles, de desamparo.

Repugnância a fezes e a carne podre. Repugnância a podre é especialmente curiosa: uma pessoa pode nunca ter tido a experiência de sentir cheiro de carne podre, e vomitar automaticamente ao senti-lo pela primeira vez.

Esses medos e repugnâncias servem à nossa sobrevivência. Mas será sobre esse programa inato que o nosso Superego será construído. Ele vai absorver informações que o meio produz, para nos deixar alertas ao tipo de comportamento que pode nos por em risco.

O risco mais óbvio é o de desamparo: “se eu fizer isso, não vão mais gostar de mim”. Muitos pais ameaçam seus filhos com essa frase, inclusive. A ameaça absorvida vira vergonha e sentimento de culpa, agora despertados pela acusação desse “juiz interno” que é o Superego.

Mas as fobias nos lembram dos outros medos de raiz assumidos pelo Superego. O medo de voar de avião, assim como o de elevador, falam do confinamento e da altura. Há variadas fobias envolvendo répteis (lagartixas, p.e.), insetos e outros artrópodes (baratas, cigarras e aranhas), e até de felinos (gatos).

Finalmente, as obsessões por limpeza, medo dos germes e os nojos variados, se ligam às repugnâncias primitivas.

É o horror às “imundices”.


Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?

Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?

Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”

E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.

Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.

Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...

A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.

Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.

Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.

Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.

Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.

Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD

O AMIGO PERGUNTA - A “BONZINHICE”

 



“O que é formação reativa, em psicanálise?”

Francisco Daudt: É uma atitude que se constrói, se forma (formação) em reação (reativa) a algo que a pessoa considera muito feio, errado, mau. É um mecanismo de defesa contra a angústia de ser mal julgada: “Olha, eu sou o contrário dessa coisa feia, viu?”

É um movimento meio deliberado, meio inconsciente. Começa na infância, em geral, mas pode ser tardio.

A “bonzinhice” é típico exemplo de formação reativa. Primeiramente, por seu caráter exagerado: bondade é uma coisa, bonzinhice é outra. Aquela doce criança, supercomportada, que nunca dá trabalho, tão boazinha, já está sofrendo de formação reativa.

Mas reativa a quê? Reativa à maldade que vem da raiva. A raiva é talvez o sentimento mais difícil de se administrar. Apesar de ela ser a reação natural às injustiças, é extraordinariamente complicado para uma criança ter rebeldia às injustiças que vêm dos adultos. Como apresentar de maneira serena seus pleitos de justiça?

Outro dia contei que minha primeira lembrança da vida foi de raiva/ciúmes. Você imagina o pirralho de três anos que eu era chegando para minha mãe e dizendo “Estou sendo ameaçado de abandono porque você vai ter um bebê novo, coisa que não seria justa. Isso é verdade?”

Impossível. O que fiz eu (sem decidir nada, claro)? Fiquei bonzinho, não dei trabalho, amei minha irmãzinha nova, tudo na vã esperança de ser amado...

Desenvolvi uma formação reativa contra a raiva, a “bonzinhice”.

Outros exemplos de formação reativa: a macheza exagerada (por temor de viadagem); os pudores e nojinhos exagerados (por temor da própria sexualidade); as demonstrações exageradas das próprias virtudes (por desejo de superioridade moral e temor de incorreção política).

Enfim, todas as vezes em que você notar que está exagerando em alguma atitude, pode se investigar sobre uma formação reativa em andamento...


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


O ELOGIO DO MIMO



Se você é mimado, tem um problema pela frente.

Eu sei que as gerações “floco de neve” são tão mimadas que, em inglês, não se diz mais “spoiled” (estragado); o termo novo é “entitled” (que se sente no direito a).

Mas o problema não está no mimo, está na voz passiva. “Eu sou mimado” significa que há sempre alguém me dando comidinha na boca. Significa que “eu sou um incapacitado”, pois a função de mãe (exercida por não importa quem) excessiva me trata como um idiota que não sabe fazer nada por si, como se eu fosse um bebezão que ainda não saiu do berço, nem ir ao banheiro sozinho eu sei.

Mas se eu sou independente e autônomo, tenho meios para terceirizar coisas chatas e compro tempo livre para mim, a conversa é outra: EU me mimo!

Ora, grande parte da felicidade está em conhecer seus desejos e implementar meios para que eles sejam atendidos. Se faço isso, eu me mimo, eu me trato muito bem.

Só preciso ter cuidado com a inveja dos outros...


 

NATUREZA HUMANA 5 - O ELOGIO DA IGNORÂNCIA ASSUMIDA

 


Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?

Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?

Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”

E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.

Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.

Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...

A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.

Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.

Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.

Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.

Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.

Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD