domingo, 7 de fevereiro de 2021

“Como obsessivos veem a ambivalência?” - O AMIGO PERGUNTA



Francisco Daudt: Não veem. O problema é esse. Um obsessivo tem particular dificuldade para aceitar a ambivalência, principalmente em si, secundariamente nos outros. 

Para o obsessivo, vale o poema de Cecília Meireles: “ou isso, ou aquilo”. Nunca os dois. Jamais um obsessivo dirá “eu gosto de fulano, mas também às vezes quero matá-lo”. Ou ele gosta, ou ele não gosta. O não gostar será visto como impureza do gostar.

A obsessividade é um traço genético que faz a criança ver sua raiva das pessoas importantes (pai e mãe, p.e.) como uma séria ameaça de retaliação/desamparo, e isso detona nela um processo de buscar pureza de sentimentos. A raiva precisa ser banida como se fosse uma imundice.

Eis o que leva os obsessivos a funcionarem sobre os eixos do controle e da pureza (sendo que o controle serve à pureza). Acertam os quadros na parede porque são puros, e aquele “desvio” os incomoda. São bons e arrumados porque não abrigam impurezas de sentimentos. Se consideram intimamente uma fraude porque sabem que o 100% puro é inatingível. Estão em permanente questionamento da intenção de seus atos porque buscam a eliminação do ruído, da impureza.

Por isso é tão difícil fazer com que o obsessivo aceite a ambivalência: sim, você gosta e não gosta, em tempos diferentes, e os dois sentimentos valem, ambos valem, “ambi + valência”.

CANCELAMENTO

 


Matéria do 2º caderno do Globo de hoje me fez entender melhor o que é o tal cancelamento de que tanto se fala.

Ele é o mesmo que os muito antigos “justiçamento” e “linchamento”: ações extralegais violentas de correção de costumes/punição de crimes. 

Eles atendem vários desejos humanos primitivos: proeminência social por superioridade moral; ganhar importância pelo meio fácil da destruição; identidade tribal/grupal; sentir-se do “lado certo/justo”, além de um último e sinistro, o de ser ativo da morte.

A nossa espécie é a única que tem consciência de que vai morrer, isto acaba por fazer do assassinato (e seus congêneres, como o suicídio, o genocídio, a guerra e outros “cídios”) uma permanente tentação. Algo semelhante ao instinto de morte que Freud descreveu. 

Por rebeldia contra nossa passividade frente à morte, nós desejamos ter controle sobre ela, mesmo que sendo a morte dos outros.

Mas o linchamento é muito trabalhoso. O cancelamento, não: ele está ao alcance dos dedos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O AMIGO PERGUNTA - “Narcisismo é uma doença?”

 


Francisco Daudt: Depende do grau. Interesse pela própria imagem todos temos, zelar pelos próprios interesses, todos zelamos, é da espécie. Pense em São Francisco, o mais altruísta dos homens, e lá está ele dizendo em sua oração que “é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado”.

Ou seja, a empatia – a capacidade de se pôr na pele do outro – também nos serve; ela nos faz “amáveis”, merecedores de amor. Quando somos atentos ao outro, interessados por ele, temos a esperança de retribuição. Isto é a troca justa, o receber equivalente ao dar (ou equilibrado com ele).

Sim, mas existe uma fronteira a partir da qual nós percebemos que o narcisismo de alguém se torna um peso... para os outros. É curioso, nunca vi ninguém se queixar de que “sofre de narcisismo”. 

Havia uma anedota do narcisista que, depois de falar horas sobre si, disse: “Ah, cansei de falar de mim, fala você agora um pouco... sobre mim”. Ou da mulher que, diante da morte súbita do marido, saiu pela casa gritando, “Ele não tinha o direito de fazer isso COMIGO!”

Mesmo que a pessoa não “sofra” de narcisismo, um narcisista tem tamanha preocupação com a própria imagem, que é impossível não suspeitar de sua autoestima. Se ele precisar cuidar tanto de como aparece na foto, é porque teme muito não sair bem.

Pense no ex-presidente Trump. Dificilmente iremos encontrar exemplo mais caricatural de narcisista. Assistimos a quatro anos de ininterrupta torrente de autoelogios, de afirmações de superioridade, de realidade paralela até, para a negação de qualquer defeito ou limitação. 

Quando se soube que o pai lhe dissera na infância “Não aceito perdedores, viu!” (“losers”: fracassados, merdas), tivemos aí o vislumbre de sua insegurança e constante necessidade de pavoneio. 

Ou seja, não acredite que o narcisista se ache o máximo; ele guarda em segredo uma perturbadora suspeita sobre seu valor.

Essa é a diferença entre autoestima e vaidade/soberba: a autoestima é serena; a vaidade/soberba é inquieta, agitada, intranquila, em permanente busca de reafirmação.

O narcisismo mais comum é resultado de a pessoa lidar com tumultos internos tais, que a percepção do outro se torna completamente secundária. Não sobra espaço. Ele se desenvolve então como mecanismo de defesa contra a angústia causadas por suas fragilidades envergonhadas.

E pode se tornar um vício comportamental, um sadomasoquismo (mais ou menos) sutil, a que dei o nome de jogo fodão/merda.

Mas tenho visto narcisismo herdado: a pessoa já tem, desde criança, o jeitão de um de seus pais, excessivamente voltada para si mesma, meio incapaz de considerar o outro. Não é por maldade, é que o outro não lhe passa pela cabeça.

Quando os dois fatores se juntam, sai de baixo...


Francisco Daudt: Não é que narcisismo tenha cura, sobretudo se é genético. No entanto, a empatia pode ser aprendida como um gosto adquirido. 

Se o narcisista, assim como se o alcoólatra, se reconhece como tal, e mais, se vê vantagens na empatia, ele pode aprendê-la como se aprende uma língua estrangeira: tendo a coisa em mente e treinando muito. 

Um cliente, de forma bem-humorada, incorporou um jargão a cada nova conversa: “E você, como vai sua vida?” É assim que treina o interesse no próximo. Ele diz que está gostando muito...

Claro, é necessário que os problemas que o assolam e não deixam espaço para a percepção do outro sejam tratados; ele não pensará em ninguém mais, se aquele tumulto na cabeça não diminuir.






sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

TENTANDO ENTENDER O CAPITÃO

 


(Sobre o artigo “Bolsonaro não é louco”, de Ruth de Aquino)

Ruth defende que ele é psicopata, e não louco. Creio que ela acerta um pouco, mas erra muito, principalmente por simplificação. 

A meu ver, a encrenca do capitão é uma soma, uma mistura de:
a) burrice tosca complexada, dessas que se percebem e se negam de forma agressiva, em permanente atitude de defesa por se sentirem sob permanente ataque/crítica.

b) um atroz e invejoso ressentimento da inteligência e da cultura alheias, ao ponto de ver a razão e a ciência como inimigas, e crer que sua opinião prevalece sobre fatos.

c) perversão sadomasoquista semelhante à do Trump, do tipo fodão-merda, que precisa de constante afirmação/adulação para combater sua insegurança, precisa de uma tribo de seguidores fanáticos para se apoiar, precisa compulsivamente de apontar os outros como merdas para se sentir fodão (com a diferença de que Trump não é burro, é principalmente fodão-merda);

d) sim, algum grau de psicopatia, mas não elevado. Um bom psicopata não se sente ameaçado como ele se sente, basta vê-lo no pronunciamento público ao despedir o Mandetta. Ele parecia vidrado, meio atemorizado mesmo; de jeito nenhum estava frio como um psicopata estaria.

O capitão parece acreditar nas besteiras/inverdades que diz, diferentemente de Trump ou Lula. Ele parece crer que seu passado de atleta o imuniza contra a Covid. Isso faz com que ele soe realmente sincero e autêntico, como seus seguidores dizem. Já Trump e Lula mentem com gosto, com o gozo de quem sabe que está fazendo os outros de idiotas. Isso sim, é coisa de sociopata/psicopata.

Enfim, me esforço por entender a complexidade desse fenômeno da democracia representativa, pois que ele realmente representa um significativo percentual da população, daqueles que sempre se sentiram ressentidos e humilhados pelos inteligentes, e veem no capitão sua revanche.


O AMIGO PERGUNTA - “Qual a importância do diagnóstico, em psicanálise?”

O AMIGO PERGUNTA 
“Qual a importância do diagnóstico, em psicanálise?”

Francisco Daudt: Se a psicanálise praticada acredita em doenças, acredita em tratamento e acredita na busca da cura daquelas doenças, ele precisa começar fazendo um diagnóstico.

Para mim, que vim da medicina clínica, foi inacreditável perceber que alguns psicanalistas não se preocupavam nem com diagnóstico, nem com a busca da cura. Que diabo, então, eles faziam? Continuo sem entender. Ouvi de um que “o objetivo da psicanálise era a busca do inefável”. Entendi menos ainda...

Bem, não era problema meu; o que eu tinha em mente era reproduzir na psicanálise o que fazia na clínica médica: a primeira consulta (entrevista) tem como objetivo fazer um diagnóstico; saber o que atormenta o cliente, a causa próxima de sua busca de ajuda, entender os sofrimentos prementes – hoje eu chamo de “tirar as farpas” – para estender minha compreensão aos problemas de fundo, as personalidades (obsessivas, narcísicas, histéricas), as neuroses, os vícios, os estados depressivos etc.
Sem esse mapa, como iniciar a engenharia reversa, a investigação de como se armaram as doenças e os tormentos de meu cliente? Como pensar a estratégia de seu tratamento. Sim, “psicoterapia analítica” significa “tratamento pela psicanálise”. E tratamento supõe doença.

O problema seguinte era montar uma psicopatologia (estudo e classificação das doenças psíquicas). Tente achar um bom livro de psicopatologia psicanalítica, e vai experimentar um bocado de frustrações. Eu mesmo passei anos achando que o Santo Graal da psicopatologia era um livro esgotado de um argentino, indicado por meu analista formador. Finalmente, um amigo esteve em Buenos Aires, achou o livro numa biblioteca e o xerocou! Outra decepção...

Tive que rastrear a obra de Freud (poxa, professor, o senhor poderia ter feito um livro só de psicopatologia, mas não: teve que espalhá-la ao longo de todos eles, e nos dar um trabalhão...), mas afinal consegui montar uma base.

Ela vem se depurando ao longo desses 45 anos de clínica, e estará no meu próximo livro, “O Amigo Pergunta – a psicanálise em linguagem chocantemente clara” (que aguarda o fim da pandemia para ser lançado).

O AMIGO PERGUNTA - “Há limites para uma autoanálise?

 



O AMIGO PERGUNTA 

“Há limites para uma autoanálise? Por que precisamos de alguém que nos ouça para que entendamos a nós mesmos?”

Francisco Daudt: Quando comecei a estudar psicanálise, ouvia que Freud foi a única pessoa que tinha sido capaz de se auto-analisar. 

Depois entendi que isso era conversa fiada, que a proposta do Freud era que, através do aprendido em suas análises, as pessoas seguissem se analisando pelo resto da vida (em “Análise terminável e interminável”, Freud, 1937). 

É isso: ele queria uma transferência de tecnologia para uso autônomo do cliente.

Toda a psicanálise se baseia na confiança depositada em quem escuta, caso contrário não haverá acesso ao que realmente interessa. 

Ao mesmo tempo, essa confiança pode ser doente: o paciente pode querer ser humilhado por seus “crimes”, e o analista precisa entender que a doença está mais no desejo masoquista do que na tal coisa que ele considera crime:

“Doutor, é... eu morro de vergonha, mas tenho que confessar: eu gosto de Fanta laranja!”

Agora a bola está com o analista, e ele pode tomar um de três caminhos: 

a) ele considera que esse é um gosto pervertido, que há sintoma ali, e endossa o sentimento de culpa de seu cliente; 

b) ele acha que isso é uma bobagem, que cada um pode ter o gosto que quiser, desde que não contrarie as leis; 

c) ao perceber que o paciente se condena por algo que, mesmo bizarro, é de sua singularidade, o analista se propõe a investigar a história de como aquilo se tornou condenável (e os danos causados por essa condenação).

O que diferencia a psicanálise da confissão católica é que nesta há pecado, condenação e, se houver arrependimento, absolvição. As leis já estão prontas, o confessionário simplesmente as endossa.

Na psicanálise, você investiga o que o paciente considera crime (seu desejo adoecido) e como foram feitas as leis que moram na cabeça dele (seu superego).

De modo que há riscos e limites na autoanálise, mas também os há na psicanálise com um profissional. Tudo depende do aparelho leitor: se ele for tirânico e impositivo, juiz severo como o Superego é, haverá problemas tanto num caso quanto no outro.

Mas a autoanálise feita por um cliente será sempre bem-vinda como um trabalho conjunto, se o psicanalista tem como desejável aquilo que Freud propôs: a transferência de tecnologia que fará a psicanálise prosseguir, mesmo depois que o cliente der por terminado o trabalho de consultório.

Afinal, é o que se espera que o próprio analista continue fazendo consigo mesmo, interminavelmente...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

CENTENÁRIO DE CARLOS ZÉFIRO

 




Para mais de uma geração de brasileiros, ele foi o “inventor” da pornografia. Trouxe complexidade, enredo, hesitação, entrega, drama, comédia, romance com erotismo, tudo isso num território árido onde só havia revistas suecas de naturismo.

Depois dele, já na produção de pornografia audiovisual, retornamos ao simplorismo: o homem da pizza e aeróbicas diversas.

Hoje, no império da internet, dispomos de um vastíssimo cardápio pornográfico. Tão vasto ele é que tornou-se, para seus espectadores, uma ferramenta preciosa de aprendizado do desejo.

Rapidamente se troca de vídeo, tendo o desejo por bússola, para aquele que desperta mais tesão. Até que se forme um padrão individual: que tipo de vídeo a pessoa vê? O que é, e quem é, objeto de seu desejo? Que tipo de enredo o toca mais?

Como exemplo, uma investigação de consultório. Só vou escrever as respostas, separadas por ponto e vírgula, mas elas foram tiradas a conta-gotas por perguntas minhas, que podem ser deduzidas:

“Sou um monstro; sou pedófilo; porque assisto vídeos de pedofilia; homossexuais, um adulto possui um menino; não, não é contra a vontade dele, não há violência, há sedução, e o menino gosta, na verdade, ele adora; quem sou eu no vídeo? Eu sou o menino...”

Expliquei para ele que: não, ele não era um monstro. Monstros não aparecem num consultório de psicanálise, pois não têm conflitos com suas monstruosidades. Ele só descobriu que é gay, querendo se sentir um menino, querendo se entregar a um homem mais velho e poderoso.

Imaginei um livro de autoajuda: “Ajuda-te a ti mesmo pela pornografia”...