domingo, 14 de fevereiro de 2021

A PSICANÁLISE E AS CIRCUNSTÂNCIAS

 



“Eu sou eu e a minha circunstância, e se não salvo a ela, não salvo a mim”.
(Ortega y Gasset, 1883-1955, Espanha)

A psicanálise investiga o Eu, o Superego e o desejo inconsciente, sim. Mas ninguém fala das circunstâncias, e elas fazem toda a diferença. Para o Eu, para o Superego e para o desejo inconsciente.

Ortega y Gasset tem toda a razão: é preciso salvar a circunstância para salvar o paciente.

A circunstância é o que o cerca, é onde ele está imerso. A circunstância é a pandemia, mas é também a sogra, a dívida, o emprego/desemprego, a dor lombar, os amigos, o próximo, o distante, o senso comum, o estresse, o vício, a treta, a oportunidade, os meios e a motivação.

A circunstância pode ser imutável, e essa o estoicismo, mesmo que não dê conta dela, ajuda a suportar.
Mas pode ser mutável para melhor: essa sim, é assunto da psicanálise.

Quando o diagnóstico da doença é feito, com ele vem a consciência dos gatilhos que a despertam, dos traumas que a causaram, das trilhas que a ela levam, das frustrações que a mantêm.

Todos esses podem ser circunstâncias mutáveis, à espera da intervenção possível... e desejável.
Intervenções que salvam o Eu.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


A ARMADILHA DO PRAZER

“A galinha é a máquina inventada pelo ovo para fazer um outro ovo”.O prazer é o truque inventado pelo DNA para que façamos outro DNA. A busca do prazer - e a evitação do desprazer - pautam nossa vida desde o berço. São eles que nos manterão vivos e que acabarão por nos dar filhos, queiramos ou não (é tão mais fácil esquecer a camisinha ou a pílula...).Nós não somos programados para a paternidade/maternidade, somos sim programados para buscar prazer: a obesidade mórbida e o sexo virtual nos espreitam...
 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


“O que dizer sobre o instinto materno e o relógio biológico?” - O AMIGO PERGUNTA

 


O AMIGO PERGUNTA 
Zoraya Therezinha Silva: “O que dizer sobre o instinto materno e o relógio biológico?”

Francisco Daudt: Há uma preciosa observação recente sobre essa conversa entre natureza e cultura (nature/nurture): a influência do feminismo nas decisões sobre maternidade. 

Com o número crescente de mulheres que mandam na própria vida, cresceu também o número daquelas que decidiram não ter filhos, ou deixar isso para o mais tarde possível.

Acompanhei algumas, no consultório; outras, nas relações pessoais e pela mídia, pois é assunto que me desperta a curiosidade. Elas relatam ter sofrido muita pressão de amigas e parentes para que engravidassem, para abandonar uma decisão que incomodava as outras. Umas poucas – muito poucas – congelaram óvulos, para o caso de mudarem de ideia. 

De modo que minha impressão geral é de que, quando a ideia de realização pessoal de uma mulher é formar família (ou quando isso é o senso comum de seu meio), o tal “instinto materno” impera e o relógio biológico causa grande ansiedade.

Mas se a mulher muda de cabeça (e, por consequência, de meio), esse “instinto” passa para um segundo ou terceiro plano.


 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD


domingo, 7 de fevereiro de 2021

AGRAVANTES E ATENUANTES DA IMBECILIDADE



“Minha questão aqui é que a ninguém a imbecilidade é alheia, não há quem esteja imune a ela”.

"Os imbecis perderam a modéstia"; "Os idiotas vão dominar o mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos."

As famosas frases de Nelson Rodrigues constatam uma triste realidade da espécie. Não à toa o primeiro-ministro britânico Winston Churchill disse que a democracia era o pior dos regimes (com exceção de todos os outros).

Queixar-se da imbecilidade humana, porém, é como queixar-se da chuva: é um dado da natureza e não há nada a fazer, exceto proteger-se dela.

Minha questão aqui é que a ninguém a imbecilidade é alheia, não há quem esteja imune a ela; todo Einstein tem seu momento de Eremildo, o personagem idiota do Elio Gaspari. O que quero comentar são os fatores que agravam a imbecilidade, e os que a atenuam, para que todos nós possamos lidar melhor com ela.

Você pensará que lidar melhor com ela visa apenas atenuá-la, mas não; eu acredito que há muita gente mal-intencionada querendo aumentá-la. Se não, como explicar o descalabro da educação pública?

Afinal, a educação é o pilar da busca da igualdade de oportunidades; é o que transformou a Coreia do Sul em potência econômica em poucas décadas. Em nossa terra, todavia, é entregue às baratas.

Deve haver muito político temendo um povo esclarecido, preferindo pobres mendigando por uma bolsa-esmola a troco de votos.

A chave psicológica do aumento/diminuição da imbecilidade está na capacidade humana de reflexão/reação. Se somos induzidos à reatividade, nossa burrice aumenta. Se temos espaço para a reflexão, cresce nossa inteligência.

É verdade que nossa espécie não teve muito estímulo para a reflexão em suas origens: imagine um ancestral nosso na savana africana vendo um bando de amigos em correria. Se ele parasse para refletir sobre o pânico público, provavelmente teria sido devorado por um predador, não deixando descendentes.

A reatividade de sair correndo junto aos amigos salvou sua vida. A filosofia teve mais chance de existir quando o grego clássico pôde tranquilamente conversar e refletir com seus pares na Ágora.

Eis que nesse cenário acima está o que determina a reatividade e o que possibilita a reflexão: sentir-se ou não ameaçado; precisar ou não se defender. De fato, todos os mecanismos de defesa psíquicos são emburrecedores.

Tomemos apenas a negação como exemplo: todos nós estamos fadados a morrer. A morte e os impostos são as duas únicas certezas da vida. Agora considere a quantidade de energia que a humanidade investe na negação da morte.

Considere o aluguel mental que isso traz, todas as derivações dessa negação (Galileu e a rejeição ao heliocentrismo, por exemplo), e você terá uma pálida ideia da influência emburrecedora dos mecanismos de defesa.

Para um exemplo mais recente, considere os nossos debates políticos. Há espaço para reflexão neles? Todos se ocupam de atacar o oponente por meio dos piores adjetivos, pois sabemos que a melhor defesa é o ataque. Claro, todos estão sob a ameaça dos rótulos horríveis que cada parte lhes lança. Assim, só fazem reagir. É a imbecilidade desfilando em toda sua glória.

Algo em âmbito mais próximo? Pense nas DRs (discussões de relação). A ameaça de rompimento, de desamparo, de perda de amor está tão presente que a reatividade defensiva impera, é por isso que não se vai muito longe nelas Se elas começassem com uma declaração apaziguadora (eu te amo e quero me entender bem com você), as chances de reflexão seriam maiores.

Todas as doenças psíquicas neuroses, psicoses, perversões, depressão, psicopatia derivam de estarmos aprisionados a mecanismos de defesa contra as ameaças do mundo (i.e., do superego), e sabemos como elas nos reduzem a capacidade de raciocinar.

Eis porque adoro a conversa calma e amigável; o ambiente que acolhe e não acusa; a amizade que não pressupõe malícia da outra parte; a autoridade do saber, e não a de mando; a democracia parlamentar, e não a tirania.

“Como obsessivos veem a ambivalência?” - O AMIGO PERGUNTA



Francisco Daudt: Não veem. O problema é esse. Um obsessivo tem particular dificuldade para aceitar a ambivalência, principalmente em si, secundariamente nos outros. 

Para o obsessivo, vale o poema de Cecília Meireles: “ou isso, ou aquilo”. Nunca os dois. Jamais um obsessivo dirá “eu gosto de fulano, mas também às vezes quero matá-lo”. Ou ele gosta, ou ele não gosta. O não gostar será visto como impureza do gostar.

A obsessividade é um traço genético que faz a criança ver sua raiva das pessoas importantes (pai e mãe, p.e.) como uma séria ameaça de retaliação/desamparo, e isso detona nela um processo de buscar pureza de sentimentos. A raiva precisa ser banida como se fosse uma imundice.

Eis o que leva os obsessivos a funcionarem sobre os eixos do controle e da pureza (sendo que o controle serve à pureza). Acertam os quadros na parede porque são puros, e aquele “desvio” os incomoda. São bons e arrumados porque não abrigam impurezas de sentimentos. Se consideram intimamente uma fraude porque sabem que o 100% puro é inatingível. Estão em permanente questionamento da intenção de seus atos porque buscam a eliminação do ruído, da impureza.

Por isso é tão difícil fazer com que o obsessivo aceite a ambivalência: sim, você gosta e não gosta, em tempos diferentes, e os dois sentimentos valem, ambos valem, “ambi + valência”.

CANCELAMENTO

 


Matéria do 2º caderno do Globo de hoje me fez entender melhor o que é o tal cancelamento de que tanto se fala.

Ele é o mesmo que os muito antigos “justiçamento” e “linchamento”: ações extralegais violentas de correção de costumes/punição de crimes. 

Eles atendem vários desejos humanos primitivos: proeminência social por superioridade moral; ganhar importância pelo meio fácil da destruição; identidade tribal/grupal; sentir-se do “lado certo/justo”, além de um último e sinistro, o de ser ativo da morte.

A nossa espécie é a única que tem consciência de que vai morrer, isto acaba por fazer do assassinato (e seus congêneres, como o suicídio, o genocídio, a guerra e outros “cídios”) uma permanente tentação. Algo semelhante ao instinto de morte que Freud descreveu. 

Por rebeldia contra nossa passividade frente à morte, nós desejamos ter controle sobre ela, mesmo que sendo a morte dos outros.

Mas o linchamento é muito trabalhoso. O cancelamento, não: ele está ao alcance dos dedos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O AMIGO PERGUNTA - “Narcisismo é uma doença?”

 


Francisco Daudt: Depende do grau. Interesse pela própria imagem todos temos, zelar pelos próprios interesses, todos zelamos, é da espécie. Pense em São Francisco, o mais altruísta dos homens, e lá está ele dizendo em sua oração que “é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado”.

Ou seja, a empatia – a capacidade de se pôr na pele do outro – também nos serve; ela nos faz “amáveis”, merecedores de amor. Quando somos atentos ao outro, interessados por ele, temos a esperança de retribuição. Isto é a troca justa, o receber equivalente ao dar (ou equilibrado com ele).

Sim, mas existe uma fronteira a partir da qual nós percebemos que o narcisismo de alguém se torna um peso... para os outros. É curioso, nunca vi ninguém se queixar de que “sofre de narcisismo”. 

Havia uma anedota do narcisista que, depois de falar horas sobre si, disse: “Ah, cansei de falar de mim, fala você agora um pouco... sobre mim”. Ou da mulher que, diante da morte súbita do marido, saiu pela casa gritando, “Ele não tinha o direito de fazer isso COMIGO!”

Mesmo que a pessoa não “sofra” de narcisismo, um narcisista tem tamanha preocupação com a própria imagem, que é impossível não suspeitar de sua autoestima. Se ele precisar cuidar tanto de como aparece na foto, é porque teme muito não sair bem.

Pense no ex-presidente Trump. Dificilmente iremos encontrar exemplo mais caricatural de narcisista. Assistimos a quatro anos de ininterrupta torrente de autoelogios, de afirmações de superioridade, de realidade paralela até, para a negação de qualquer defeito ou limitação. 

Quando se soube que o pai lhe dissera na infância “Não aceito perdedores, viu!” (“losers”: fracassados, merdas), tivemos aí o vislumbre de sua insegurança e constante necessidade de pavoneio. 

Ou seja, não acredite que o narcisista se ache o máximo; ele guarda em segredo uma perturbadora suspeita sobre seu valor.

Essa é a diferença entre autoestima e vaidade/soberba: a autoestima é serena; a vaidade/soberba é inquieta, agitada, intranquila, em permanente busca de reafirmação.

O narcisismo mais comum é resultado de a pessoa lidar com tumultos internos tais, que a percepção do outro se torna completamente secundária. Não sobra espaço. Ele se desenvolve então como mecanismo de defesa contra a angústia causadas por suas fragilidades envergonhadas.

E pode se tornar um vício comportamental, um sadomasoquismo (mais ou menos) sutil, a que dei o nome de jogo fodão/merda.

Mas tenho visto narcisismo herdado: a pessoa já tem, desde criança, o jeitão de um de seus pais, excessivamente voltada para si mesma, meio incapaz de considerar o outro. Não é por maldade, é que o outro não lhe passa pela cabeça.

Quando os dois fatores se juntam, sai de baixo...


Francisco Daudt: Não é que narcisismo tenha cura, sobretudo se é genético. No entanto, a empatia pode ser aprendida como um gosto adquirido. 

Se o narcisista, assim como se o alcoólatra, se reconhece como tal, e mais, se vê vantagens na empatia, ele pode aprendê-la como se aprende uma língua estrangeira: tendo a coisa em mente e treinando muito. 

Um cliente, de forma bem-humorada, incorporou um jargão a cada nova conversa: “E você, como vai sua vida?” É assim que treina o interesse no próximo. Ele diz que está gostando muito...

Claro, é necessário que os problemas que o assolam e não deixam espaço para a percepção do outro sejam tratados; ele não pensará em ninguém mais, se aquele tumulto na cabeça não diminuir.